“Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem para Ele” (Lc 20,38)
Vida! Qual vida! Toda a vida... é sempre um dom!
Balbuciando o mistério do “Deus Vivo”, o cristão torna-se capaz de tocar em profundidade o mistério da Vida do Criador presente em cada expressão de vida entre nós. A vida é uma dádiva que supera todas as promessas; frágil na sua moldura, efêmera na sua manifestação... mas esta é a nossa certeza maior: navegar nas ondas inquietas da vida nos capacita para sentir o Invisível que nos circunda.
Nessa vida profunda e compartilhada, na ferida e no abraço, no ruído e no sussurro, no fracasso e na vitória, na ausência e no encontro... Deus nos saúda, nos acolhe, nos chama e nos diz: “escolhe a vida!”
Deus mesmo, autor e fonte da Vida, está no âmago da vida, faz dela seu “templo”, ajuda-a, suscita-a, dá-lhe o impulso que a faz avançar, o apetite que a atrai, o crescimento que a transforma...
“Eu O sinto, eu O apalpo, eu O ‘vivo’, na corrente biológica profunda que circula em minha alma e a arrasta consigo. Quanto mais mergulho em mim, mais encontro Deus no âmago do meu ser; quanto mais multiplico as conexões que me ligam às Coisas, mais estreitamente Deus me circun-da. Ele que prossegue em mim a obra da Encarnação de seu Filho, tão longa quanto a totalidade dos séculos”. (Teilhard de Chardin)
Viver é uma arte. A “reverência pela vida” é o supremo princípio ético do amor; por isso, o maior sacramento é ser gente, assumir a vida, viver com paixão e poder dizer a cada momento: “estou no horário nobre da vida”. São justamente os sábios e os místicos que nos ensinam melhor a celebrar o instante, a descobrir o sentido da vida através da experiência do cotidiano.
“Em vez de buscar o sentido da vida, ensaie viver intensamente e vivendo intensamente você descobrirá o sentido da vida” (Dostoievski).
A surpresa e a riqueza de cada momento faz de cada instante da vida a antecipação do que será a vida plena. Viver a vida neste mundo, em comunhão com todas as expressões de vida, é conhecer a alegria de apostar como se fôssemos eternos. Podemos “viver de modo eterno” vivendo as experiências que são eternas: amar, perdoar, ajudar, compreender, aceitar, consolar...
A fé nos revela que fomos feitos por mãos celestiais, chamados à vida, para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus. Confessamos que a vida é de Deus e, como Ele, é eterna.
A “reverência pela vida” exige que sejamos sábios o bastante para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Por isso não devemos nos preocupar com a morte, mas com a vida. A verdadeira pergunta não é: “existe vida após a morte?” ou “ na ressurreição, ela será esposa de quem?”
O místico e o sábio se perguntam: “existe vida antes da morte?”
Perguntar-nos sobre o que o pós-morte tem a nos oferecer é uma desfeita à vida.
A vida é tanta surpresa, tanta novidade e riqueza que querer especular sobre o que acontece depois dela é grosseria. O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos “vivem”, porque incapazes de re-inventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem morte perde-se, no final, na total irresponsabilidade.
Através do “viver para sempre” nos permitimos o prazer, a alegria, o desafio, a criatividade, a festa...
Através do “morrer amanhã” criamos em nós a responsabilidade para com o hoje, sobre aquilo que estamos fazendo com a própria vida, os sonhos não realizados, os riscos que não tomamos por medo...
No evangelho de hoje, os saduceus (setor aristocrático e conservador do judaísmo) apresentam a Jesus uma grosseria teológica: confundem a ressureição com um casuísmo sem fundamento. Eles supõem que Deus seja tão sem criatividade a ponto de repetir, na ressurreição, o mesmo esquema de nossas experiências atuais. Jesus rejeita a infantil ideia de que a vida dos ressuscitados é um prolongamento desta vida que conhecemos. A condição das pessoas depois da morte será totalmente diferente da condição atual.
Aqui não se trata de satisfazer uma curiosidade, mas alimentar o desejo, a expectativa e a esperança confiada em Deus. Por ser “Deus dos vivos”, a experiência da ressurreição consiste numa Nova Criação. Deus é fonte inesgotável de Vida e acolhe a todos em seu amor de Pai-Mãe. Nesse sentido, há uma diferença radical entre nossa vida terrestre e essa vida plena, sustentada pelo Amor criativo de Deus depois da morte. É Vida absolutamente “nova”, que deve ser esperada, mas nunca descrita ou explicada. As relações interpessoais não serão uma cópia do modo de ser desta vida. A Ressurreição é uma “novidade” que está além de toda e qualquer experiência terrestre e que é antecipada e preparada na maneira de “viver intensamente” esta vida.
E afirmar a ressurreição não é consolo ilusório, nem evasão do compromisso com a história e com a vida. É decisão firme de continuar o projeto de Jesus, de defender a vida onde quer que esteja ameaçada, de arriscar-se pelos mais fracos e excluídos para que tenham vida, de “viver dando morte à morte”, curando feridas, levantando corações, semeando esperanças, despregando crucificados.
A ressurreição nos faz compreender que esta vida terrestre não consiste em outra coisa senão no tempo da gestação concedido a cada um de nós para que, dentro desse imenso ventre cósmico, possamos aprender a viver de amor e contemplar a obra do Artista.
Texto bíblico: Lc 20,27-38
Na oração: “Senhor, saiba eu caminhar sob o impulso da Vida, aceitando crescer graças ao diferente.
As cordas da minha vida sejam dedilhadas pelo delicado sopro de vosso Espírito”.
Caminhada Contemplativa: Contemplar a vida no seu mundo cotidiano. Em sua cidade, perceber a vida: talvez uma árvore em sua rua, uma flor na janela, animais e pássaros anônimos em meio à selva de pedra... E, sem dúvida, gente, muita gente, com preocupações, com dúvidas, com medos, com sonhos, com histórias anônimas que nunca vêm à luz.
Quando caminhar pelas ruas, preste atenção aos rostos. Imagine os relatos que escondem. Procure entender que há uma força vital que nos une a todos. E então dê graças a Deus por tantas vidas, por fazer parte de um mar de vida, que às vezes é tormentoso e outras, pacífico, mas sempre incrivelmente belo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
04.11.2013
“Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (Mt 5,12)
No dia em que a Igreja faz memória de todos os Santos e Santas, a liturgia escolhe sabiamente o evangelho das Bem-aventuranças. A sabedoria deste texto, surpreendente e genial, está no fato de apresentar um projeto de realização total, de felicidade sem limites. O Evangelho que nos foi confiado é um programa para alcançar a felicidade, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada.
Na boca de Jesus brilha sempre a palavra chave: “Felizes”.
As nove bem-aventuranças apresentam nove promessas de felicidade plena, nove situações que conduzem a essa felicidade, já a partir desta vida. São nove promessas de esperança. O que está em nossas mãos são as situações de fato, as nove condições para viver o Reino de Deus. Trata-se, com efeito, de uma felicidade que transcende este mundo. E que, por isso, é para sempre e sem limitação alguma. É essa a condição daqueles que a Igreja considera e venera como santos(as).
Também é preciso levar em conta que as bem-aventuranças falam da felicidade, não no singular, mas no plural. Ou seja, Jesus não fala da felicidade do indivíduo, mas da felicidade relativa à comunidade. A felicidade não é uma questão meramente individual, mas essencialmente social; a felicidade não se consegue isoladamente, mas comunitariamente. Em outras palavras, o que Jesus afirma é que a felicidade de cada um está em intima relação com a felicidade dos outros, com quem cada um convive.
Mas, o que mais nos surpreende é que, relendo e saboreando as nove bem-aventuranças, nos encontramos com o inesperado: nenhuma delas indica práticas relacionadas com a religião. Elas indicam condutas relacionadas com a vida, com esta vida, com as condições e atitudes a partir das quais se pode fazer algo eficaz para que esta vida seja mais humana, mais leve, mais feliz.
Aqui está a surpreendente novidade do projeto oferecido por Jesus. Ele não promulgou mandamentos, nem um código de moral, muito menos uma lista de proibições; simplesmente anunciou bem-aventuranças. Ou seja, passamos de uma ética de “deveres e obrigações” para uma ética de “felicidade e ventura”.
Joaquim Jeremias disse que o Sermão da Montanha não é Lei, mas Evangelho, de tal forma que a diferença entre um e outro é esta: “A Lei põe o ser humano diante de suas próprias forças e pede-lhe que as use até o máximo; o Evangelho situa o ser humano diante do dom de Deus e pede-lhe que converta verdadeiramente esse dom inefável em fundamento de sua vida. Dois mundos”.
Jesus compreendeu que o meio mais eficaz e mais direto para nos aproximar de Deus, e para que cada um se realize como ser humano que é, não é estabelecer proibições, mas fazer propostas que mais e melhor se harmonizem com nossa condição humana, com aquilo que mais desejamos. A experiência histórica nos ensina que os mandatos e as proibições tem cada vez menos força para modificar a vida das pessoas. Todo mandamento e toda proibição tem certos limites, aos quais alguém se ajusta e assunto encerrado. Enquanto que a proposta da felicidade contém em si uma busca sem limites. E é aí que se constata até onde chega a generosidade de uma pessoa, a fé e a entrega de alguém a uma causa que se leva a sério.
As bem-aventuranças vão muito mais além de tudo o que os mandamentos significam; elas não se fixam em alguns limites que não podem ser transgredidos, mas marcam algumas metas que nunca chegaremos a alcançar em plenitude. Não são a negação que estabelece o que não se pode fazer, mas a afirmação que nos dá vida e nos deixa profundamente felizes. Por não serem leis, nem mandamentos, as bem-aventuranças não despertam sentimentos de culpa.
Aqueles que se deixam conduzir pela dinâmica das bem-aventuranças nesta vida, tem garantida a promessa de felicidade sem fim, à qual denominamos vida eterna. É, em definitiva, a Vida de todos os santos(as). Ser santo(a) é fazer das Bem-aventuranças a pauta de seu viver.
Por isso, ser santo(a) é ser humano por excelência, é ter a audácia de reinventar o humano; é resgatar a paixão por um ideal de vida e por um sonho; paixão pela vitória da esperança; paixão pela humanidade, paixão pelo mundo, paixão pelo Reino...enfim, paixão por Deus.
A festa de hoje realça uma forma de santidade, muitas vezes esquecida: a santidade da vida comum, da resposta à Providência divina em meio às rotinas do tempo, uma caridade tecida nos pequenos gestos... Diante de uma realidade que ameaça o ser humano pelo anonimato, pelo artificialismo, pela massificação, o(a) santo(a) injeta no interior das “veias” deste mundo a Graça transfiguradora do Amor.
O chamado universal à santidade nos faz confiar profundamente na vida cotidiana, ou seja, no dia-a-dia da vida familiar, no exercício da profissão, nas relações da vida social, nas decisões éticas, na ação cidadã, no campo dos direitos humanos, no campo da economia, na presença ativa da política, no mundo da cultura, no diálogo com os meios de comunicação, na navegação pela internet... como “lugares agraciados” de encontro com Deus e manifestações explícitas de compromisso cristão.
Não tem porque a santidade ser aquela que está acompanhada de virtudes heroicas, mas aquela que se expressa numa vida cotidianamente heroica; os santos vivem intensamente e colocam em prática o chamado de Deus para viver e dar vida a outros. Quer-se dizer, com isso, que santa é a vida e santo é defendê-la; fascinante é ver enormes esforços para propiciá-la.
O santo(a) sente-se cativado, envolvido, amado, entusiasmado, sintonizado, habitado por Deus de tal maneira que seus olhos, gestos, suas atitudes, palavras, seu coração, sua existência transbordam Deus. Para humanizar nosso tempo, os(as) santos(as) revelam atitudes e critérios que nos fazem mergulhar de cheio nos desafios e problemas que afligem grande parte da humanidade. Os santos, de hoje e de sempre, não são encontrados nos pacíficos ambientes dos templos ou dentro dos limites da instituição eclesial, mas nas encruzilhadas da pobreza e da injustiça, nas “periferias existenciais”, em perigosa proximidade com o mundo da violência e da marginalidade, em situações de risco, onde a luz do amor brilhará mais do que nunca.
Num mundo em que nem todos são capazes de grandes façanhas ou de alcançar sucessos, Deus nos deu a aptidão de encontrar a grandeza no dia-a-dia. Temos apenas que ser santos o bastante para que possamos reconhecer o milagre no ritmo da vida.
“Os santos são muito corriqueiros, eles são absolutamente encardidos nas suas vidas.
O que às vezes chama a atenção são dons especiais, de milagres, de levitação,
mas fora disso a santidade é um passeio no cotidiano” (Adélia Prado).
A santidade, portanto, como paixão expansiva, implica uma pitada de santa loucura capaz de romper com o que é considerado “normal” ou aceito pela sociedade excludente e desumanizadora na qual vivemos. O santo(a) é, na essência, uma presença transgressora, subversiva e inesperada... que denuncia e interpela as barreiras e fronteiras impostas pela sociedade.
Somos santos(as). Não somos santos porque sejamos irrepreensíveis, senão simplesmente porque somos, e vivemos, nos movemos e somos sempre em Deus e Deus em nós, também quando nos sentimos medíocres e inclusive fracassados.
Esta é a vocação fundamental à qual somos todos chamados, enquanto seguidores de Jesus Cristo. Ser santo(a) é ser dócil para “deixar-nos conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e não entendemos. Seus caminhos não são os nossos caminhos.
Texto bíblico: Mt 5,1-12
Na oração:
Rezar as dimensões da vida que estão paralisadas, impedindo-lhe viver a dinâmica das bem-aventuranças. Viver a santidade no cotidiano é “arriscar-se” em Deus; é navegar no oceano da gratuidade, da compaixão, da solidariedade, da justiça...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana –CEI
29.10.2013
“O fariseu, de pé, rezava assim em seu íntimo” (Lc 18,11)
30º Dom. Tempo Comum
Nesta parábola, mais uma vez Jesus contrapõe os dois extremos da sociedade judaica daquele tempo: o fariseu, expressão máxima da piedade e da moralidade, e o publicano, que por sua profissão, era a expressão máxima do pecador, distante dos ideais religiosos.
Ambos vão ao templo para orar, e, na oração, cada um deles revela sua vida e seus sentimentos. De fato, é na oração que o ser humano exprime aquilo que é mais íntimo e mostra como ele se relaciona com os outros e com Deus.
Jesus nos apresenta o fariseu como protótipo da pessoa que se sente segura de si mesma, e que tem essa segurança porque cumpre minuciosamente com as observâncias religiosas. Em sua oração, ele não pede nada, mas informa a Deus sobre seu legalismo: na realidade não é Deus o centro da sua existência, mas seu eu. Ele dá graças por sua conduta perfeita e exemplar. Por considerar-se “justo”, apresenta a Deus uma lista de pessoas indesejáveis, censurando e condenando a todo mundo.
O risco do “farisaísmo” é subir o pedestal da “perfeição” e do “legalismo”, distanciando-se do amor e da misericórdia de Deus; com isso, cai no orgulho religioso e é incapaz de converter-se a Deus no seu íntimo.
Na sua oração, o fariseu se considera “justo” e pensa agradar a Deus com suas observâncias e práticas legais. Ocorre que não é nada elegante alguém se apresentar a Deus com as credenciais de “justo”, pois o fariseu se esquece que só Deus pode justificar o ser humano. A autoglorificação impede sua humanização. Penetra no lugar sagrado sem que o sagrado penetre nele. Petrificou-se em seu legalismo.
Ele está cego e não vê que também é pecador, dependente da misericórdia de Deus. Não reconhece sua realidade pobre e limitada e, em sua oração, está ausente o pedido de perdão. Incapaz de olhar intimamente para si, cobre com um véu os próprios pecados, fazendo de conta que eles não existem. Incensurável, respeitador e cumpridor de todas as leis – porém cheio de si -, o fariseu voltou para casa com um pecado a mais. A consequência é vida dupla: a fachada externa perfeita que esconde um interior frio e insensível, resistente a perceber a própria fragilidade.
Na sua autosuficiência e com sua oração um tanto blasfema, o fariseu está aí, de pé, para dar espetáculo, aguardando o aplauso da plateia. Ele pensa que pode “ficar de pé” diante de Deus, que pode estabelecer o confronto sem problemas, como de igual para igual. O fariseu não suplica a Deus e nem tem necessidade de ouví-Lo; já eliminou as distâncias com as suas palavras e se ilude de ter uma linha direta com o Altíssimo.
Na prática, a oração do fariseu significa submeter Deus a si mesmo, cobrando o prêmio pelas boas ações. Agradece porque é sem vícios, não porque se sinta amado por Deus. Seu louvor e agradecimento é apenas um pretexto para louvar a si próprio, inflar o próprio ego; na sua oração Deus não tem o lugar que lhe é devido; a oração passa a ser um monólogo vazio e presunçoso de quem “celebra” seu “eu” e seus méritos diante de Deus. E como fala só consigo mesmo, encontra-se só com seus méritos e suas pretensões. O seu monólogo é um palavreado vazio, exibicionismo enganoso de um “eu” que não tem outro “deus” além de si mesmo. Ele tem méritos e nada deve a Deus; ao contrário, Deus é quem lhe deve: a enumeração de suas boas obras implica a pretensão de uma recompensa; ele acha que pode impressionar Deus com suas qualidades aparentes e seus sacrifícios e boas obras puramente formais, sem extirpar de seu coração o orgulho e o desprezo pelos outros.
Outro aspecto importante aparece na parábola: como o fariseu se considera perfeito e não vê nenhuma falha em si mesmo, ele se acha diferente e melhor do que todos. “Ó Deus, dou-te graças porque não sou como o resto dos homens”.
Ao mesmo tempo que se auto-elogia, critica e despreza os outros. Ele não descobre nenhum projeto divino sobre si, basta-lhe saber que é melhor que os outros. O fato é que os grandes “observantes” são os grandes desprezadores, que não se interessam pelas pessoas e menosprezam todo aquele que não pensa e vive como eles. O agravante é que, quem vive assim não se dá conta do que faz. Isso porque faz de maneira tão dissimulada e sob formas tão “espirituais” e com argumentos tão “religiosos”, que nem ele mesmo é consciente das agressões que comete contra as pessoas que não se encaixam no seu modo de ser. Não se pode discutir com um fariseu; ele tem sempre razão.
Além disso, é um hipócrita, porque substitui a Vontade de Deus por leis humanas. Na prática, são indivíduos que demonstram ser ateus, porque, na realidade, o que lhes importa é sua própria honra, e não a honra de Deus. O que lhes interessa é brilhar diante dos homens; a única coisa que lhes preocupa é sua boa imagem diante das pessoas: querem ser vistos, apreciados, louvados. Não tem outro Deus a não ser eles mesmos. O que realmente envenena a vida destas pessoas não é a vaidade ou a soberba. É o ateísmo.
Jesus destrói o conceito de “justificação” rabínica, baseada no cumprimento da lei, quando, na pessoa do publicano, mostra que Deus salva quem julga nada ter a apresentar, sente a necessidade de se converter e de se entregar. Consciente de sua indigência e fragilidade, o publicano entrega-se a Deus sem reservas, confia-lhe o seu futuro e espera em Sua misericórdia.
A misericórdia é a resposta de Deus ao delírio do ser humano de querer ser perfeito; é a única força capaz de detê-lo no processo de autodivinização, própria do fariseu. O publicano não tinha esperanças: reconhecendo-se pecador diante de si mesmo, diante de Deus e dos outros, sabia que a única esperança era a misericórdia de Deus. Diante da grandeza e transcendência de Deus, sente uma necessidade instintiva de retirar-se, de deter-se, quase pedindo desculpas por ousar entrar no templo. Ele nada tem para apresentar a Deus, nada de que se orgulhar e nada para exigir. Só lhe resta a pobre oração dos excluídos e dos pecadores assumidos, dos desmoralizados e humildes.
O “fariseu” que todos hospedamos em nosso interior realiza seu trabalho em silêncio, mas com uma eficácia impressionante: torna o nosso coração impermeável à experiência divina e petrifica nossa compaixão na relação com os outros. O publicano, por outro lado, nos revela que basta redescobrir o caminho da humildade (do húmus), bem no fundo de nós mesmos: este é o lugar da oração. E quanto mais baixo for o ponto de partida, tanto mais alta ela vai subir... A salvação que esperamos não é fruto de nosso trabalho e penitência, de nossa prática legal e de nossas virtudes. Ela é puro dom de Deus, divino presente de seu coração de Pai. Só nos resta acolhê-la em atitude de humilde gratidão.
Texto bíblico: Lc 18,9-14
Na oração: * Fazer leitura compassiva das atitudes petrificadas em sua vida.
* Sua vida cotidiana gira em torno da perfeição farisaica ou da misericórdia divina?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
21.10.2013
“Numa cidade havia um juiz que não temia a Deus...” (Lc 18,2)
Na tradição bíblica, as viúvas são, juntamente com os órfãos e os estrangeiros, o símbolo das pessoas mais indefesas, as mais pobres entre os pobres. A viúva, de modo especial, é o símbolo por excelência da pessoa que vive só e desamparada; ela não tem marido nem filhos que a defendam e não conta com nenhum apoio social. É nesta situação de total abandono que sua vida se converte em um grito: “Faze-me justiça!”.
A conduta e o ensinamento de Jesus foram radicalmente “contraculturais” com relação à mulher. Ele foi um autêntico reformador e inclusive revolucionário. Com sua presença e sua linguagem Jesus visibiliza o mundo vital das mulheres; ao tirá-las do seu anonimato e trazendo-as à luz, Jesus realça e louva os traços característicos da mulher. Na parábola, a viúva é apresentada como modelo de atitude diante de Deus pela sua persistência, pela sua coragem frente a um juiz surdo à voz de Deus e indiferente ao sofrimento dos oprimidos. Ela não desiste, continua lutando por si mesma e por seu direito à vida, indo ao juiz dia após dia.
Lucas apresenta a parábola como uma exortação a orar sem nunca desistir. O Mestre conta a parábola de forma tão envolvente que as pessoas, sobretudo aquelas que perderam toda esperança por ajuda e cura, são novamente encorajadas. Ao despertar nos ouvintes a alegria sobre o poderoso juiz, cuja resistência é vencida pela viúva, convida as pessoas a lidarem de forma diferente com uma situação aparentemente desesperadora. Deus não é surdo aos seus gritos.
Nesse sentido a oração do seguidor de Jesus é “eficaz” porque nos faz viver com fé e confiança no Pai e em atitude solidária com os irmãos. A oração é “eficaz” porque aumenta nossa fé e nos faz mais humanos; abre os ouvidos do coração para escutar a Deus com mais sinceridade, vai purificando nossos critérios e nossa conduta daquilo que nos impede ser irmãos. Ela sustenta nosso viver cotidiano, reanima nossa esperança, fortalece nossa fragilidade, alivia nosso cansaço. Aquele que aprende a dialogar com Deus e a invocá-Lo “sem nunca desistir”, vai descobrindo onde está a verdadeira eficácia da oração e para quê “serve” rezar. Simplesmente para viver.
Podemos interpretar também a parábola do juiz e da viúva como uma imagem do nosso interior: lugar da nossa intuição que nos diz que possuímos um brilho divino, que somos seres originais, filhos e filhos de Deus. Nosso interior representa os sonhos que carregamos durante nossa vida, que nos diz que nossa vida é preciosa e que nele se expressa algum aspecto de Deus. Mas, nosso interior carrega também um tribunal com um juiz frio e insensível, que, numa postura arrogante, nos julga de forma excessivamente dura, e, às vezes nos condena e rejeita constantemente; ele emite juízos taxativos, cortantes, condenatórios, alimentando em nós sentimentos de culpa e impotência.
Ele tem o catálogo de leis nas mãos e é implacável mesmo diante dos mínimos deslizes, distribuindo prêmios (poucos) e castigos (abundância). Em cada um de nós o instinto de julgar está enraizado profundamente; podemos até dizer que todos nascemos portadores de uma cátedra de juiz. Muitos cultivam ardorosamente esta vocação de juiz e encontram abundantes ocasiões para praticar juízos, sobre si mesmos e sobre os outros, submetendo-se a um horário esgotador. Daí a proliferação de “tribunais ambulantes e permanentes”.
No Evangelho, nos encontramos com algumas expressões categóricas que nos convidam a abandonar este ofício bastante perigoso. Muitos, com seu amadurecimento, ficam persuadidos de que existem coisas mais importantes a fazer do que dedicar-se a serem juízes. Embora se trata de uma grave enfermidade, esta “síndrome de juiz” é curável. Existem muitas terapias que podem arrancar a cadeira do juiz e desalojá-lo de seu ofício.
Na parábola da viúva e do juiz injusto Jesus nos mostra como podemos conviver com o juiz interior. Como a viúva, nós nos vemos ameaçados por um inimigo – pode ser um inimigo interior ou exterior ou um padrão de comportamento que não nos permite viver com serenidade e paz. Nesse contexto, o juiz representaria nosso juiz interior, que nos despreza continuamente e nos julga desprezíveis por termos ideais tão altos ou exigências tão ambiciosas para nós mesmos.
Nessa interpretação, a oração também passa a ser o lugar onde nosso interior encontra justiça, onde o juiz interior é desapoderado. Na oração nos tornamos cientes da nossa dignidade como seres humanos, que fomos criados por Deus e que Ele julga capaz de realizarmos nossos desejos. Por meio dela, entramos em contato com a imagem única e singular que o Pai tem de nós, toda auto-depreciação e auto-condenação se dissolvem durante esse momento.
Se orarmos com essa parábola em mente, a nossa oração adquire uma força diferente. Nesse sentido, a oração é o espaço onde a dimensão feminina é despertada através do seu clamor, da sua insistência e perseverança.
O ser humano carrega em si amor e agressão, razão e emoção, gentileza e dureza, juiz e viúva, animus e anima – parte masculina e parte feminina da alma. Muitas vezes vivemos apenas um polo e recalcamos o outro. Enquanto este permanecer nas sombras terá um efeito destrutivo. A arte da humanização consiste na reconciliação da viúva com o juiz interior. Muitos ficam chocados quando, apesar de todo esforço para serem pessoas amáveis e gentis, descobrem em si lados insensíveis, antipáticos, julgadores, ofensivos...
Jesus nos apresenta a oração como caminho para esvaziar o ofício do nosso juiz interior. No espaço da oração experimentamos nosso direito à vida; ali encontramos paz, ajuda e cura. Ao mesmo tempo, a oração nos leva ao espaço interior do silêncio, onde o juiz é desarmado de sua arrogância.
Com o juiz silenciado, acabam-se os ressentimentos, as violências interiores, os sacrifícios, os juízos, os sentimentos de culpa... Morre o “juiz” das proibições, das ameaças, dos castigos e da perpétua vigilância sobre nossos atos e intenções. Com isso, nossa vida torna-se mais leve, os medos se vão e a harmonia toma assento em nosso coração.
A parábola nos causa uma transformação, questiona nossa vivência, abrindo espaço para experiências novas. Jesus descreve essa viúva sem perspectivas, como mulher que não desistiu de si mesma. Orar, portanto, significa: não desistir de si mesmo.
Ao mesmo tempo, Jesus revela a imagem de um Deus desprovido de dogmatismos, um Deus desprovido também de controle e arbitrariedade. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar... Basta-lhe a misericórdia, a compaixão... A misericórdia de Deus constitui a resposta à indigência e ao clamor do ser humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento e a condenação. O passado de erros e fracassos é substituído pelo presente de aceitação e perdão.
Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano. Enquanto o Reino de Deus estiver no nosso meio, o juiz interior não tem nenhuma chance, estamos sãos e salvos, livres dos seus juízos, de suas expectativas e exigências, de suas acusações e sentenças. Nesse espaço ninguém pode nos ferir, nenhum inimigo tem acesso, seja ele interior ou exterior.
Texto bíblico: Lc 18,1-8
Na oração: “tomar consciência” dos momentos em que o “juiz interior” emite seus “pareceres de morte”, seja na relação consigo mesmo ou com os outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
15.10.2013
“... atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra, e lhe agradeceu” (Lc 17,16)
“A gratidão é a memória do coração” (Paul H. Dunn))
Aquele que é marcado pela experiência de que é tudo é dom e dado pelo Deus providente, adquire a fina percepção de que tudo é graça, tudo é “de graça”, somos “agraciados”, “cheios de graça”...
É Ele mesmo que, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensina a “sermos gratuitos e gratos”.
Só Ele é capaz de gerar o verdadeiro sentido e força do “de graça”; só a generosidade gratuita do coração de Deus é capaz de reconfigurar mentes e encorajar atitudes oblativas em nós.
Enquanto a memória da mente é a lembrança, a do coração encontra expressão na gratidão. Afinal, estar grato é uma forma de memória. Normalmente vivemos inúmeras bênçãos diárias que esquecemos. Quanto maior a memória do coração mais ele poderá nos mostrar o quanto somos gratos.
Na espiritualidade cristã, a gratidão nasce com naturalidade e espontaneidade nos corações humildes, nas pessoas conscientes de que aquilo que recebem não é por mérito ou retribuição. Tudo é gratuidade. O agradecimento é a experiência humana que mais mobiliza a generosidade da pessoa; a gratidão é a mais agradável das virtudes: quê virtude mais leve, alegre, mais luminosa, mais humilde, mais feliz!!! É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como a gratidão sem causa, uma gratidão incondicional.
Parece ser que a gratidão, juntamente com o amor, é um dos sentimentos mais terapêuticos: nos centra, nos re-situa, nos faz porosos, nos abre a dimensões infinitas, arrancando-nos de mecanismos egocentrados, que nos fazem girar sobre nós mesmos de um modo doentio.
Grandeza da gratidão, pequenez do ser humano.
“De graça”: esta é uma expressão cada vez mais estranha e distante numa cultura marcada pelo consumismo, pelo “toma lá, dá cá”. O que é que se encontra “de graça?” Onde? Quem pratica essa aventura da “mão aberta”, da largueza de coração? Desconfia-se de quem oferece alguma coisa “de graça”. Há interesses escondidos, motivações escusas, para ganhar alguma coisa.
“De graça” parece já não fazer parte mais do nosso vocabulário. Esta é a lei dura, imposta e forjada pelo mecanismo perverso da exploração, da concentração de bens... Nesse horizonte o que vale são os cálculos e os interesses egoístas.
Há aqueles que não conhecem a palavra “gratuito” e, por isso, petrificados à “gratidão”. São surdos e mudos para o “muito obrigado”. Para eles tudo se compra e tudo se vende. O egoísta é ingrato não porque não goste de receber, mas porque não gosta de reconhecer o que recebe do outro, e a gratidão é esse reconhecimento; não gosta de retribuir, e a gratidão, de fato, retribui com o agradecimento.
Um outro horizonte, no entanto, é apresentado por Jesus. Ele está a caminho, quase chegando à etapa final da viagem: Jerusalém. A estrada é a vida e a missão de Jesus, enviado para revelar o rosto de Deus aos homens. A sua estrada é marcada pela solidariedade e cuidado para com os mais excluídos e sofridos.
Entre Jesus e aquela estrada, que conduz a Jerusalém, há uma relação vital: Ele é o “autor” daquela estrada; Ele é a estrada do cumprimento da vontade de amor e de salvação do Pai; Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Essa estrada deverá ser a mesma também dos discípulos, a do seguimento, a que conduz à Cidade santa, à plena bem-aventurança. Um Caminho que faz viver e realiza a comunhão em plenitude.
Logo que Jesus entrou na aldeia, “dez leprosos” foram ao seu encontro. Pela narração do evangelista, parece que não há mais ninguém na cena: Jesus parece estar sozinho com os leprosos. A aldeia se apresenta surpreendentemente vazia. É óbvio, os leprosos deviam estar separados e longe de todos. Na verdade, a lepra era entendida como manifestação de uma condição de pecado. Os leprosos, embora mantivessem a devida distância, vão ao encontro de Jesus, gritando. Aqueles pobres miseráveis O buscam como o “misericordioso”: “Jesus, mestre, tende piedade de nós”. É uma oração surpreendente, na qual o homem de Nazaré é chamado pelo próprio nome. Jesus, por sua vez, pousa sobre eles o seu “olhar” e os envolve com tanta atenção e sedução, que os dez não hesitam, nem um momento sequer, em pôr em prática, com confiança, a ordem que lhes foi dada: “Ide mostrar-vos aos sacerdotes”. Assim, Jesus se põe com eles na estrada da esperança, na estrada da experiência da solidariedade que cura e os acompanha, mesmo de longe, até aos sacerdotes.
A recuperação da saúde deles se torna também reinserção na sociedade, no âmbito familiar e na comunidade religiosa. Eles não serão mais rejeitados.
No entanto, somente um dos dez leprosos, ao longo do caminho, descobriu ter sido curado. Então “voltou dando glória a Deus, em alta voz”. Cai com o rosto ao chão, aos pés de Jesus, e dá graças a Deus: ele era um samaritano. A sua admiração por ter sido curado se torna caminho de retorno e hino de gratidão. Assim, a cura, em sentido pleno, consiste em descobrir que o verdadeiro ponto de chegada do caminho tomado consiste, justamente, em voltar ao ponto de partida: a pessoa de Jesus, reencontrada no pleno esplendor da sua luz.
Somente aquele estrangeiro, capaz de dizer “obrigado”, volta a Jesus, a quem obedecera na obscuridade da fé. No fundo, ele descobriu não só ter sido curado, mas, sobretudo, ter sido amado.
É exatamente isso que o leva para além do agradecimento e o faz entoar um hino de louvor, onde toma forma o gosto pelas coisas e pela vida, porque foram dadas por um Amor eterno. Também Jesus não esconde a sua profunda surpresa, seja pelos nove que não voltaram, seja pela única volta agradecida de um samaritano. Mais uma vez, pousando o seu olhar de amor e de misericórdia sobre o estrangeiro, dirige-lhe uma palavra de envio: “Levanta-te e vai”, como também uma palavra de consolação: “A tua fé te salvou”.
Ao leproso-estrangeiro, portanto, nada mais resta a não ser pôr-se novamente a caminho, na novidade deste encontro e deste acontecimento, que o marcou profundamente, e seguir a estrada indicada por Jesus, tornando-se um sinal concreto da presença de Deus e do seu Amor que salva. O samaritano curado, agora a caminho com Jesus, pode comunicar a todos a alegria do seu reconhecimento, mediante a gratuidade do dom recebido.
O verdadeiro sentido do retorno é a “gratidão”, o “agradecimento”, o “louvor”: esta é a realidade da conversão. Tal retorno é a real “peregrinação” do cristão. Ser “curado” e viver em plenitude significa deixar espaço ao agradecimento e transformar o caminho humano em canto de louvor.
Cabe a nós, enquanto seguidores de Jesus, pensar-sentir agradecidamente e ter gestos de gratuidade. Cabe a nós falar agradecidamente. A expressão “muito obrigado” é das primeiras que se aprende quando alguém se inicia em outro idioma. Ser agradecido se aprende agradecendo e tudo se pacifica quando o gratuito marca nosso ser inteiro.
A vida nova vem da vida recebida e partilhada; ela nos coloca acima do êxito e do fracasso, pois está no nível da gratuidade.
Texto bíblico: Lc 17,11-19
Na oração: Criar um clima de ação de graças. Tudo é Graça.
Ponderar com muito amor tudo o que o Senhor fez por mim, por meio dos outros, da Criação e de minha história passada e presente. Como Ele me cumula de seus próprios bens. Tudo é dom de Deus; tudo foi criado por amor para mim (Deus providente)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
07.10.2013
“Somos simples servidores: fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10)
Os apóstolos, depois de um tempo de convivência com Jesus, se dão conta de que lhes falta algo para poder compreender as exigências d’Ele. Por isso, suplicam: “aumenta nossa fé”.
Como de outras vezes e como bom “pedagogo”, Jesus não responde diretamente à petição dos apóstolos. Quer dar a entender que a fé não é questão de quantidade, mas de autenticidade. Além disso, a fé não pode ser aumentada a partir de fora; ela tem que crescer a partir de dentro, como o insignificante grão de mostarda que, embora diminuto, contém vida exatamente igual que a maior das sementes.
A fé não é algo que se “tem” ou “não se tem”; a fé é um caminho, é uma “travessia” em direção a largos horizontes; e um desejo eternamente insatisfeito; é uma confiança continuamente renovada, um compromisso sem final.
A fé não é um ato nem uma série de atos, nem uma adesão a uma série de verdades teóricas que não podemos compreender, mas uma atitude pessoal fundamental e total que imprime uma direção definitiva à existência. Na Bíblia, a fé é equivalente à confiança em uma pessoa, acompanhada da fidelidade.
Nesse sentido, a fé é uma vivência em Deus; por isso não tem nada que ver com a quantidade.
Jesus denuncia a fé dos seus discípulos, que parece frágil, de pouco fôlego, incapaz de manifestar aquela força que muda a vida, o modo de pensar, de sentir e de agir.
A fé supõe o descentramento de si mesmo e o reconhecimento de Deus como centro da própria vida, numa atitude de confiança incondicional; ela abre para o ser humano o horizonte infinito de Deus. Crer significa deixar Deus ser totalmente Deus, ou seja, reconhecê-lo como a única razão e sentido da vida.
É esta experiência de fé que desata as ricas possibilidades latentes em nosso interior. Com a imagem da amoreira que é transplantada, Jesus nos está dizendo que o dinamismo de Deus está já atuante em cada um de nós e nos possibilita viver profundas mudanças (sair de um lugar estreito, limitado... e lançar-se a outro lugar amplo, desafiante...). A fé é experiência expansiva da própria vida, movida pela graça de Deus. Aquele que tem confiança em Deus, poderá desatar toda essa energia de vida.
Essa vida é o que de verdade importa. Por isso, crer em Deus é também confiar em cada ser humano e em suas possibilidades para alcançar sua plenitude humana.
Que alimentemos, portanto, dentro de nosso coração, esta fé viva, forte e eficaz. Fé que se visibiliza no serviço por pura gratuidade; ou, segundo S. Paulo, a fé que se realiza “pela prática do amor” (Gal. 5,3).
E Jesus ilustra isso com a pequena parábola do “simples servo”. Parábola dirigida àqueles que confiam em suas obras e exigem uma recompensa de Deus. Daí o perigo da soberba religiosa: comparar-se com os outros, colocando-se acima deles e fazendo-se o centro.
No Reino de Deus, somos todos servidores; nele não se trabalha por recompensa. Já é um privilégio podermos colaborar na obra o Senhor. A parábola revela que o trabalho a serviço do Senhor já é uma graça e a recompensa não pode ser exigida; ela é dom.
Não podemos fazer desse serviço uma “carreira”, com promoções, honrarias e prêmios. No mundo em que vivemos, a mínima prestação de serviço exige uma gratificação específica. Tudo tem um preço. Nossa mentalidade exclui todo espírito de serviço gratuito.
As “obras boas” não são um crédito que podemos apresentar a Deus; são, antes, a manifestação de que temos acolhido o amor de Deus e o manifestamos aos outros. Confiar em Deus é também incompatível com a confiança nos próprios méritos. Aqueles que passam a vida acumulando méritos não confiam em Deus, mas em si mesmos. A Salvação “por pontos” é totalmente contrário ao evangelho.
Há aqui o princípio ético que deve reger a conduta do cristão, diante de Deus e diante dos outros. É a atitude da inteira disponibilidade, a intensidade do compromisso, sem queixas, sem comparações e nem exigências. Uma ética e uma espiritualidade assim revelam um profundo e inexplicável humanismo.
Por isso, crer no Deus que “atua em tudo e em todos” implica estar sintonizado com Ele, trabalhando na mesma direção, fazendo as mesmas obras que Ele está fazendo para tornar este mundo mais habitável.
Cremos no “Deus que trabalha sempre” e em tudo nos associa, em comunhão com Ele, a seu trabalho constante de transformação deste mundo, na fronteira mesma onde se tece a novidade da história. Trabalho que se faz com amor; “o trabalho é a fé que se faz visível”. Nesse sentido, “somos servidores e nada mais, fizemos o que devíamos fazer”.
Não está correta a tradução: “somos servos inúteis”. Se o servo fosse inútil, o senhor não lhe pediria serviço algum. Pelo contrário, ele é extremamente útil. Seu trabalho tem muito valor aos olhos do senhor. Mas o servidor não é nenhuma personalidade de destaque. Ele não está acima do senhor, Ele faz seu trabalho; é servidor, e nada mais. Mas serve.
Ao situar nosso trabalho cotidiano na linha da colaboração com a atividade criadora de Deus, do serviço à humanidade, da construção de um mundo fraterno..., isso nos ajuda a não convertê-lo em um mecanismo ou dinâmica de autocentramento, de busca exclusiva e muitos vezes compulsiva de nós mesmos e de nossos interesses e benefícios; ao mesmo tempo, nos faz evitar, em nosso modo de trabalhar, atitudes e ações de domínio, de manipulação, de cobrança dos outros...
São vários outros elementos que contribuem para fazer de nosso trabalho uma “experiência espiritual”:
a pureza de motivações (por que faço isso? para quem faço?), a capacidade de “contemplar”, a agilidade no “eleger”, o crescer em gratuidade e relativização de si mesmo, o deixar-se ajudar, a capacidade de agradecer.
A atitude de gratidão (consciência viva daquilo que cada dia recebemos e nos é dado) nos faz viver nosso trabalho como serviço e o liberta radicalmente de suas dimensões de rotina, de carga..., e o vai situando na linha de uma experiência profundamente “espiritual”: dupla experiência de agradecer e ajudar.
Quando vivemos nosso trabalho a partir da gratidão, o esforço que o mesmo trabalho exige brota de um modo mais natural, mais espontâneo...; por isso, “cansa” menos, “desgasta” menos... Se vivemos a partir da gratidão, ficamos menos “dependentes” da compensação que os outros poderiam dar à nossa entrega ou ao nosso serviço.
Encontramos aqui o fundamento para uma teologia do trabalho: o trabalho, seja ele qual for, é redentor, se a motivação é evangélica, se ele está orientado para o Reino. Não é o trabalho que nos faz importantes, mas somos nós que fazemos qualquer trabalho ser importante, quando ele é realizado na perspectiva do Reino de Deus. Todo trabalho é nobre, seja ele o de cinzelar estátuas ou o de esfregar o chão.
A alegria do trabalho está no fato de perceber o sentido e a intenção presentes nele. Afinal, somos chamados a “trabalhar na obra do Senhor”, somos seus “servidores”. A verdadeira “experiência espiritual ” é estabelecer com o “Deus da Vida” uma relação “desinteressada”, isto é, uma relação na e a partir da gratuidade; é passar do “Deus mérito” ao “Deus do dom”, do “Deus juiz” ao “Deus Pai-Mãe”, do “Deus ameaça” ao Deus de “bondade escandalosa” que nos desafia a sermos criativos em sua obra. Daqui brota a dimensão contemplativa do trabalho, pois este passa a ser “templo” do encontro com Deus trabalhador e de colaboração com os outros.
Texto bíblico: Lc 17,5-10
Na oração: Precisamos alimentar uma outra relação com o trabalho no sentido de assumi-lo como cooperação com o Deus trabalhador e com tantas pessoas tocadas pela sua graça. Uma relação que permita nos distanciar das cargas, ativismos, tarefas estressantes... e viver o trabalho com humor e criatividade.
* Seu trabalho cotidiano: ativismo ou “ação discernida”? Busca de recompensas ou espaço de colaboração
com o Deus trabalhador?
“Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava sentado à porta do rico” (Lc 16,20)
Toda vez que Jesus tem uma coisa importante para comunicar, ele cria uma história e conta uma parábola. Sabemos que, em toda parábola, o ouvinte passa por uma transformação interior; ele se abre porque ela o fascina, e, sem que perceba, a narrativa o leva a outro nível. De repente, o ouvinte se sente envolvido na cena. Algum aspecto seu, que até então havia permanecido no escuro, é iluminado; agora é capaz de se ver de modo diferente.
Uma parábola “dá o que pensar”. Por isso, é importante prestar atenção até nos seus mínimos detalhes. Dizem os especialistas que, quando Jesus contava parábolas, apelava aos sentimentos mais primários de seus ouvintes (muitas vezes adversários) para fazê-los mudar. Assim, ao contar a parábola da ovelha perdida, do filho pródigo que retorna à casa, estaria dizendo aos seus adversários: “Vocês não sentem compaixão por essa pobre gente? Não sentem revirar suas entranhas?”.
Talvez ao contar a parábola do “rico e de Lázaro”, estaria nos dizendo: “Vocês não se envergonham de viver em um mundo assim, de ricos e de lázaros, de milionários e de famintos?... Se esta parábola não provoca em nós nenhum tipo de incômodo, se não desperta nossa vergonha, se não nos faz sentir afetados pelo que ali há de insulto ao pobre, se não nos mobiliza para uma superação desse escândalo..., é sinal que a desumanização chegou ao fundo do poço.
Na parábola do evangelho de hoje aparecem três personagens: o pobre Lázaro, o rico sem nome e o pai Abraão. De um lado, a riqueza agressiva. Do outro, o pobre sem recurso, sem direitos, coberto de úlceras, impuro, sem ninguém que o acolhe, a não ser os cachorros que lambem suas feridas. O que separa os dois é a porta fechada da casa do rico.
A coexistência de riqueza e pobreza é, em si mesma, ruptura fundamental da solidariedade humana, negação de humanidade; é uma flagrante violação da convivência humana, ou seja, da própria natureza do fundamento dos direitos humanos.
“O luxo de uns converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas” (Puebla 28). O “rico e Lázaro” constituem um enorme escândalo em nosso mundo. É uma ofensa que se faz aos pobres pelo simples fato de serem indigentes ao lado de opulentos.
O foco para compreender o sentido da parábola é o pobre Lázaro, sentado à porta. Ele representa o grito calado dos pobres do tempo de Jesus e de todos os tempos. Deus vem até nós na pessoa do pobre, sentado à nossa porta, para nos ajudar a transpor o abismo intransponível que a riqueza criou.
A parábola é cheia de ironia. Para começar, o rico aparece sem “nome”: não ter nome naquela cultura era praticamente sinônimo de não existir; às vezes o rico é designado como “epulão”, mas é um adjetivo, que tem sua raiz no costume romano dos “épulos” ou banquetes; o pobre, pelo contrário, se chama “Lázaro”, ou seja, “Deus ajuda”. Ele tinha identidade; O rico era tão pobre que só tinha bens.
Com sua morte, o mendigo “é levado pelos anjos para o seio de Abraão”; o rico, pelo contrário, “morreu e foi enterrado”. O “seio de Abraão” é a fonte de vida, de onde nasceu o povo de Deus. Lázaro, o pobre, faz parte do povo de Abraão, do qual era excluído enquanto estava à porta do rico. O rico pensa ter fé e ser filho de Abraão; mas só há um jeito de estar com Abraão: abrir a porta ao necessitado. A salvação para o rico não é Lázaro trazer uma gota de água para refrescar-lhe a língua, mas é ele, o próprio rico, abrir a porta fechada para o pobre e, assim, transpor o grande abismo que os separa.
A chave de compreensão da parábola podemos encontrá-la justamente nesta expressão: “um grande abismo”. Um abismo que se revela não só após a morte, mas que ficara visível na indiferença do rico frente á presença do pobre à sua porta. Ele não tinha feito mal ao necessitado; simplesmente não o tinha visto. O rico não vê o pobre, não vê a Deus; não escuta o pobre, não escuta a Deus. Não está contra Deus , nem contra o pobre; unicamente está cego. A riqueza o cega e o impede de viver para o outro; a riqueza endurece seu coração e o torna insensível. Esse “não ver” (“olhos que não veem, coração que não sente”) é o que cria um abismo intransponível em nossas relações pessoais, em nossos países e em nosso mundo.
Por que caímos tão facilmente na indiferença? A indiferença diante dos outros e diante do mundo, esconde, sem dúvida, uma maior ou menor insensibilidade. Uma sensibilidade bloqueada ou endurecida isola a pessoa, deixa-a encapsulada em sua própria armadura egocêntrica e a instala em uma atitude indiferente – oposta à compaixão -, que está na origem das injustiças que diariamente vemos em nosso mundo. Em sua redoma protetora, o rico não vê os outros a não ser quando necessita deles, considerando-os como se fossem “objetos” a seu serviço; sua capacidade de amar fica bloqueada.
A compaixão é o sinal mais claro da maturidade humana; a indiferença, pelo contrário, revela imaturidade e atrofia nossa humanidade. A vivência da compaixão requer uma sensibilidade limpa e uma afetividade livre. Tanto o endurecimento (ou petrificação) da sensibilidade como o bloqueio afetivo impedem sentir-com-os-outros.
A conclusão de tudo isso parece clara. Para viver a compaixão, precisamos, antes de mais nada, despertar nossa sensibilidade diante dos outros, sobretudo aqueles que estão à nossa porta e não os vemos.
A cegueira diante dos outros, sintoma de uma sensibilidade rígida ou congelada, torna impossível a compaixão. Precisamos restabelecer o contato com nossos sentimentos; despertada nossa capacidade de sentir, poderemos depois sentir-com-os-outros, ou seja, experimentar compaixão.
A transformação do coração exige uma renovação de nossa sensibilidade. O discípulo de Cristo, com sua sensibilidade cristificada, não fugirá da realidade das pessoas e da natureza, mas se relacionará com elas, buscando também nelas a presença de Deus. Nesse sentido, a sensibilidade cristificada é o motor da nossa vida e da nossa conduta. E os “abismos” serão superados.
Portanto, mediante uma acolhida contemplativa da Parábola, vamos transfigurando nossos sentidos e convertendo nossa sensibilidade, para aproximar-nos da realidade como Jesus se aproximava, com uma sensibilidade cada dia mais parecida com a d’Ele. À medida que vai se realizando esta conversão de nossa sensibilidade, nós nos fazemos capazes de nos fazer presentes junto aos mais necessitados à maneira de Jesus de Nazaré, abrindo a porta de nossa casas para acolhê-los.
Texto bíblico: Lc 16,19-31
Na oração: diante do mundo da exclusão e da miséria, quê sentimentos prevalecem: indiferença, compaixão, insensibilidade, espírito solidário...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
23.09.2013
“Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16,13)
Estamos diante de mais uma parábola "escandalosa" de Jesus, ou seja, um relato impactante e provocativo, que ajuda a “despertar” o ouvinte ou o leitor. Mas o que se trata na parábola não é da injustiça cometida nem da desonestidade do administrador, senão de sua astúcia. O objeto de louvor por parte de Jesus é a esperteza, a audácia e o empenho com que o administrador tira partido de uma situação presente tendo em vista garantir o futuro; Jesus elogia o administrador não porque roubou, mas porque teve presença de espírito, soube calcular bem as coisas e encontrar uma saída honrosa, enquanto havia tempo. E a “saída” do administrador, ameaçado de desemprego, foi fazer “amigos” para depois.
Não devemos imitá-lo na sua injustiça, mas na sua previdência. O administrador infiel é um filho deste mundo; deixa-se guiar pelo cuidado de sua existência terrena. Com esperteza, com decisão e sem escrúpulos, aproveita o que lhe pode proporcionar vantagem para garantir sua vida futura.
E é aqui onde encontramos a chave de compreensão do relato: como “filhos da luz” precisamos agir de um modo inteligente, utilizando todos os recursos em favor da vida. Quem são nossos “amigos para de-pois”? São os cegos, os excluídos, os pobres em geral. Temos amplas oportunidades de usar o “vil dinheiro” para conquistar estes amigos. Essa Vida não é outra coisa que as “moradas eternas” de que fala o texto.
A parábola e as sentenças a seguir trazem à tona a questão da riqueza no caminho espiritual, com um destaque fundamental: diante do risco de absolutizá-la (endeusá-la), requer-se lucidez (astúcia) para usá-la como instrumento a serviço da vida. O risco é grande e tem uma dupla fonte: a necessidade de segurança e o caráter vazio do ego. Na realidade, as pessoas não buscam o dinheiro, mas a sensação de segurança associada a ele. Porque podemos prescindir do dinheiro, mas não da segurança. Ora, enquanto busquemos a segurança no “ego inflado” será impossível alcançá-la. Porque o ego é vazio, essencialmente inconsistente e, por isso mesmo, radicalmente incapaz de sustentar-nos. Absolutizar o dinheiro é sintoma de permanecer identificados com o ego e fechados na ignorância.
O mais característico do ego é dizer “meu”. E onde se diz “isto é meu”, a visão se estreita e o comportamento se faz ego-centrado. A divinização do dinheiro não é nada mais que a divinização do ego. Desde que o primeiro ser humano da história disse “isto é meu”, fez surgir a rivalidade entre os homens e a luta por ter. O dinheiro representa a capacidade de ter coisas. Mais dinheiro, mais coisas, até que a ânsia de ter coisas se converte em uma dependência doentia (vício). É possível que esta seja a dependência mais antiga da humanidade (“afeição desordenada”). Ela é a origem das guerras, ódios, vinganças, violências, roubos, enganos, mentiras, abusos, injustiças, dominação sobre os outros, etc.
Assim chegamos a classificar os seres humanos em duas categorias: ricos e pobres. Mais ainda, temos associado a felicidade com o ter. Consideramos feliz quem tem, e quem não tem é um infeliz. O ter se converteu, sobretudo nesta sociedade de consumo, em um princípio categórico de vida. Isto nos conduziu a uma desigualdade, cada dia mais escandalosa, tanto no nível pessoal como social, o qual faz crescer as fontes de conflitos de todo tipo. Com a passagem dos anos comprovamos como, longe de alcançar mais igualdade e mais equilíbrio social e pessoal, acontece justamente o contrário.
Sem reverter esta tendência é impossível construir um mundo em equilíbrio onde haja um mínimo de justiça, de paz verdadeira, de igualdade e de direitos humanos básicos para todos os habitantes do planeta.
Quando nossa verdadeira identidade se expande em direção ao outro (eu oblativo), perceberemos o engano de etiquetar algo como “meu” e nos capacitaremos para usar o dinheiro a serviço de todos. “Viver mais simplesmente para que outros possam, simplesmente, viver”. Desse modo, na linguagem da parábola, o “dinheiro injusto” se converte em meio para “ganhar amigos” e ser recebidos nas “moradas eternas”. Porque “eternidade” não faz referência a um futuro projetado indefinidamente. A Vida eterna é a vida plena que experimentamos, aqui e agora, como Presença.
Jesus via muito claramente qual era o verdadeiro futuro para a humanidade, e por isso apela aos seus seguidores para que evitem todo tipo de cobiça; “não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. Na sua perspectiva, há uma incompatibilidade radical entre a paixão pelas riquezas e a paixão pelo Reino. Não é possível amar a Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão, a misericórdia, e ao mesmo tempo amar o dinheiro, isto é, amar ou tomar tudo para si, a acumulação que é base de toda injustiça e de todo desamor: fome, violência, exclusão, exploração...
A fidelidade ao Deus único fica interditada e o seguimento de Cristo fica fragilizado. Aquele que centra sua vida no apego ao dinheiro, põe ali seu coração, seu interesse, sua força e sua afetividade. O dinheiro tem um tal poder de atração que ele se torna rival de Deus. Como todo ídolo, o dinheiro provoca o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas. O apego aos “bens” apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus. O dinheiro satisfaz desejos, dá segurança, confere prestígio, seguramente fama e, acima de tudo, abre portas, soluciona problemas e concede poder.
Sabemos das conseqüências que a sedução do dinheiro exerce e da capacidade que ele tem de obscurecer e distorcer percepção correta da realidade. A afeição ao dinheiro gera autossuficiência e distorce o sentido criatural do ser humano. A pessoa movida pela ânsia do dinheiro e fundamentada nele, não necessita da mão amorosa e providente de Deus. O dinheiro é o suporte de suas seguranças e autossuficiências.
O dinheiro distorce a visão do ser humano sobre si mesmo e sobre as demais coisas criadas. A pessoa deixa de entender-se como dom de Deus, não percebe mais a sua vida como graça recebida; portanto, já não é mais capaz de reconhecer a presença e a atuação de Deus, que a sustenta a cada instante. Deus não é reconhecido como o Senhor que a cuida através de Seu amor providente. O dinheiro também distorce a percepção das outras pessoas, pois fecha o coração à generosidade. O desejo de dinheiro é competitivo, pois é satisfeito à custa da exploração de outras pessoas.
Enfim, o dinheiro só perde seu poder maléfico quando, quem o possui, exerce o senhorio de si e o coloca no fluxo da dinâmica do amor, ou seja, na dinâmica da partilha, da comunhão com os demais, especialmente com os que menos tem. E a vida não se ordena enquanto o fator dinheiro, desestabilizador por seu caráter acumulativo e competitivo, não se situa no seu devido lugar. Assim fazendo, ele perde sua condição de senhor, e os bens e posses voltam a ser o que sempre foram: meios para colaborar a que o ser humano atinja a meta de sua vida.
Quando a força do Evangelho possibilita esta consciência, produz-se o saneamento libertador das relações distorcidas e desordenadas para com o dinheiro, e a orientação fundamental da vida passa da “posse” à entrega, do autocentramento à solidariedade, da acumulação ao serviço desinteressado...
Textos bíblicos: Lc 16,1-13
Na oração:
-Meu compromisso com o Reino afeta meu “bolso”?
-Sei e sinto a força de sedução que o dinheiro exerce e da capacidade que ele tem de atrofiar minha sensibilidade diante da realidade e dos outros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
16.09.2013
“Todos os publicanos e pecadores aproximavam-se dele para ouvi-lo” (Lc 15,1)
“Jesus em más companhias”: Esse título expressa de maneira exata o que foi e o que significou a vida de Jesus desde o nascimento até a morte. E ao longo de toda a vida pública viveu continuamente rodeado de pessoas marginalizadas: pobres, pecadores, prostitutas, publicanos, doentes...
Essa conduta de Jesus é descrita nos três versículos introdutórios às três parábolas dos perdidos: Jesus está rodeado pelos marginalizados e excluídos da sociedade, “os cobradores de impostos e os pecadores”, que se aproximam dele para escutá-lo. Se estas pessoas se aproximam é porque junto a Ele encontram compreensão, compaixão, respeito, acolhida... e, jamais escutam uma reprovação, nem sequer uma desconfiança ou suspeita.
As três parábolas adquirem o caráter de defesa, feita pelo próprio Jesus, do seu modo de vida, do seu comportamento, particularmente do seu relacionamento com os extraviados e excluídos. O Evangelho que Jesus proclama com palavras e ações é a Boa Nova da salvação para os perdidos; e é, ao mesmo tempo, apelo à conversão dirigido aos que se consideravam “justos”, mas se fechavam ao amor e ao perdão.
As três parábolas da misericórdia são, na verdade, as parábolas dos perdidos. O que Jesus quis proclamar ao contá-las foi que o amor, a misericórdia, o perdão e a comunhão são oferecidas por Deus aos “perdidos”. As três parábolas expressam, com uma força insuperável, dois temas particularmente acentuados por Lucas e vinculados entre si: o tema da misericórdia e do perdão oferecidos por Deus a todos os “perdidos”, e o tema da alegria de Deus quando os perdidos são encontrados.
O que escandaliza os destinatários das três parábolas contadas por Jesus, que se consideravam justos e servidores exemplares de Deus, não é propriamente a conduta dos pecadores, mas a conduta de Jesus com relação a eles; Ele permite que os pecadores se aproximem dele, recebe-os de coração aberto, toma a iniciativa de ir ao encontro deles e senta-se com eles à mesma mesa.
Os escribas e fariseus não podiam suportar que Jesus proclamasse que Deus acolhe e perdoa incondicionalmente a todos, que tem um carinho especial, um amor de predileção pelos perdidos; um Deus que vai ao encontro dos perdidos e que transborda de alegria quando os encontra.
Esse Deus “novo” anunciado por Jesus era um Deus “desconcertante”, “escandaloso”, totalmente incompatível com o “deus” legalista dos escribas e fariseus. Por isso, a pregação e o comportamento de Jesus são intoleráveis para eles.
O comportamento de Jesus é uma “parábola viva” do comportamento de Deus com os pecadores. Ao contar as três parábolas, Ele explica e justifica o modo de proceder do Deus Pai-Mãe. As três parábolas nos revelam os sentimentos e as ações do “Abbá de Jesus” que não pode passar sem os filhos perdidos. Por isso os busca até que os encontra. E os acolhe incondicionalmente quando retornam: sem reprovar-lhes nada, sem pedir-lhes explicações, sem ameaças, sem juízo nem castigo...
A trama das três parábolas desvela e revela a presença de Deus onde nunca imaginávamos encontrá-Lo: junto aos rejeitados e afastados; Ele os acompanhando com sua presença misericordiosa, aproxima-se deles e os convida à festa do seu perdão, libertando-os da sua exclusão e isolamento. Mais ainda, quando Deus encontra os extraviados, exulta de alegria, carrega-os em seus ombros, convoca todos para poderem se alegrar com Ele, e organiza um banquete festivo.
As três parábolas condensam toda a história de nossa salvação. Elas contêm a quinta-essência do Evangelho do Reino do Pai proclamado por Jesus, da história do amor de Deus para com a humanidade. Justamente por serem o Evangelho condensado, estas parábolas contadas por Jesus devem ser incessantemente ouvidas e contempladas por todos nós. E depois de contempladas e experimentadas, devemos contá-las, proclamá-las e testemunhá-las, sempre de novo, a todos os homens e mulheres que Deus ama.
Elas são as parábolas da nossa vida, da nossa história, de cada um dos nossos caminhos. Elas são, enfim, as parábolas da nossa origem e do nosso destino. Assim é o Deus em quem nós cremos. Não vale a pena parecer-se com o Deus de Jesus?
Esta é a experiência de Deus que Jesus comunica em suas parábolas mais comovedoras, e a que inspira toda sua trajetória profética. Certamente, as “três parábolas dos perdidos” são as mais belas, as que Jesus mais trabalhou, e provavelmente as que mais repetiu, para contagiar as pessoas com a experiência de um Deus compassivo.
Jesus viveu e comunicou uma experiência sadia de Deus: Ele não projetou sobre o rosto de Deus, medo, juizos, fantasmas… que todas as religiões costumam projetar em Deus. Jesus não experimenta Deus por cima ou à margem da história humana do sofrimento e da exclusão. Ele sente e vive a realidade insondável de Deus como um mistério de compaixão. O que define a Deus não é o poder senão suas entranhas maternais de Pai.
A compaixão é o modo de ser de Deus, sua maneira de olhar o mundo e de reagir diante de suas criaturas.
Jesus repete sempre: “sede compassivos como vosso Pai do céu é compassivo”, e introduz um horizonte totalmente novo na história da humanidade. Jesus não nega a santidade de Deus, mas deixa claro que, o que qualifica e define o Deus santo é sua compaixão; Deus é grande, é santo, não só conosco; Ele não porque rejeita os pagãos, os pecadores e os impuros, precisamente porque em seu coração santo cabem todos. Deus não exclui ninguém; todo aquele que dele se aproxima será acolhido, Deus ama sem excluir ninguém.
A compaixão de Deus é descrita por Jesus não simplesmente para nos mostrar como Deus está pronto a sentir por nós ou a perdoar nossos pecados e nos oferecer uma vida nova e felicidade, mas também a nos convidar a nos assemelhar a Deus e a mostrar a outros a mesma compaixão que Ele tem por nós. Vemos agora que as mãos que perdoam, consolam, curam e oferecem uma refeição festiva tem de ser as nossas.
O Deus da compaixão é o Deus que se oferece a si mesmo como referência e modelo para todo o comportamento humano. É essa a pedagogia do Deus Pai-Mãe: ensinar a ver as coisas não a partir do moralismo da perfeição, mas da compaixão. À luz da parábola de Jesus, pode-se chamar humano somente quem é compassivo, indulgente, misericordioso. Quem tem a coragem de aceitar a própria fragilidade e fracasso.
Texto bíblico: Lc 15,1-31
Na oração: O Deus no qual eu creio é um PAI-MÃE que, desde o início da Criação, tem estendido seus braços numa bênção compassiva, nunca se impondo a quem quer que seja, sempre esperando, nunca deixando cair seus braços em desespero, sempre aguardando que seus filhos voltem e deixem seus braços cansados repousar sobre os seus ombros.
- Contemplar cada um dos GESTOS do “amor louco” de Deus por nós.
Pedir a graça: pedir a graça de sentir sobre nossos ombros as mãos paternas/maternas de Deus que nos dão segurança.
Ser pai-mãe: deixar transparecer em nós os traços paternos e maternos de Deus; as mãos que perdoam, consolam, curam, acariciam e oferecem uma refeição festiva devem ser as minhas mãos; contemplar minhas mãos: foram dadas para serem estendidas no direção dos outros, para oferecer a bênção, para socorrer, ajudar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
11.09.2013
“Quem não se desapega de sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26)
Para poder entender o sentido do evangelho de hoje é preciso recordar que Jesus está a caminho de Jerusalém. Ele adverte à multidão que o seguia sobre as exigências próprias de um autêntico seguimento; para Ele não basta o entusiasmo passageiro e o fervor momentâneo. No fundo, Jesus quer verificar as reais motivações e a sinceridade de atitude daqueles que estão fazendo caminho com Ele. É preciso ter somente um “foco” no caminho do seguimento; há sempre o risco de caminhar em diferentes direções, desviando-se da atenção primeira no caminho de Jesus. Daí a radicalidade das exigências de Jesus: “desapegar-se da família”, “carregar a cruz”, “renunciar a tudo que tem”. As três se resumem numa só: disponibilidade total. Sem ela não pode haver seguimento.
Uma das interpretações equivocadas deste radicalismo é entender a mensagem de Jesus como que dirigida a um grupo privilegiado, que seriam os cristãos de primeira linha. Jesus não se dirige a uns poucos, mas à multidão que o seguia. No entanto, o seu apelo é dirigido a cada um pessoalmente: “se alguém vem a mim...” A resposta deve ser pessoal e adulta.
Para a primeira exigência a chave está na frase: “... inclusive da sua própria vida”. O amor a si mesmo pode ser nefasto quando se refere ao falso eu que desemboca no egoísmo. Esse falso eu também tem seu pai, sua mãe, seus filhos e irmãos. O ego busca “os primeiros lugares”, sonha destacar-se, ser visto, sentir-se reconhecido; ama o aplauso e os gestos de admiração; encanta-se com roupas especiais e sinais distintivos de seu valor (títulos); quer sempre ter razão e impor-se aos outros...Frente a esta tendência, a palavra de Jesus não é só uma “receita”; Ele vai à raiz: o que Jesus pede é a desapropriação do ego com seus interesses e parentes; apoiando nossa existência no falso eu, falseamos toda nossa vida e a frustramos.
“Desapegar-se de sua própria vida” não significa negar o que somos, mas o que julgamos ser e não somos. Seguir Jesus é deixar de viver para o “eu”, é descentrar-se, não ser mais o centro de seu próprio projeto. O seguimento brota, pois, de uma “sintonia profunda” com Ele, esvaziando nosso “eu inflado” para entrar em comunhão com seu modo de viver e com seu Projeto.
Jesus é presença sem mescla de “ego”: o centro de sua vida não está em si mesmo, mas na comunhão com a vontade do Pai e na solidariedade com os últimos e sofredores. Diante d’Ele, brota em nós uma “ressonância interior”, absolutamente iluminadora e motivadora, que desperta, ativa e mobiliza a segui-lo, descentrando-nos de nós mesmos. Esta nova experiência modifica a maneira de perceber toda a realidade: a família, os outros, os bens, o próprio eu... A vida mesma é percebida de um modo novo.
Aqui não se trata de uma rejeição da família, mas de considerá-la a partir de outra perspectiva, mais ampla e rica: nosso olhar e nosso coração centrado na pessoa de Jesus. Também não se trata de comparar o amor a Deus e o amor aos membros de nossa família. O seguimento não é incompatível com o amor à família. Seguir Jesus implica um amor que vai mais além de um amor que nasce do sentimento familiar, mas não estará nunca contra. Seguir Jesus nos ensinará a amar mais e melhor também nossos familiares.
O seguimento de Jesus não pode consistir numa simples renúncia, ou seja, em algo negativo, mas de eleger o melhor para nós. Trata-se de uma oferta de plenitude. É neste contexto que aflora uma compreensão mais profunda da expressão “carregar a sua cruz”. Nós cristãos temos esvaziado a Cruz de seu verdadeiro significado. Há alguns que pensam que “carregar a cruz” é buscar pequenas mortificações, privando-se de satisfações para chegar – pelo sofrimento – a uma comunhão mais profunda com Cristo. Mas Jesus quando fala da Cruz não está convidando a uma “vida mortificada”.
Há outros para quem “levar a cruz” é aceitar passivamente as contrariedades da vida, as desgraças ou adversidades. Mas a Cruz é consequência de uma opção pelo Reino em favor dos últimos. “Carregar a sua cruz”, portanto, significa acolher aquilo que diariamente cruza o meu caminho; é aceitar-me com todas as minhas contradições.
“Tomar a sua cruz” significa abraçar-me com todas as forças e todas as fraquezas: os aspectos saudáveis e os doentios, as qualidades vistosas e as feias, as partes imaculadas e as manchadas, os sucessos e os fracassos, as coisas vividas e as coisas perdidas, o consciente e o inconsciente.
O cristão não ama e nem busca o sofrimento, não o quer nem para os outros e nem para si mesmo. Seguindo os passos de Jesus, luta com todas suas forças para arrancar o sofrimento do coração da existência. Mas, quando é inevitável, sabe “levar a Cruz” em comunhão com o Crucificado.
A Cruz que devemos levar atrás de Jesus é a mesma que Ele levou: a Cruz como consequência da fidelidade até o final. A Cruz nunca será um fim nem uma meta. Nem sequer um meio para algo. A Cruz de Jesus e daquele que o segue, sempre é consequência de coerências e de fidelidades ao Evangelho. É neste horizonte de fidelidade até o fim no seguimento que Jesus apresenta duas pequenas parábolas: a construção de uma torre e o rei que vai fazer uma guerra.
A torre é a imagem da humanização. Ela é redonda, tem sua própria beleza e aponta para a completude do ser humano; seus fundamentos se encontram na terra e, mesmo assim, se estende ao céu. O ser humano precisa de um fundamento sólido na terra, em sua biografia, para então se erguer e se tornar também um ser humano do céu. A parábola, porém, nos convida a analisar cuidadosamente o material que temos à nossa disposição. Esse material são os nossos dons, os recursos, as experiências da nossa vida, o amor que vivenciamos, mas também nossos limites, nossos riscos e os ferimentos da história de nossa vida. A nossa biografia é o material que devemos moldar; precisamos trabalhar com o material que temos à nossa disposição. Por isso, não devemos nos comparar com as torres dos outros; nossa torre não precisa ser maior nem menor do que as dos demais, ela deve simplesmente corresponder à nossa biografia e à nossa essência interior.
Com essa imagem da construção da Torre, Jesus nos convida a descobrir o prazer de construir nossa própria torre no seu Seguimento, sem nos fixar em imagens falsas do nosso eu, mas sim na imagem interior que Deus tem de cada um de nós.
Do mesmo modo, a parábola do rei que vai à guerra com um exército de 10 mil soldados não terá nenhuma chance de vencer a batalha contra um rei que vem ao seu encontro com 20 mil soldados. Ele desperdiçará toda sua força nessa luta. O mesmo acontece com algumas pessoas que desperdiçaram toda sua força na luta contra si mesmas e contra aparentes erros e fraquezas. A força que desperdiçam falta para vencer na vida.
No caminho do Seguimento nunca estaremos livres dos nossos inimigos interiores (erros e fraquezas); por isso Jesus nos aconselha fazer as pazes com tais inimigos e transformá-los em amigos. Em vez de 10 mil, passarei a ter 30 mil soldados e as fronteiras, dentro das quais eu posso me deslocar livremente, são ampliadas. Portanto, obtenho assim mais capacidade e força e um horizonte interior mais amplo.
(cf. Anselm Grun – Jesus como terapeuta)
Texto bíblico: Lc 14,25-33
Na oração: Viver humanamente consistirá em deixar o Espírito circular livremente em todos os cômodos de nossa morada, arejando-os, ventilando-os, religando-os, dando-lhes vida, reorientando-os. A missão do Espírito é ajudar-nos a fazer a travessia, o mergulho interior, tanto nas sombras como nas zonas de luz, até ao centro de nós mesmos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
02.09.2013
“Quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos”. (Lc 14,14)
Uma das chaves de compreensão da pessoa de Jesus é a relação d’Ele com a “mesa da refeição”.
Em todos os encontros de Jesus com os excluídos do Reino, Ele sempre os incluiu em suas refeições. Essa foi a sua atitude que mais causou espanto e escândalo: a partilha nas mesas com pobres e pecadores. Para Jesus, a mesa é para ser compartilhada com todos; a partilha do pão com publicanos e pecadores fazia parte das práticas transgressoras de Jesus.
Comendo e bebendo com todos os excluídos, Jesus estava transgredindo e desafiando as formalidades do comportamento social e das regras que estabeleciam a desigualdade, a divisão, a separação... Jesus revelava uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos. Ele não só transitou por tantas mesas, mas instituiu a grande mesa para a festa, a intimidade, a memória: a “mesa da Ceia Pascal”.
A partir do compromisso de Jesus com a “mesa da vida”, nossa refeição à mesa nunca mais foi a mesma, pois Ele elevou e plenificou de sentido da mesa-refeição. A humanidade descobriu junto à mesa o melhor jeito de se encontrar para celebrar a vida, reconstruir relações mais saudáveis, romper as distâncias e superar as desigualdades.
Em muitas culturas, a mesa da refeição é, ainda, o lugar mais importante da casa. Para a “mesa da refeição” convergem todos os encontros; ela é o centro para onde se voltam mentes e corações e não apenas estômagos vazios; ela se torna o grande palco da vida e nesse palco todas as histórias pessoais e coletivas são recontadas, revividas e revitalizadas, dando sentido à vida cotidiana.
Em cada encontro uma surpresa, uma riqueza revelada para os que se aventuram dela tomar parte. O “pôr-se-à-mesa” é mais do que aproximar-se da fonte da alimentação. É procurar a comunhão, a união, o convívio. Por isso, os que se assentam junto à mesa são “comensais” (companheiros de mesa).
A mesa tem o poder de romper fronteiras e hierarquias, pois quem dela se aproxima é bem-vindo por ser pessoa, gente, e não por ostentar títulos, status... A mesa é sempre oblativa, acolhedora, congrega as diferenças, quebra as hierarquias sociais...
A mesa funciona, então, como oportunidade ou lugar privilegiado, onde se elabora e se vive um encontro de profundidade. A mesa faz a família, reforça a fraternidade, intensifica a amizade.
Podemos afirmar que, partindo da “espiritualidade da mesa”, em torno do gesto de comer em comum, desvelamos um “modus vivendi” de um determinado povo, sua vida, seus hábitos e seu jeito de ser. A nossa conduta numa refeição revela também o nosso agir social. Nesse encontro, nós comensais, vamos tecendo relações sociais de diálogo, de projetos, de compromissos...
Em última instância, o que nos reúne junto à mesa não é o simples fato de poder comer; existe, antes, algo que nos mantém unidos: um ideal, uma amizade, um laço de família, uma função comum, um acontecimento... Supõe-se que reine entre nós um conhecimento mútuo, ou ao menos um desejo profundo de estreitar laços de amizade.
Nós nos aproximamos da mesa como quem está diante de um território sagrado, porque sagrados são os alimentos e quem deles se alimenta.
À “mesa da refeição” encontramos pessoas abertas, lúcidas de seu momento, que não se deixam abater pelos fracassos e nem mesmo pelo sofrimento. São pessoas capazes de partilhar, de falar de si, de suas alegrias, conquistas, sonhos, mas também de suas dores, desânimos e cansaços. Essas pessoas buscam, junto à mesa, alimento para a vida; elas tem fome de algo para além do pão da mesa.
O nosso hábito de fazer refeição também revela traços de nossa personalidade e de nossos comportamentos cotidianos. O nosso modo de estar à mesa revela nossas habituais atitudes no relacionamento com os outros. A mesa é também lugar de denúncia de nossos fechamentos, de nossas pressas, de nossas resistências ao diálogo, de nossos medos, de nossa dificuldade em acolher o diferente...
Outras “mesas” desalojaram a mesa da refeição e ocuparam o lugar sagrado da partilha, da comunhão. Por isso, em muitos lugares e lares, a mesa esvaziou-se de sentido e passou a atender apenas a interesses mesquinhos, fazendo as pessoas conviverem tranqüilamente com a perversa dinâmica da exclusão.
A mesa pode ser corrompida e tornar-se o lugar de rupturas e de frieza. A mesa que funciona como estrutura hierárquica, como posição social, se torna pobre, dissimulada, falsa e até artificial. Há mesas para tudo; mesas solitárias, mesas da corrupção, do poder, da exploração..., tudo o que envolve interesses, seduções, vaidades...
A frieza tomou conta das relações em torno à mesa; a ausência da ritualidade aumentou a distância entre seus participantes. Há uma verdadeira profanação da mesa ao ser transformada em lugar de conchavos sujos, negociatas interesseiras, tramas maldosas.
No Evangelho de hoje, somos convidados a adentrarmos no território sagrado, consagrado, chamado “mesa da refeição”. Tão rica é essa mesa que sua espiritualidade, vista como manancial da vida, não exclui nenhum momento: situações tristes, felizes, momentos de sofrimento, de luta, de vitória...
Nesse espaço, onde o Eterno quer habitar, é que encontramos o bálsamo e o alívio para o nosso corpo e nossa existência psíquica e espiritual. Nessa fonte sagrada, o sofrimento pode ser compartilhado, a tristeza transformada em alegria, as trevas em luz, o desejo em realidade, a esperança pode ser reacendida.
É nessa mesa fecunda de alimentos que o Sagrado irrompe em meio aos nossos esquemas prévios, nos fazendo diferentes, separados da torrente massificante do dia-a-dia. Ela nos sacia para voltarmos ao cotidiano, convictos de que não vivemos fechados nele, mas somos seres de passagem, em constante êxodo: “passar” da mesa de refeição como lugar onde matamos nossas fomes à mesa de refeição como espaço do sagrado. A mesa, com seus cantos e encantos, tem uma mística; ela carrega, nas suas entranhas, a força de uma peregrinação, o impulso para fazer caminho.
A mesa é ponto de chegada e ponto de partida; é “lugar” de celebração e de envio, de festa e de missão. Ao redor da mesa nos movemos, somos, existimos e nos descobrimos para além de nós mesmos. É ela que nos humaniza, nos expande em direção aos outros, nos faz solidários e sensíveis, sobretudo àqueles que não tem acesso à mesa da vida (os pobres, os excluídos...)
Se o ativismo diário fragmenta nossa existência, a mesa pode tornar-se o lugar do religamento das dimensões humanas, dessacralizadas pelas variadas formas de violência, internas e externas.
Essa mesa bendita nos coloca em comunhão não só com o mundo exterior, mas também com o nosso mundo interior. Ela, como lugar do Sagrado, nos protege do estreitamento da vida cotidiana, que tende a nos consumir, a fragmentar nossa identidade pessoal.
Assim sendo, é da espiritualidade da mesa, da refeição e da festa que nós cristãos, devemos alimentar a nossa espiritualidade cotidiana. Mas, para isso, precisamos resgatar a mesa como espaço do sagrado, do encontro com o outro e consigo mesmo.
Textos bíblicos: Lc. 14,1.7-14
Na oração: É urgente sermos criativos o suficiente para superarmos os desafios, na esperança de que venha o despertar da “nova mesa”, com gosto de pão, de vida fraterna, de compromisso...
Mesa criativa, solo de onde brota o alimento material, emocional, psíquico e espiritual em suas múltiplas formas, cores, aromas e sabores do Reino do Pão e da Festa da Vida.
- Quê lugar tem a mesa da refeição no cotidiano de sua vida familiar?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
27.08.2013
“Esforçai-vos por entrar pela porta estreita…” (Lc. 13,24)
21º Dom Tempo Comum
Há frases no Evangelho que, por serem tão duras e incômodas para nossos ouvidos, dão impressão de que nos encontramos diante de um cristianismo tenebroso e ameaçante; muitas vezes, quase inconscientemente, as colocamos entre parêntesis e as esquecemos para não sentirmos interpelados por elas. Uma delas é, sem dúvida, esta que escutamos hoje dos lábios de Jesus: “esforçai-vos por entrar pela porta estreita...”
O chamado de Jesus a “entrar pela porta estreita” pode dar a impressão de um rigorismo estreito, rígido, legalista e estéril, em lugar de orientar-nos para a verdadeira radicalidade exigida por Ele. Entrar pela “porta estreita” não é um moralismo raquítico e sem horizontes, mas uma atitude exigente e responsável: a porta pela qual entram aqueles que se esforçam por viver fielmente o amor radical a Deus e ao irmão, aqueles que procuram agir pensando nos outros, aqueles que vivem com sentido de solidariedade e comunhão.
Não basta ser filho de Abraão. É necessário acolher a mensagem de Jesus e suas profundas exigências. Jesus chama à radicalidade e nos convida a mudar a orientação do coração para viver dando primazia absoluta ao amor de Deus e aos irmãos.
O personagem anônimo que faz a pergunta a Jesus, no evangelho de hoje, não está muito interessado pela sua salvação; ele tem dúvidas quanto à salvação dos outros: pergunta pelos que vão se salvar. Não pergunta “se ele se salvará”. Além disso, dirige a Jesus uma pergunta mesquinha. Não pergunta se serão “muitos” mas se “serão poucos”. Parece como aqueles que lhes interessa somente as notícias raras, as más notícias. Dizer que todos vão se salvar não é notícia. Mas dizer que serão poucos, isso dá a impressão de ser uma notícia chamativa, porque seria falar do fracasso de Deus. E isso sim é importante.
No fundo, a pergunta daquele homem desconhecido é uma ofensa ao amor de Deus que quer que todos se salvem e que enviou o seu Filho não para condenar a alguém mas para salvar a todos. Na porta do céu nunca encontraremos este letreiro “esgotadas as entradas”. Jesus não responde à curiosidade. E, como sempre, responde mostrando-lhe o caminho da salvação. Mostra-lhe a porta pela qual se chega à salvação; porta suficientemente larga pela qual todos podemos entrar. Acaso, não disse Ele mesmo no Evangelho de João: “Eu sou a porta; quem entrar por mim, será salvo” (10,9)?
“Entrar pela porta estreita” é seguir Jesus, aprender a viver como Ele, assumir seu estilo de vida e sua opção pelo Reino. Jesus é a porta sempre aberta; ninguém a pode fechar.
O ser humano sempre se perguntou pela vida futura, pela salvação. Frente a esta inquietação, a resposta de Jesus nos apela a “entrar pela porta estreita”. Mas o texto não diz em quê consiste exatamente. Ao longo da história da espiritualidade cristã esta frase foi entendida como “sacrifício”, “mortificação”, “renúncia”... Uma leitura mais serena daquelas palavras, no entanto, nos faz ver que não se pode confundir “porta estreita” com “conquista de méritos e recompensas”, inflando um “eu religioso e perfeccionista”. Aliás, um “eu inflado”, compulsivo, cheio de si, obeso...não tem como passar pela “porta estreita”.
Para entrar pela porta estreita é preciso despojar-se de tudo aquilo que foi sendo acumulado ao longo da vida: posses, honras, consumismo, vaidades, poder, prestígio... “Entrar pela porta estreita” é desapropri-ação do eu, é desinflar-se, deixar transparecer a verdadeira identidade de meu ser.
A parábola de Jesus também põe em questão nossas falsas imagens de Deus. O Deus de Jesus não é um Deus mesquinho, que prepara a festa para um número restrito. O que existe é um chamado universal e permanente à conversão. A “salvação” consiste em “sentar-se à mesa no reino de Deus”, uma imagem festiva, convivencial e comensal, com a qual normalmente se designa a Plenitude divina na bíblia. A mesa já está posta mas só poderemos ter acesso para saborear o banquete se rompemos o balão do eu cheio de si que anda buscando migalhas, colocando nelas o sentido da própria existência.
Para relacionar-nos humanamente com o Deus que Jesus nos revelou, o mais urgente que devemos fazer é quebrar as “falsas imagens” d’Ele que carregamos em nossas consciências, em nossa intimidade mais secreta. E a primeira e principal imagem falsa é que Deus é uma ameaça da qual devemos nos proteger.
De fato, a presença de Deus na vida e na história de muitas pessoas é vivida secretamente sob as vestes do temor e do medo. Um “Deus” que a todos pedirá contas no juízo, onde teremos de responder pelo mau uso de nossos dons; um “Deus” que nos castiga com desgraças, por causa de nossos fracassos; um “Deus” interesseiro, um ídolo que nos amarra e não nos deixa viver, que impõe obrigações duras e dificulta nossa entrada no banquete; um “deus-patrão” que nos prende com contratos e cobranças; um “Deus” que é um constante perigo, causador do Grande Medo que nos paralisa.
Estas falsas imagens de Deus, no entanto, causam dano e afetam a vida em todas as suas dimensões (pessoal, familiar, social, espiritual). Por detrás destas imagens se encontram crenças religiosas às quais chamamos crenças tóxicas, porque envenenam a mente e o coração e não nos deixam amadurecer, nem no nível humano nem no nível espiritual.
Estas crenças tóxicas podem gerar personalidades dependentes e submissas, neuróticas e ansiosas, medrosas e passivas, moralistas e perfeccionistas; ou talvez personalidades agressivas, dominantes, vingativas, controladoras. São o reflexo de uma imagem distorcida de Deus e “chegamos a nos parecer com o Deus que projetamos”. Esta distorção é o resultado, muitas vezes, de uma educação rigorosa e moralista, produto de uma espiritualidade dualista que coloca a perfeição como o ideal de todo cristão e o menosprezo de tudo o que não é “espiritual”. Estas crenças religiosas geram uma fé tóxica ou insana porque nos afastam do Deus de Jesus e podem favorecer a dependência religiosa e o abuso espiritual.
Tomar consciência das imagens distorcidas que temos de Deus e das crenças tóxicas que as sustentam, aceitar e acolher tudo o que é humano, são dimensões que favorecem o crescimento e a maturidade e nos permitem viver em equilíbrio. Poderemos, assim, viver uma espiritualidade que nos ajude a processar a vida a partir da imagem de Deus mais de acordo com o Deus de Jesus. Um Deus misericordioso, que toma a iniciativa e nos ama primeiro, nos ama tal como somos e nos capacita e “entrar pela porta estreita”.
Com essa mensagem forte, Jesus nos convida a procurar e encontrar a chave para abrir a porta da casa do próprio interior, a entrar em contato com nosso coração, com o mundo do inconsciente, com o mundo dos nossos sentimentos, impulsos, dinamismos... de uma vida plena. Quem não entra em contato com sua interioridade fica excluído da vida.
Conhecemos a imagem da porta nos nossos sonhos. Quando sonhamos com uma porta trancada, isso significa que perdemos o contato com nosso interior, com nosso coração, com nossa alma e vivemos apenas o lado externo. As pessoas que o dono da casa afirma não conhecer vivem apenas na exterioridade. Elas não tem uma vida ruim. Mas tudo que fazem é apenas exterioridade e não tem nenhuma relação com seu coração. Até mesmo sua fé é meramente exterior. Elas vão à Igreja e cumprem os rituais. Elas até acreditam em Jesus, dizem ter comido e bebido com Ele e ter ouvido seu ensinamento. Mas seu coração está fechado.
Jesus não consegue ter acesso a ele. Já não é mais “porta estreita” mas “porta fechada”.
Texto bíblico: Lc 13,22-30
* Poderia identificar algumas falsas imagens que você tem de Deus?
Como se traduzem em sua vida cotidiana estas imagens? Em quê condutas e atitudes concretas?
*Quais são as “gorduras inúteis” (apegos) acumuladas em seu interior, que dificultam sua caminhada pela vida e impedem passar pela “porta estreita” do seguimento de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
19.08.2013
“Maria entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel” (Lc 1,40)
Assunção de Maria
A festa da Assunção nos revela que em Maria realiza-se a situação final, situação prometida a toda humanidade: “ser um dia de Deus e para Deus”; Maria o é desde o início (imaculada) até o final (assunção), através de uma fidelidade de toda a sua vida.
Maria foi “assunta ao céu” porque “levantou-se apressadamente” em direção ao serviço; ela foi “assunta” porque assumiu tudo o que é humano, porque “desceu” e se comprometeu com a história dos pequenos e marginalizados. Maria foi glorificada porque se fez radicalmente “humana”. Por isso, Deus a engrandeceu plenamente.
Crer na Assunção de Maria implica crer na exaltação dos pequeninos e humilhados, dos pobres esquecidos, dos injustiçados sem voz, dos sofredores sem vez, dos abandonados sem proteção, dos misericordiosos descartados, dos mansos violentados...
O Evangelho de hoje nos aponta que, quando Deus entra e atua na história das pessoas, Ele as move para irem “apressadamente” ao encontro dos outros, para serví-los nas suas necessidades, para comunicar a alegria pela salvação recebida, e para alegrar-se com os outros pelas graças que eles receberam.
Depois de receber o chamado de Deus, anunciando-lhe que seria mãe do Messias, Maria se põe em marcha, sozinha. Quem foi “agraciada” por Deus não fica só contemplando as maravilhas que Deus realizou nela, mas sai para proclamá-las. Quem tem consigo o Salvador não pode guardá-lo só para si. Começa para Maria uma vida nova, a serviço de seu Filho. Ela marcha “apressadamente”, com decisão; sente necessidade de compartilhar sua alegria com sua prima Isabel e de colocar-se o quanto antes a seu serviço. Sua “pressa” está dinamizada pelo fervor interior, pela alegria e, sobretudo, pela fé.
Tudo acontece numa aldeia desconhecida, nas montanhas de Judá. Duas mulheres grávidas conversam sobre o que estão vivendo no íntimo do coração. São elas que, cheias de fé e do Espírito, melhor captam o que está acontecendo. A Visitação realiza o encontro entre a mãe do precursor do Messias e a mãe do Messias, e no entanto, tudo se desenvolve numa casa normal, entre gente simples, na árida região montanhosa da Judéia. A atmosfera é de alegria. A Palavra de Deus adentra a intimidade e o calor familiar de uma casa, e anuncia um evento glorioso e universal.
O encontro das duas futuras mães é uma cena comovedora. Não estão presentes os homens. Zacarias ficou mudo. José está surpreendentemente ausente. Somente duas mulheres simples, sem nenhum título, nem relevância na religião judaica ou social, ocupam toda a cena. Maria, que leva consigo Jesus a todas as partes, e Isabel que, cheia do espírito profético, se atreve a bendizer a sua prima sem ser sacerdote.
Maria entra na casa de Zacarias, mas não se dirige a ele. Vai diretamente saudar a Isabel. Há muitas maneiras de “saudar” as pessoas. “Saudar” é despertar a saúde (o que é sadio, vivo) no outro. Com sua saudação, Maria traz paz e a casa se enche de uma alegria transbordante. É a alegria que Maria vive desde que escutou a saudação do Anjo: “Alegra-te, cheia de Graça”.
Todo o Evangelho da infância está envolto em um clima de oração, o qual se espalha como uma brisa que penetra e interpreta todos os acontecimentos. Os cânticos presentes no texto de Lucas exercem a função de interpretar a história, penetrar os segredos da ação de Deus, consolar e revelar. Feliz o povo em que há mulheres que acreditam, portadoras de vida, capazes de irradiar paz e alegria; mulheres que transmitem fé a seus filhos e filhas.
A oração de Isabel (Lc 1, 42-45): trata-se de uma proclamação; a verdadeira oração não é principalmente expressão de um sentimento, mas celebração e reconhecimento da ação de Deus nos pobres e nos humildes. Deus está sempre presente na origem da vida. As mães, portadoras de vida, são mulheres “benditas” pelo Criador: o fruto de seus ventres é bendito. Maria é a “bendita” por excelência: com ela nos chega Jesus, a bênção de Deus ao mundo. O Pai, através do instrumento frágil de uma mulher, ignorada pela sociedade oriental, apresenta ao mundo a sua Salvação.
O grito de alegria de Isabel expressa, com o pulo de alegria de João, a chegada da Salvação que entra na nossa história através de Maria. É um convite a todos para que se unam ao seu louvor e à sua alegria. As palavras de Isabel são a primeira profissão de fé em Jesus como Messias, isto é, como “Cristo”.
Magnificat: (Lc 1,46-55) Contra uma concepção cada vez mais “consumista” do mundo, contra o triunfo do possuir, do ter, da escravidão das coisas, o Magnificat exalta a alegria do partilhar, do perder para encontrar, do acolher, do admirar, da felicidade da gratuidade, da contemplação, da doação.
Nenhum outro texto nos revela de maneira tão densa e tão profunda a vida interior de Maria, os pensamentos e os sentimentos que invadem sua alma, a consciência de sua missão, sua fé e sua esperança, sua experiência de Deus, enfim.
Maria canta agora a realização das esperas e das esperanças cantadas, nas horas de júbilo e nas horas de pranto, pelo povo de Israel; ela fundamenta-se na esperança-certeza da fidelidade amorosa de Deus.
O Magnificat, na sua estrutura fundamental, é o canto das escolhas caprichosas de Deus, que tem um “fraco” pelos pobres, por todos os infelizes e os oprimidos; poder e riqueza não gozam de nenhum prestígio aos seus olhos.
Ali há a convicção de que Deus reverterá a sorte desta invertida história humana. O poder e a riqueza foram derrubados, são ídolos mortos.
A oração de Maria traz à tona as grandes coisas rea-lizadas por Deus, seus atos salvíficos, sua fidelidade, sua palavra eficaz, seus atributos fundamentais, que Maria reúne na trilogia poder-santidade-misericórdia.
Como fazer esta contemplação?
Quem ocupa o centro da cena, do começo ao fim, é a figura de Maria. Nela devem concentrar-se, portanto, nosso “olhar, escutar, observar”. Por isso, talvez, o melhor modo de fazer esta contemplação seja o que propõe S. Inácio no “segundo modo de orar” (EE. 249-257), isto é, “contemplar o significado de cada palavra” ou frase, demorando-se “na consideração dela (da palavra ou frase) tanto tempo quanto nela encontrar significações, comparações, gosto e consolação, em considerações relacionadas com a mesma” (EE. 252).
Pedir a graça: Ao longo da oração devemos pedir que as palavras de louvor e de libertação cantadas por Maria penetrem no nosso coração e produzam frutos de conversão, de alegria e de gratidão; devemos pedir especialmente a graça de louvar a Deus, de cantar com um coração transbordante de júbilo, pela salvação recebida.
Peçamos também que as palavras do Magnificat transformem nossos valores, nossas atitudes e nossas práticas na linha da justiça e da misericórdia do Evangelho do Reino, proclamado por Jesus e antecipado no cântico de sua mãe.
Rezar as “marcas salvíficas” de Deus na própria história pessoal.
Gesto: no interior, ainda se conserva o hábito de “fazer visitas” (visitar famílias, doentes...); é preciso recuperar este gesto tão humano e humanizador. Nos grandes centros vivemos fechados em apartamentos, condomínios, com um arsenal de segurança, impedindo a aproximação até dos parentes.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
13.08.2013
“Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (Lc 12,35)
19º Dom. Tempo Comum
A parábola deste domingo nos fala de “velar”, de “estar preparados”: é um chamado a despertar. Estamos despertos à medida que mantemos uma “atenção plena” ao que acontece em nosso interior e ao nosso redor. Um dos riscos que hoje nos ameaçam e esfriam nosso fervor no seguimento de Jesus é cair numa vida superficial, mecânica, rotineira, massificada... Com o passar dos anos os projetos, metas e ideais vão se apagando e perdemos a capacidade de dar um sentido novo à nossa existência.
Na vida pessoal de fé ou na caminhada da Igreja há momentos em que se faz noite. É muito fácil apagar as luzes e viver adormecidos; basta fazer o que fazem quase todos: imitar, acomodar-se, ajustar-se ao contexto social; basta viver buscando seguranças externas e internas, sempre agitados pela pressa e ocupações; basta gastar a vida inteira “fazendo coisas” e sem descobrir nela nada grande ou nobre... Chega um momento em que já não sabemos reagir enquanto a vida vai se apagando em nós.
Como manter viva a esperança? Como não cair na frustração, no cansaço ou no desalento? Onde encontrar um princípio humanizador, capaz de nos libertar da superficialidade ou do vazio interior?
Para despertar é preciso tomar consciência da luz presente em nosso interior e alimentá-la; nós nos tornamos mais “lúcidos” (portadores de luz) quando tomamos consciência da superficialidade de nossa vida, do ativismo, da vida “normótica” e sem direção...; a verdade abre espaço em nós quando reconhecemos nossos enganos; a paz chega ao nosso coração quando des-velamos a desordem em que vivemos. Despertar é dar-nos conta de que vivemos adormecidos.
Usando a imagem da “lâmpada acesa”, Jesus nos provoca a despertar de nossa indiferença, passividade ou do descuido com o qual vivemos nosso discipulado. É a luz interior que deve ser alimentada para inspirar nossos critérios de ação, força que impulsiona nosso compromisso e esperança que anima nosso viver diário.
Somos chamados a sermos pessoas “ardentes”, “luz que acende outras luzes”, ou seja, pessoas que experimentam a vida como crescimento constante. Sempre buscam algo mais, algo melhor. Para elas, a vida é inesgotável: uma descoberta na qual sempre se pode avançar.
Tal como o sentinela, precisamos afinar nossos ouvidos, ter uma visão mais ampla, arejar nossas mentes e transformar nossas práticas cotidianas. O importante é situar-nos onde a vida está germinando. É saber perceber que “algo novo está nascendo”.
A vigilância não é medrosa e pessimista; é alegre expectativa do Deus que nos surpreende no hoje de nossa existência; é chamado a viver com lucidez e responsabilidade, sem cair na passividade ou letargia. Muitos pertencem à “confraria do último dia”. Hoje não, talvez amanhã, quem sabe mais adiante.
“Não morras na sala de espera” (Hervey Cox). As “salas de espera do espírito” estão cheias de gente que simplesmente está ali, ali mora e permanece, ali vive e morre. O fato de que já estejam na “sala de espera” lhes dá a impressão de que já fizeram alguma coisa, já começaram a viagem.
Para romper com esta passividade, é necessário combinar vigilância e atenção espiritual aos “sinais” do Deus imprevisível na nossa realidade concreta. Desprendimento, vigilância, serviço... nascem da certeza do dom de uma Presença inesperada. Trata-se de acolher a “irrupção” de Deus, como surpresa e novidade.
A encruzilhada histórica que estamos vivendo parece pedir com mais urgência tal atitude. Por isso é preciso estar despertos e viver a “espiritualidade da espera”: isso implica viver o momento presente, porque qualquer momento é o definitivo, é viver o tempo habitado por Deus.
Uma falsa visão da vida futura desumaniza a vida presente e nos impede de viver em plenitude o momento atual. A vida presente tem pleno sentido por si mesma. O que projetamos para o futuro já está aqui e agora, ao nosso alcance. Aqui e agora podemos viver a eternidade, já que podemos conectar com o Deus surpreendente em nós.
Nessa perspectiva, o tempo é oportunidade para servir a Deus e aos outros. O tempo é ocasião para olhar a realidade cotidiana com respeito, ou seja, com atenção e cuidado; o tempo é “lugar” onde servir. Esse serviço é também espera. E essa espera é serviço. Elegemos esperar Deus servindo, servindo-O.
A “espera” tem, sem dúvida, um significado ativo; a “espera” não pode separar-se da busca e do encontro, do agir, do amar e servir. A espera é agradecida, é missionária, é autêntica sede de Deus. Há dois tipos de “espera” que manifestam graficamente duas concepções contrapostas da espiritualidade.
- De um lado estaria a imagem da “espera de um ônibus”: trata-se tão somente de ter paciência e ocupar o tempo, de “deixar que o tempo passe”, e que passe o mais rapidamente possível. Estamos seguros que o ônibus vai chegar. O tempo de atraso do ônibus é, quase sempre, tempo perdido. Nada podemos fazer para que o ônibus chegue antes. Há pouco lugar para o imprevisível, para a novidade.
Há uma maneira de viver a espiritualidade cristã que conhece perfeitamente todo o caminho a percorrer (inclusive já sabe de antemão qual é a vontade de Deus); aqui não há lugar para mudanças e para acolhida das surpresas de Deus. Mera repetição.
- Mas há outro tipo de “espera”: é a imagem da mulher grávida que vive em “estado de espera”; a chegada do filho que há de vir não só é desejada, mas antecipada, sonhada... Antes de sua chegada, ele já está presente, faz parte da vida da futura mãe e a condiciona. É uma espera que também traz medos, que transforma a vida e que a transformará ainda mais. Essa espera muda o corpo, a psicologia, a identidade, o ser da mãe. É uma espera que, com frequência, dá sinais de “chegar antes”, de surpresa. É uma espera na qual a futura mãe deseja “dar as boas vindas”; uma espera habitada por aquele que há de vir, uma espera que a enraíza na vida.
Esta última imagem nos ajuda a perceber que há uma maneira de viver a espiritualidade que está aberta a “um Deus sempre maior, sempre surpreendente, sempre novo”. Um Deus que dá e se dá, que habita nas coisas, que trabalha por nós, que desce às nossas vidas e aos nossos tempos.
Esta segunda maneira de esperar pressupõe que toda a realidade está habitada por Deus. Esta espera significa pôr em alguém nossa esperança, e esse Alguém não sou eu nem minha atividade; uma esperança que carrega uma espera para que não se trate simplesmente de uma ilusão, para que estejamos preparados para receber esse Alguém. “Viver desta maneira a experiência humana, o tempo, equivale a viver cada momento de frente a Deus, ao definitivo. O aqui e agora se densifica de tal maneira que já não é preci-so buscar mais ou outra coisa. A vida adquire a plenitude e intensidade do último” (J.M. Mardones).
Textos bíblicos: Lc 12,32-48
Na oração: Para viver despertos é importante viver com mais calma, cuidar do silêncio e estar mais atentos aos chamados do coração. Só quem ama e serve, vive intensamente, com alegria e vitalidade, despertado para o essencial. Uma certeza podemos ter: o Espírito está sempre pronto a criar, recriar, a transformar, a renovar e “fazer novas todas as coisas”, abrindo-nos a um novo tempo com a feliz esperança de “novos céus e nova terra”, num mundo outro e pleno de vida.
“O amadurecimento da experiência e uma visão de fé mais profunda evidenciam a grande Luz que nos precede, acompanha e segue no percurso da vida”. Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do nosso cotidiano.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
06.08.2013
“... a vida de um homem não consiste na abundância de bens” (Lc. 12,15)
Sabemos da perene e escorregadia tentação – uma mentira perigosa que aparece como verdade - de solucionar as inseguranças e medos de nosso eu através dos impulsos à cobiça que se aninham em nosso coração. Para Jesus Cristo, a primeira e maior tentação do coração humano é a “cobiça de riqueza”.
Uma vez preso à cobiça, o ser humano caminha, irremediavelmente, para a solidão, para o auto-centramento e desprezo dos outros.
Na parábola de hoje (18º Dom.Tempo Comum), o rico fazendeiro, no seu monólogo, revela o seu ideal de vida: vida longa, vida assegurada... Em seu horizonte de vida uma terrível solidão: parece não ter esposa, filhos, ou amigos. Não pensa nos camponeses que trabalham em suas terras. Seus verbos preferidos: acumular, armazenar e aumentar seu bem-estar material. Só se preocupa em “amassar riquezas para si”; todo o relato insiste no uso dos pronomes possessivos: minha colheita, meus celeiros, meus bens, minha vida... Ele não se dá conta de que vive fechado em si mesmo, prisioneiro de uma lógica que o desumaniza, esvaziando-o de toda dignidade. Aumenta seus celeiros, mas não sabe ampliar o horizonte de sua vida.
Aumenta sua riqueza, mas diminui e empobrece sua vida. Acumula bens, mas não conhece a amizade, o amor generoso, a alegria e a solidariedade. Não sabe compartilhar, só monopolizar. Quê há de humano neste tipo de vida? A vida deste rico é um fracasso e uma insensatez, pois sua falsa segurança na posse dos bens vem abaixo. Quem vive centrado em si mesmo, perde a vida; quem vive para o eu, não é rico diante de Deus.
Podemos dizer que o coração do ser humano é feito de “matéria nobre” e de profundas “ carências existenciais”. Sua matéria nobre lhe vem de sua capacidade de amar, de sua disposição à comunhão e partilha, de sua abertura à transcendência. Não esqueçamos que o ser humano é imagem de Deus... Suas “carências” provém de sua limitação criatural, e também de seu pecado. Esses “carências” do coração tomam o nome de insegurança, temor, desconfiança, medo do futuro, da morte... Quê saída buscar diante da ferida existencial, da insegurança do próprio eu, da indigência do coração?...
Para muitos, o que acalma e apaga essa angústia existencial é a riqueza. Ao se cercarem de muitos bens (sejam materiais, como dinheiro, posses... ou espirituais, como as qualidades pessoais e os saberes), acaba-se toda insegurança, todo medo, qualquer tipo de angústia. Trata-se de um engano nada evidente.
O mal radical está, portanto, na “insaciável cobiça do coração pervertido”. O engano acontece quando o coração se apega “pulsionalmente” às riquezas até depender delas; nesse caso, elas deixam de ser mediações do Reino para se converter em ídolos do próprio coração. Delas se espera a salvação, e não dos outros e nem de Deus.
O “afeto desordenado” às riquezas se apresenta não somente como problema ético, mas também como problema de fé. A fidelidade ao Deus único fica interditada e o seguimento de Jesus fica fragilizado.Como todo ídolo, a “riqueza” provoca o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas. O apego aos “bens” apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus. A busca da própria segurança é a base da tentação pela “riqueza”.
De fato, o apego idolátrico aos bens tem suas raízes fundadas no pânico produzido pela insegurança. O dinheiro, os bens, as posses apresentam-se, então, como solo firme sob nossos pés. Mais ainda: a riqueza é algo mais do que solo firme e apoio; é carapaça protetora, é um objeto interno, corpo do corpo, ou coisa com a “qualidade do eu”. A dinâmica acumulativa, possessiva, própria do apego aos bens, possui toda a força do narcisismo e da autoafirmação infantil. Temos medo de “perder pé”; por isso, com a riqueza pensamos agradar e robustecer nosso ego. Além disso, a riqueza tem um caráter “pegajoso”, possui uma sinistra aderência que, na medida em que mais se fixa, maior vai sendo sua força para atrair novas necessidades. Finalmente, acaba-se por criar uma dura cortiça que defende e isola a pessoa do entorno e que a aliena numa insensibilidade para com tudo aquilo que não seja sua própria realidade.
É uma espécie de "embriaguez" na qual a alteridade desaparece. A consequência mais lógica numa pessoa que se habitua a ter tudo ou querer tudo, é que ela chega a bastar-se a si mesma, desprezando ou desvalorizando os outros, inclusive a própria graça do Senhor. A raiz de tudo é uma profunda autosuficiência, que, sem dar-se conta, leva-a a considerar-se forte porque tem tudo.
No amor “perverso” aos bens e riquezas, não se trata já de “ter algo”, mas de “ter-se a si mesmo” numa tendência de orientação marcadamente centralizadora. A pessoa fecha-se sobre si mesma, rompendo todo impulso em direção aos outros, pensando conquistar uma segurança. Mas, na realidade, a pessoa está se situando na posição mais insegura que se possa imaginar, pois “se sou o que tenho e o que tenho se perde, então quem sou?” (E. Fromm).
O problema da relação com as riquezas se intensifica se levamos em consideração que, junto a estes fatores pessoais, é preciso acrescentar a influência e a determinação tão fundamental que vem do meio ambiente sócio-cultural. Nosso desejo não é alheio, certamente, às dinâmicas culturais nas quais este necessariamente se desenvolve, cresce e pode encontrar seus objetos de satisfação. Por isso, a dinâmica econômica de nossos dias deve ser levada muito em conta à hora de compreender as vias pelas quais circulam nossos vínculos com o dinheiro.
A armadilha de nossa sociedade de consumo está em que não descobrimos que quanto maior capacidade temos de satisfazer necessidades, maior número de novas necessidades nós criamos; e isso, sem possibilidade alguma de marcar um limite.
Na criação da nova comunidade dos seguidores de Jesus, o compartilhar substitui a acumulação e se apresenta como alternativa àquilo que a sociedade de consumo impõe; aqui está configurada uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.
Contra a tendência a querer apropriar-se de tudo como busca de segurança e como defesa hostil diante do outros, Jesus nos convida a compartilhar, como abertura aos outros e como possibilidade para a criação da “nova comunidade” como alternativa às relações interpessoais de opressão e exclusão. Na partilha, a primitiva tendência egoísta e agressiva dá lugar a uma atitude aberta, acolhedora e benevolente frente ao outro. Além disso, onde há partilha, há superabundância (Mc. 6,30-46).
Texto bíblico: Lc. 12,13-21
Na oração: “quê paixão move o meu coração? meu coração está livre?; meus afetos estão ordenados?”
Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens... que consideramos como Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos desejos, de nossa vontade, de nós mesmos...
Quê “apegos” estão travando minha vida e impedindo-me aderir a Cristo incondicionalmente?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
29.07.2013
“Um dia, num certo lugar, estava Jesus a orar” (Lc. 11,1)
Na convivência com os “escolhidos seus” Jesus foi transparente e presença marcante. Chamou-os para “ficar com Ele”, aprender d’Ele a serem testemunhas de seu Amor incondicional ao Pai e aos irmãos. Entre os inúmeros desejos e aspirações que Jesus suscitou, uma foi a grande aventura de aprender a orar.
Jesus orava. Orava só, orava com a multidão, e orava com os discípulos. Às vezes no templo, outras vezes nas caminhadas da Galiléia a Jerusalém, sempre orava a realidade iluminada pelo Projeto do Pai: mergulho íntimo e comprometedor. S. Lucas nos revela que Jesus estava rezando num lugar solitário, afastado. O Pai-Nosso é oração de intimidade que só pode brotar do coração de Jesus num diálogo muito pessoal, filial, com o Pai. Não é difícil reviver a cena do Evangelho: Jesus orando e os discípulos contemplando o Mestre em oração
Esta prática do Mestre exercia sobre os discípulos um fascínio e um desejo de entrar por este caminho, totalmente novo. Na espontaneidade de aprendiz, um deles expressou o desejo do grupo e pediu: “Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou a seus discípulos”.
Os discípulos não perturbam a oração de Jesus, nem se aproximam d’Ele. Só quando Ele termina de orar é que alguém toma coragem para dirigir-lhe a palavra e fazer-lhe um pedido. Eles, acostumados a viver com Jesus, sentiam que não sabiam orar, que não conseguiam concentrar-se no amor infinito de Deus, entrar no diálogo silencioso com o Pai, de Quem Jesus tanto lhes falava. É este desejo de conhecer o Pai que anima os discípulos a pedirem para aprender a orar.
“Ensina-nos a orar...”: é um pedido carregado de humildade, de afeto e de simplicidade. Pedir a Jesus que ensine a orar significa descobrir o caminho a fim de sentir Deus como Alguém que ama; ter uma experiência nova do Deus da História. Os discípulos querem descobrir o segredo da confiança e do abandono; querem amar e não ter medo de Deus, já que o encontro de Jesus com o Pai comunica paz, tranquilidade, entrega...
Os discípulos querem que Jesus rompa o véu de sua intimidade com o Pai e que lhes diga o que Ele dizia ao Pai em seus longos silêncios, em suas noites passadas na intimidade do mistério de Deus, sem sentir o cansaço de um dia de trabalho e de luta. Aprender a orar, para eles, não significava técnicas ou métodos, mas ouvir a experiência de Jesus orante.
“...como João ensinou a seus discípulos”: no tempo de Jesus, os diversos grupos se distinguiam segundo suas formas e normas particulares de oração. A oração tinha a função de uma espécie de “credo” que conferia unidade e identidade ao grupo. Os discípulos pedem a Jesus uma oração que será o seu sinal distintivo, porque ela exprimirá seus mais ardentes desejos.
O pedido “ensina-nos a orar” equivale a dizer: “dê-nos o resumo de tua mensagem!”. Com efeito, o Pai-Nosso é a mais clara e mais expressiva síntese que temos da mensagem de Jesus. Ao rezar o Pai-Nosso vamos percebendo que Jesus transforma todas as nossas questões em desejos e nossos desejos em oração. Tudo está dito nesta oração, mas tudo resta a viver. E realizar todos estes desejos que exprime o Pai-Nosso é nos tornar o que somos, é nos tornar realmente humanos e realmente divinos. É tornarmo-nos os filhos de Deus que somos.
A oração do Pai-Nosso integra os extremos: é singela e complexa, calma e incendiária, inofensiva e desafiadora. Jamais palavras tão simples tiveram tanta profundidade. Jamais um texto tão pequeno foi tão revolucionário. Essa oração é dirigida a todo ser humano, de qualquer raça, cultura, religião, mas em especial aos que tem coragem para se esvaziar e se tornar eternos aprendizes, aos que procuram a serenidade e a mansidão, aos tem sede e fome de justiça, aos que querem construir uma nova sociedade.
Nessa oração, nenhum ser humano foi excluído, nenhum errante foi rejeitado, nenhum sacrifício foi pedido, nenhum dogma proclamado, nenhuma lei estabelecida. A oração do Pai-nosso implode temores e provoca amores. Ela é instigadora e provocativa, que nos liberta do cárcere da rotina, resgata-nos do entorpecimento e nos dá um choque de lucidez: a consciência de que somos conduzidos por uma presença amorosa e cuidadora.
Não se pode rezar de qualquer jeito e com qualquer disposição a oração que o Senhor nos ensinou. O Pai-Nosso não é uma fórmula a ser decorada, mas um projeto de vida cujas atitudes levam a uma assimilação progressiva da filiação e da fraternidade.
Jesus ensinava com a vida uma nova maneira de comunicar-se com o Pai. O novo está justamente no modo como as pessoas se relacionam com Deus: “Quando orardes, dizei: Pai!” Os seguidores de Jesus entram em diálogo com Deus chamando-o “Abba, Pai!”. É uma relação nova e inédita. É o Espírito Santo quem põe nos lábios do cristão a invocação que só Jesus tinha usado em sua oração.
Ou, mais exatamente, é o Espírito Santo que reza no cristão com as mesmas palavras de Jesus (Gal. 4,6).
O Pai-Nosso é a prece de Deus em nós. Dizer o Pai-Nosso é uma maneira de harmonizar nosso desejo, ainda disperso e superficial, com o desejo de Deus em nós; é entrar em sintonia com Vontade do Pai. A oração nasce espontânea no coração de quem busca o Senhor, mas também é uma arte de diálogo com o Absoluto, que se aprende lentamente: “A oração é a arte de amar” (S. Teresa de Jesus). A vida transforma-se numa atitude de oração, onde tudo nos une ao Senhor e tudo vem dela como força e vida.
Com o Pai-Nosso estamos diante do segredo de Jesus comunicado aos discípulos. Jesus ensina a orar, orando. Ele faz junto com os discípulos uma trajetória de oração; não só apontou o caminho, mas fez o caminho com eles. Conhecer sua oração é entrar no próprio movimento de seu desejo e, de certa maneira, participar de sua vida íntima e de seu espírito.
E o desejo que Ele expressa no Pai-Nosso nos revela um ser humano habitado por um “desejo infinito” que só o Infinito pode preencher. De fato, é preciso integrar em nós todas as dimensões do ser humano (corporal, psicológica, espiritual). O desejo se enraíza em nosso corpo, atravessa nossa memória, afeta nosso psiquismo e se abre à Transcendência.
O Pai-Nosso expressa bem estas dimensões do desejo porque manifesta o desejo do alimento, o desejo de liberdade, o ser capaz de perdoar, o desejo de ser libertado do sofrimento, de não se deixar levar pela força do mal, o desejo de que reine em nós um outro espírito, que reine em nós outra coisa que não o nosso passado... Todos estes desejos se expressam e se enraízam na humanidade de Cristo.
É desta maneira que iremos nos aproximar do Pai-Nosso. Como ser humano que somos temos um desejo que habita o mais íntimo de nós mesmos. É o desejo do Todo Outro que se chama prece. “Minha prece é meu desejo, meu desejo é minha prece” (S. Agostinho). Orar é revelar que é possível ao ser humano desejar o impossível. O desejo expresso no Pai-Nosso é um desejo que nos habita e desse desejo participa toda a humanidade.
Texto bíblico: Lc. 11,1-13
Na oração: Rezar o Pai-Nosso utilizando o Segundo modo de orar, proposto por S. Inácio, ou seja “Contemplar o significado de cada palavra da oração”
- Dizer palavra por palavra. Ex: Pai-Nosso.
- Considerar esta palavra enquanto encontrar significados, sentidos novos, comparações, gosto e consolação, em considerações relacionadas com a mesma, sem se preocupar em passar adiante.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
24.07.2013
“Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas” (Lc. 10,41)
Jesus, pobre e sem casa, está sempre a caminho, em busca de uma “casa” verdadeira, de um coração que o escute; até parece que Ele, peregrino que nada teme, viandante sem morada, se deixa convidar por alguém para hospedá-lo, para acolhê-lo em sua casa.
Marta, a irmã de Maria, ao avistá-lo, convida-o para se hospedar, com especial cordialidade, em sua casa. De fato, Jesus não tem casa, não tem onde encostar a cabeça, é pobre, sempre peregrinando... As paredes da casa de Marta e Maria representam um sinal de acolhimento, um lugar onde se realiza a comunhão, a partilha, o encontro, a amizade recíproca. Mas, a plenitude do acolhimento acontece quando se atinge o coração, quando se entra na intimidade, na verdade e na experiência da vida concreta. Ali, e somente ali, Jesus se manifesta, se torna Palavra, Caminho, Verdade, Vida.Ele, a Boa Notícia, se oferece a quem o sabe acolher e escutar. Diante da autenticidade de um coração, Ele pára, entra, se deixa hospedar e revela plenamente a sua pessoa. Faz-se pobre para enriquecer; oferece a verdadeira hospitalidade às pessoas que o acolhem.
Ao acolherem Jesus, o cotidiano de Marta e Maria se altera por completo; elas precisam modificar os próprios hábitos, os próprios costumes, reordenar as próprias atenções e ocupações. Com o “Senhor” em casa, tudo muda; graças a Ele, tudo deve encontrar uma nova “ordem”. Jesus, o peregrino sem casa, está no centro de todas as atenções que uma verdadeira hospitalidade exige. Ele “entra” naquela casa como o último dos peregrinos; mas, para as duas irmãs Ele se torna o primeiro, o único, o centro, em torno do qual se reordenam todas as coisas e as outras ocupações.
A “escuta” e o “serviço”, personalizados nas duas irmãs, não são alternativos, mas expressões da única e privilegiada relação com o Mestre. No entanto, Marta e Maria reagem de maneira diferente em relação a essa prioridade. Maria, sentada aos pés de Jesus, põe-se à escuta das suas palavras; Marta, ao invés, fica totalmente tomada pelos afazeres e preocupações. Acolhendo-O e escutando-O, Maria encontra paz, serenidade, tempo, expectativa; Marta, ao contrário, não consegue encontrar a paz, não consegue “pôr ordem”: agita-se, preocupa-se, fica insatisfeita, desconcentrada, em contínua ação. Ativismo sem sentido, sem intenção, sem motivação...
Marta se distraía com o ativismo, em seu afã de expressar seu carinho e sua acolhida a Jesus. Jesus, no entanto, não reprova sua atividade, mas sua distração; o seu ativismo a impede de ver a presença do Mestre; fecha-se à rotina e não se abre ao novo. O que Jesus coloca em questão não é o que ela faz, mas como ela faz. Marta não tem mais condições de pôr “ordem” e “sentido” no meio das tantas coisas que gostaria de fazer, na tentativa de oferecer a melhor hospitalidade possível a Jesus. Desta forma, ela se torna incapaz de viver o verdadeiro encontro, não só com Jesus, mas também com a própria irmã, rivalizando-se com ela. Marta chega até a repreender o próprio Jesus, o hóspede de honra, que convidara para hospedar-se em sua casa: “Senhor, não te importa...”
Jesus, com doçura, repreende Marta, ajudando-a a sair da solidão do seu tarefismo. Com a repetição do seu nome, chama-a novamente e a põe em contato consigo mesma; ajuda-a a entrar em si e a olhar para além da atividade, a abrir os olhos do coração para perceber o “sentido” da sua ação - para quê? para quem? Jesus simplesmente a convida a levantar os olhos das suas preocupações rotineiras e a olhar na direção certa. Ela se sente movida a “pôr ordem” dentro de si mesma e ao seu redor; somente saindo do seu pequeno e limitado mundo das “coisas”, ela poderia reconhecer a “melhor parte”, que ninguém mais lhe poderá tirar.
Chamada pelo nome, Marta torna-se capaz de escutar e de perceber a presença da Verdade que estava à sua frente e que antes não conseguia escutar, encontrar, reconhecer. Verdade que também se faz presente em meio aos afazeres cotidianos. Somente aceitando esse Dom que se hospeda em sua casa, é possível fazer a única escolha certa, sábia: seja na escuta aos pés do Mestre, seja nos serviços caseiros. Aceitar esse Dom significa encontrar a paz, a harmonia, a integração entre a “escuta” e o “serviço” (“escutar servindo e servir escutando”).
A integração e harmonia entre as duas atitudes (escuta e serviço), é o caminho proposto pela dinâmica da espiritualidade cristã; ser “contemplativo na ação” ou “ativo na contemplação”, eis o equilíbrio difícil. O que Jesus pede a Marta é amá-lo em seu serviço, como Maria o ama em sua atitude de escuta. Tudo o que fazemos sem amor é tempo perdido. Tudo o que fazemos com amor é eternidade reencontrada. De fato, diante das preocupações, da agitação cotidiana, dos apegos, das “afeições desordenadas”... a escuta e o encontro com o Outro e com os outros tornam-se praticamente impossíveis.
Tal situação nos faz prisioneiros da solidão, sentindo-nos abandonados, impotentes, sobrecarregados pelo ativismo vazio e sem sentido... O ativismo produz, a princípio, a sensação de estar muito ocupado e o falso consolo de “sentir-se útil”. Mas, de fato, o ativismo converte as pessoas em engrenagens de um sistema massacrante e acaba produzindo-lhes frustração, impotência e vazio, por falta de sentido (para quê? para quem?...)
Esse é o problema do mundo moderno: a agitação e a preocupação se tornam um estilo de vida e acabam controlando nosso ritmo cotidiano, tornando-se fonte inesgotável de ansiedade.Em nosso padrão cultural, somos pressionados a mostrar o tempo todo que estamos ocupados e “produzindo” alguma coisa. Vivemos perdidos numa floresta de compromissos e atividades, incapazes de perceber alguma trilha estreita para poder andar e respirar. Mesmo com tudo que foi inventado para facilitar a vida – celular, internet, e-mail, mensagens instantâneas – parece que não temos tempo para nada.
Há muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Acuados pelo relógio, pelo ativismo, pela agenda, pela opinião alheia, disparamos sem rumo feito hâmsteres que se alimentam de sua própria agitação.
A contemplação é uma dimensão essencial do ser humano. Um sinal de crescimento de quem está se tornando cada vez mais contemplativo em meio a uma vida ativa é que um simples olhar sobre a realidade desperta sentimentos oceânicos e faz evocar atitudes profundas. A realidade cotidiana parece cheia de significado e atração. Evoca e confirma atitudes fundamentais de entrega e dedicação a Deus e ao seu Reino na vida cotidiana. Em tudo pode-se “tocar” a presença cuidadora e providente do Criador. Daqui brota o desejo de colaborar com Ele, numa missão específica, segundo a capacidade e as circunstâncias de cada um.
Cada dia a pessoa redescobre com os sentidos e inventa com a imaginação um mundo novo, maior e mais bonito que o do dia anterior. E assim é feliz porque, para ela, em cada nova experiência, o mundo torna a começar. Com isso, as pessoas verdadeiramente contemplativas em meio à vida cotidiana, desenvolvem profunda serenidade e paz interior. Elas têm a convicção profunda de que Deus está presente e ativo em todo o mundo; de que em todas as circunstâncias Deus trabalha para o bem de cada um e de todos.
A abertura e a acolhida do Dom, que nos surpreende ao entrar em nossa própria casa, nos arrancará do nosso isolamento, da rivalidade com os outros, das preocupações e agitações vazias. Somos continuamente envolvidos, protegidos, sustentados e animados por uma Presença que “armou sua Tenda entre nós”. Nele encontraremos a serenidade, a paz interior, a confiança... tanto na ação como na contemplação. Mais importante do que fazer as coisas, é fazê-las de modo novo. Eis a única “coisa” que importa para viver plenamente.
Texto bíblico: Lc. 10,38-42
Na oração: despertar um olhar repousante sobre sua realidade cotidiana: olhar que tudo acolhe e em tudo vê a presença do Criador.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana –CEI
15.07.2013
“E quem é meu próximo” (Lc. 10,29)
15º Dom. Tempo Comum
Teria sido fácil para Jesus fornecer definições de “próximo”; se não o faz é porque quer evitar que se considere o “próximo” como um objeto de estudo ou de investigação. Perante a pergunta inicial, Jesus não assume o papel que o escriba lhe propõe e, em vez de dar-lhe a resposta pedida, indica onde deve buscá-la: Jesus quer tirá-lo do mundo do saber para levá-lo ao do fazer.
O ícone do “bom samaritano” apresenta o próximo “em situação”, o próximo concreto, histórico, que interpela e compromete cada um em escolhas decisivas, em relação às quais se demonstra se é ou não “próximo” do necessitado. Por isso, a interrogação inicial se inverte: já não se trata de perguntar-se “quem é meu próximo?”, mas “de quem eu sou próximo e como eu chego a ser próximo?” O “próximo” não é somente o outro para mim, mas eu para o outro.
O “próximo”, no sentido expresso pela parábola, não pode nos deixar indiferentes; provoca uma resposta, compromete em uma ternura concreta, oblativa, capaz de risco, para socorrer o ferido. A conclusão da parábola é um programa de vida. Jesus não diz: “agora, sabes, podes ficar tranquilo”. Afirma antes: “Agora vai, e também tu faze o mesmo”. Neste ícone, temos a magna carta da ternura como resposta do discipulado e forma de atualização concreta do amor evangélico.
Os personagens da parábola: um homem, assaltantes, um levita, um sacerdote, um samaritano; todos, exceto “um homem”, aparecem designados por sua função social: uns com prestígio e outros no mundo marginalizado (assaltantes, samaritano). “Um homem”, sem mais especificações, representa cada ser humano, para além de suas conotações de nacionalidade, de nível social, de religião; é cada ser humano necessitado, carente, vítima... A novidade do evangelho consiste precisamente na superação de tais barreiras.
Na parábola, o desconhecido ocupa o centro do relato, visto que todos os demais personagens aparecem em relação com ele: os bandidos o assaltam, despojam, golpeiam e o abandonam; o sacerdote e o levita vêem-no e passam ao largo; o samaritano o vê, comove-se, aproxima-se, cuida dele. Até quando é levado à hospedaria continua sendo o pólo das atenções. Essa organização do movimento no espaço em torno de um homem reduzido à impotência indica seu papel central, mesmo que dentro de sua passividade. Todos os personagens se definem a favor ou contra ele: é assaltado, despojado, espancado, deixado semimorto, comiserado, enfaixado, conduzido, cuidado... De viajante passa a corpo inerte e, abandonado por uns, reencontra vida graças a outro.
O samaritano avista ali, no caminho, um homem, e um homem em perigo de vida; que fosse de outro povo ou outra religião é irrelevante. O bom samaritano vai além dos dados de ordem social, moral ou religiosa; avista, para além das diferenças, um ser humano igual a ele, e por isso irmão.
Para o sacerdote e para o levita, o homem ferido converte-se em obstáculo a evitar: seguem adiante pelo outro lado. As normas de pureza proibiam-lhes contaminar-se pelo contato com a morte, visto que deviam manter-se puros a fim de participar do culto.
O samaritano não se deixa condicionar pela “prudência” de continuar o caminho, nem pelo medo de se aproximar do ferido; ao contrário, se detém e se envolve na situação do ferido: “Viu-o e teve compaixão” (sentimento que aparece na Bíblia referindo-se somente a Deus e a Jesus); assume o risco do encontro e se deixa interpelar pela necessidade do outro, cuja vida, para ele, conta mais do que prosseguir sua viagem.
Existem, portanto, duas maneiras de ver: permanecer alheio ou comprometer-se.
O sacerdote e o levita não mudam, a não ser passar pelo outro lado; tal atitude os faz aliados dos bandidos sob o signo da exclusão: saem do relato sozinhos, limitados a seu projeto, excluindo o outro.
O samaritano “viu-o” e foi afetado pelo que viu; isso evoca já um modo diferente de olhar o outro, não como um estranho ou com indiferença, mas como um “próximo” para servir com amor. O termo “compaixão” revela um forte compromisso afetivo como “um comprimir-se do coração” e denota uma íntima participação na situação do ferido, um “com-partilhar” que se faz solidariedade.
O samaritano não organiza um socorro à distância, não se afasta em busca de reforços, mas ele mesmo põe mãos à obra, interessando-se pessoalmente pelo ferido e fazendo-se cargo de sua situação: com suas mãos o medica e enfaixa as feridas, o levanta e o carrega sobre sua cavalgadura; caminha ao lado por quilômetros e quilômetros e o entrega ao administrador da pousada.
Há, em todos estes gestos, uma “com-participação”, uma atenção pessoal que exprime a autenticidade da ternura evangélica. O samaritano realiza atos concretos e o faz com ternura transbordante, até ao excesso; ele vai além do simples apelo do dever. Ninguém poderia ter-lhe pedido tanto. Detendo-se, curando o ferido e conduzindo-o ao lugar de descanso, ele já tinha cumprido seu essencial dever de justiça e podia sentir-se satisfeito. Mas, ele sente a necessidade de ir além. Sua ternura é verdadeiramente completa, genuína, sem interesses nem meio-termo: é uma ternura de puro dom, gratuita, uma ternura de benevolência.
Com justiça, os padres da Igreja gostavam de destacar que o primeiro grande Samaritano fora o Filho de Deus feito homem. Ele, em primeiro lugar, se deteve misericordiosamente junto a nós pecadores, descendo de sua “cavalgadura” e fazendo-se nosso companheiro de viagem.
A “opção de vida” em favor do próximo é o indicador de uma vida aberta aos outros e comprometida na construção de uma convivência social na qual predomine a ternura e não a dureza de coração, o respeito à vida e o amor e não a violência e a exclusão.
Segundo a teóloga Maria José Torres “a parábola do samaritano tem consequências ético-políticas”. Nossa compaixão deve estar perpassada de indignação ética, porque não há compaixão sem justiça. Daí apostar pelo modelo compassivo do cuidado.
Para voltar às raízes da fé, devemos reivindicar a compaixão como sinal de identidade do humano e do divino, porque parecer-se com Deus implica ser e atuar compassivamente. Deus tem entranhas de mãe e se comove por seus filhos mais sofredores, vítimas da maldade humana.
A parábola é uma exortação à misericórdia e à denúncia. Meu próximo não é só o que merece minha ajuda, mas também aquele que merece ser denunciado porque dá uma volta e deixa as coisas como estão.
Texto bíblico: Lc 10,25-37
Na oração: Os personagens da parábola podem servir-nos de espelhos: talvez possamos sentir-nos como o escriba cético que pergunta: “Quê devo fazer?”, sem contudo, comprometer nossa vida; ou como o sacerdote e o levita, tão preocupados em chegar ao culto que não nos sobra tempo nem atenção para o homem ferido jogado na sarjeta. Os três aparecem distraídos e dispersos em seus próprios projetos, planos, ocupações ou reflexões, querendo conhecer, no plano teológico, quem é o próximo, cumprir a Lei, chegar ao Templo, não contaminar-se com um cadáver...
No entanto, tudo isso os impede de viver centrados no essencial que, naquele momento, era atender ao homem ferido. O samaritano, ao contrário, aparece descentrado de si mesmo; é todo atenção solícita e eficaz no serviço do desconhecido que encontra em seu caminho, e isso o faz entrar em sintonia com o desejo e o coração de Deus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
09.07.2013
“A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos” (Lc. 10,2)
14º Dom. Tempo Comum
Em Jesus Cristo, Deus nos salva e, sempre respeitando nossa condição de homens e mulheres livres, nos convida a participar de sua obra: a construção do Seu Reinado neste mundo marcado pela dor e exclusão.
Deus convoca pessoas que tem espírito de audácia, de energia, de criatividade, de luta, de participação, porque Ele não nos deu espírito de timidez, de covardia, de fuga... Nesse chamado dirigido a todos, cada um tem uma missão única, irrepetível e intransferível. O que está em jogo é a “messe do Senhor”: “para quê e para quem trabalhamos?”; “o que nos motiva e nos inspira a trabalhar em favor do Reino?”
Para realizar essa missão, Deus nos cumula de qualidades necessárias, capacidades, criatividade..., enche o nosso coração de sonhos, projetos, desejos..., nos dá a liberdade que nos ajuda a construir o novo, a buscar o melhor, a realizar o maior bem, a tomar decisões sábias. Mais ainda, Ele nos faz co-criadores, ou seja, colaboradores e criativos com Ele. Trata-se de um chamado que “afeta” todo o nosso ser, com toda a nossa bagagem de inteligência, afetividade, qualidades e defeitos, influências e inclinações; com todas as possibilidades que a vida nos oferece neste momento em que vivemos, diante das necessidades do mundo e da humanidade.
Na vivência desta missão, devemos ter sempre diante dos nossos olhos a pessoa de Jesus Cristo. Com sua vida e sua palavra, Ele descentraliza o mundo a partir da periferia, terra privilegiada, de onde podemos contemplar a história e a própria humanidade. Cada passo na direção das periferias do mundo também é um passo contemplativo em busca do encontro com o Senhor da História, que nos chama de “baixo” e de “fora”.
Tendo Jesus se encarnado para sempre nas “periferias” deste mundo, porque deseja assumir toda a história a partir daí, também nós, seus seguidores, temos de voltar constantemente o olhar para as “novas periferias”, a partir de onde Ele continua nos questionando, nos chamando e nos enviando. Isto quer dizer que o “centro” da história teve seu aparecimento na “periferia”.
A vida de Jesus é “ex-cêntrica”, porque não combina nem se ajusta com a construção social de todos aqueles que controlam o mundo a partir do centro. Portanto, Jesus descentraliza a história para sempre e situa o surgimento da salvação nas terras excluídas. O anúncio e a ação de Jesus provocam um deslocamento geográfico e social. O centro da história já não se encontra em Roma, nem em Jerusalém, mas sim na “margem”. Todo aquele que pretende encontrar-se com Jesus terá de voltar a cabeça e peregrinar em direção às massas excluídas.
Uma comunidade cristã não é aquela que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquela que, movida por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí, “esvaziando-se”, participa ativamente da solidariedade de Deus com a humanidade, que é o centro da salvação. A paixão pelo Reino mobiliza a pessoa a levar adiante a missão, a ir gratuitamente aos lugares do mundo onde há mais necessidade e ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto.
Para realizar esta nobre missão, não podemos permanecer sentados. Seguir Jesus exige uma dinâmica continuada, colocar-nos a caminho em direção às margens. Nada se pode comunicar a partir de uma cômoda instalação pessoal. A disponibilidade, o despojamento e a mobilidade são exigências básicas.
Corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente.
Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas. Muitas vezes “vemos” o diferente, mas só como notícia, como o olhar do espectador que sabe das “coisas que acontecem”, mas não sente e nem se compadece por elas.
O Evangelho de hoje nos convida a contemplar o mundo em suas fraturas e em suas possibilidades, partindo da consciência de uma fraternidade ampla e do impulso a uma comunhão universal. Só quando alguém começa a abrir-se, a remover-se por dentro, a “sair de si”, começa também a descobrir novos rostos, histórias e vivências, começa a pensar em círculos mais amplos e mais distantes, sente o impulso para o encontro e o compromisso com pessoas que estão em situações desumanizantes, passa a ter uma perspectiva diferente, começa a compadecer-se pelas feridas profundas que atravessam nosso mundo.
Aproximar-se das “periferias existenciais” é fazer como Moisés: descalçar-se frente a este terreno sagrado. A atitude de quem se aproxima destes contextos de exclusão não pode ser a do “salvador do mundo” que pensa que vai fazer milagres, nem a do turista que passa e registra tal realidade e não se deixa afetar pela dor alheia. Uma pessoa pode passar por diferentes lugares sem que estes lugares lhe deixem pegadas; ela pode tocar a superfície das coisas e das vidas sem que sua memória fique afetada. Então não há encontro nem aprendizagem. Para que haja verdadeiro encontro, o deslocamento expõe quem se desloca, deixa-o vulnerável e “contaminado” pela realidade que encontrou. Quando alguém se desloca e se aproxima de realidades diferentes, é para encontrar, encontrar-se e aprender.
Encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações…; escutar outros relatos que trazem muita luz para a nossa própria vida. Olhar desde um horizonte mais amplo, ajuda a relativizar nossos próprios absolutos e compreender um pouco melhor o valor das coisas. Escutar de tal maneira que o que ouvimos penetra na nossa própria vida; isso significa implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas. Acolher na nossa própria vida outras vidas; abrir espaços para que as histórias dos excluídos encontrem morada nas nossas entranhas, na nossa memória e no nosso coração.
O encontro com o diferente possibilita também o encontro consigo mesmo, ou seja, encontrar a própria verdade. Isso implica em se perguntar pelo possível, pelo que deseja construir, viver de outra maneira, atuar conforme os valores que não estão em voga; implica também que se perguntar quê missão lhe toca a cada um viver neste mundo complexo e tantas vezes ferido. Enfim, aprender, ou seja, carregar a própria história de um horizonte diferente, no qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades. Descobrir uma perspectiva mais ampla que ajude a formular melhor o sentido da própria vida.
O chamado e o envio de Jesus mobiliza e expande a pessoa na direção dos outros; ela é convocada a “encarregar-se dos outros”, encarregar-se das obras que solucionem os problemas das “maiorias excluídas”. Isso é o que significa paixão pelo Reino, paixão por levar adiante a missão, paixão por se fazer presente nas fronteiras (que não são apenas geográficas, sobretudo existenciais), ali onde os desafios são maiores, onde há mais necessidade e onde se espera maiores frutos…
Ante o clamor que vem da “margem”, como não sentir compaixão e solidariedade para com os “perdedores” da história? A necessidade de olhar o excluído e de sentir sua exclusão como uma interpelação e um chamado, não é para nós moda nem sectarismo, mas o núcleo mesmo de nossa experiência espiritual tal como aparece no Evangelho.
Somos chamados a viver a solidariedade como um estilo de vida, fundado no modo de viver de Jesus. A solidariedade significa encontrar-se com o “o mundo do sofrimento, da injustiça, da fome... e não ficar indiferente”. A solidariedade que nasce da compaixão leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação.
Isso pede de todos nós uma atitude de abertura ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, redescobrir com urgência a solidariedade como valor ético e como hábito permanente de vida. A certeza de que trabalhamos na “messe do Senhor” nos faz superar o medo de romper paradigmas e de vencer naturais resistências frente à mudança, bem como o não estar apegados ao costumeiro e rotineiro.
Texto bíblico: Lc 10,1-12.17-20
Na oração: diante de Deus responda: como você vive hoje sua missão na família, no trabalho, no seu ambiente, na sua comunidade? Que sentido você quer dar à sua própria vida?... em quê gastar suas forças, capacidades? Com quê profundidade as “periferias existenciais” lhe afetam.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
01.07.2013
“Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que tu ligares na terra...” (Mt. 16,19)
O texto ajuda a ler nossa vida. Afirma-se nossa identidade; e a identidade de uma pessoa é dada por aquilo que é sólido, consistente... no seu interior, que não se desfaz com as adversidades do mundo no qual vivemos (crises, fracassos...). Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal. “Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas.
A própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem, para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis golpes da luta pela vida. É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser.
A oração é a chave interior que faz a pessoa chegar até o próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de si mesma, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde a pessoa mergulha no silêncio, à escuta de todo o seu ser.
Temos em nossas mãos as chaves da vida. O que fazemos com elas? Podemos abrir ou fechar, ligar ou desligar, atar ou desatar.... Ter a chave da vida: abrir ou fechar as portas do futuro, das relações, dos sonhos, da missão... Dar direção à vida. Atar e desatar os nós da vida.... Aqui está o grande desafio: abrir-se ou fechar-se. Abrir-se à vida, ao novo, ao outro, ao desafiante ou diferente... ou fechar-se...
Deus confiou e colocou em nossas mãos a chave da vida. Ele não impõe, não obriga. Corre o risco de nos criar livres. Aqui está a grandeza do ser humano: optar por uma vida aberta ou fechada, ser nó ou desatar, ligar ou desligar, expandir ou retrair... Sempre há o perigo de construir, dentro de nós, um condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem, segredos são esquecidos... e, com isso, mergulhamos na mais profunda solidão.
Pior ainda é quando confundimos o “poder das chaves” com a “chave do poder”. Quem tem a chave tem o poder. “Ter poder”: esta expressão ecoa forte no coração humano. O poder deslumbra, ofusca e pode facilmente se tornar o centro da identidade de uma pessoa. O poder é objeto de desejo de extraordinária magnitude e fascínio para o ser humano. Seu brilho encanta e seduz; sua proposta é extremamente atraente; para muitos, ele é a suprema ambição. Não há ser humano que não tenha sido tentado pelo canto desta sereia.
O coração humano sofre ao ver-se dominado por este desejo de poder que intoxica suas aspirações mais profundas de comunhão e solidariedade. A vida se torna uma arena de disputas. Talvez não exista relação mais ambivalente que aquela existente entre a pessoa e o poder. Os relacionamentos são balizados, tanto no espaço institucional como nos encontros interpessoais, pela disputa do poder; o exercício do poder se expressa nas atitudes de dominar, manipular, subjugar e definir tudo segundo os próprios interesses. A perversidade do coração humano encontra no exercício do poder o campo mais propício para a revelação de suas mazelas, autoritarismos, vaidades... Em nome do poder gera-se a morte, a divisão, a solidão.
Nenhum exercício do poder é evangélico. Não há nada mais contrário à mensagem de Jesus que o poder. Jesus não transfere “poder” a Pedro; reforça nele a liderança para o cuidado e o serviço aos outros. Nenhum ser humano é mais que outro, nem está acima do outro. “Não chameis a ninguém de pai, não chameis a ninguém chefe, não chameis a ninguém senhor, porque todos vós sois irmãos”. A única autoridade que admite é o serviço.
Jesus não exerceu poder porque o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano (seja poder político, religioso, ou qualquer outra expressão de poder).
Jesus despoja-se do poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”. Sua autoridade é caminho para o serviço e a promoção da vida. Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que domina ou a liderança que se impõe. Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir. Quem tem “poder”, ao contrário, o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, decide pelo outro...
A palavra “autoridade” vem do verbo latino “augere”, que significa literalmente: aumentar, acrescentar, fazer crescer, dar vigor, robustecer, sustentar, elevar, levantar o outro, colocá-lo de pé, impulsioná-lo para frente... É a qualidade, a virtude e a força que serve para apoiar, para alentar, para ajudar as pessoas a serem elas mesmas, para fazê-las crescer, desenvolvendo suas próprias potencialidades. “Autoridade” significa recuperar a autoria, devolver a autonomia àquele que está impedido de optar e de fazer seu caminho. Nesse sentido, a autoridade nunca é perigosa para a pessoa, jamais é imposição ou atentado contra sua legítima autonomia ou liberdade. A autoridade é essencialmente amor.
Também o exercício da autoridade deve ser medido pela palavra e pela obra de Jesus Cristo. E não pode ser de outra maneira, já que, se a origem da autoridade na Igreja é divina, também deveria ser “divina” o modo de exercê-la. Se toda autoridade provém de Cristo, deveria ser exercida à maneira como Cristo a exerceu, e isto vale tanto para aqueles que detém uma autoridade instituída como para aqueles que, devido às suas qualidades e carismas, exercem, de fato, autoridade de serviço nas comunidades cristãs.
Neste “como” se exerce e deve ser exercida a autoridade na Igreja está o desafio que as comunidades cristãs devem assumir. O Evangelho de hoje é claro quanto à maneira como se deve exercer a autoridade: a partir do serviço. Aquele que serve não domina, convertendo-se no centro, mas anima e integra o diferente. Aquele que serve, despoja-se de seus interesses privados e investe sua vida em benefício de todos.
Isto significa que todos aqueles que exercem a autoridade hão de voltar sempre ao manancial de onde brota o autêntico ser da Igreja, que é a palavra e a ação de Jesus. Não deve existir autoridade na Igreja que esteja por cima da ação do Espírito; ela não deve buscar outra coisa a não ser a vinculação de todos os membros da Igreja no amor e no serviço mútuo. Uma autoridade que se desvincula do “carisma de autoridade” do Espírito tende sempre a converter a instituição em um fim, esquecendo que só pode ser justificada na medida em que serve à obra do Espírito.
A autoridade deve ser exercida no marco da visão de Igreja que o Vaticano II nos deixou, ou seja, potenciar a comunhão. É urgente que o exercício da autoridade na Igreja vá assumindo os traços característicos de uma Igreja de comunhão, se queremos ser fiéis ao “modo de proceder” de Jesus.
Texto bíblico: Mt. 16,13-19
Na oração: Muitos caminhos conduzem à própria interioridade. A oração é a chave de acesso; ela é esse silencioso exercício de deixar que Deus me habite para que eu possa abrir as portas do coração e janelas da mente àqueles com quem me encontro. Onde o Deus de Jesus tem liberdade de atuar, ali desaparece todo resquício de poder que desumaniza.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
24.06.2013
“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Lc. 9,20)
12º Dom. Tempo Comum
Jesus, ao longo do percurso de sua vida pública, revela-se como uma “presença instigante”, ou seja, com suas “perguntas” ajuda cada pessoa a des-velar e aprofundar sua vivência no seguimento, a descrever seus “estados de ânimo”, a vislumbrar o sentido daquilo que estão buscando...
A originalidade da presença de Jesus não consiste em comunicar uma doutrina, uma teologia, uma moral... nem oferecer “respostas prontas”, mas em ser “provocador” das grandes questões existenciais e desafiadoras dirigidas a cada um, possibilitando-o acesso às reservas interiores de criatividade e imaginação.
Mais ainda: a presença “pro-vocativa” de Jesus reacende no discípulo este atributo tão humano, que é a capacidade de questionar-se para buscar um sentido para a própria existência. As perguntas feitas pelo próprio Jesus colocam o seu seguidor em contínua busca, sintetizada na expressão “buscar e encontrar a Vontade de Deus”. São perguntas que o abrem para o futuro, para o novo, para uma decisão...
A pergunta é movimento, é vida... e suscita resposta viva, criativa, surpreendente... e inesgotável. De fato, habitamos nas perguntas. Viver à escuta das interrogações nos mantém despertos no caminho. São as perguntas que suscitam em nós o assombro frente à realidade interior e à riqueza da realidade exterior, exigindo-nos assim viver continuamente numa atitude de escuta. Com as perguntas fazemos história, e a história é abertura para a aventura. “Perguntar é aventurar-se”.
A pergunta nos faz descobrir a grandeza no pequeno e o mistério naquilo que é óbvio; ela nos faz ficar admirados pela percepção do extraordinário presente naquilo que é cotidiano. A mediocridade das respostas formatadas paralisam e fecham as portas às novas possibilidades. As perguntas, ao contrário, são o fio de ouro em meio ao cascalho que mobilizam o garimpeiro a buscar sem cansar. As respostas cortam o movimento, atrofiam a curiosidade, matam a criatividade e o espírito de aventura; elas impedem a mobilização dos recursos interiores da pessoa na construção de seu projeto de vida, levando-a à apatia e à acomodação.
Questionar-se é provocar a interioridade e descobrir-se na interioridade. Questionar-se é ser profundo, é tocar a intimidade mais sagrada de si mesmo, é captar a efervescência criativa da existência. Por isso, questionar-se é reconhecer-se como pessoa profunda e não superficial; inquietar-se é sair do imobilismo tradicional para assumir o potencial humano criativo.
Questionar-se é um gesto ousado para despertar o sentido da vida pessoal, para buscar um objetivo mais sério, é ser mais humano. Quando a pessoa não se questiona, é porque prefere o desânimo, a acomodação. O ser humano deve perguntar-se sempre a respeito da vida, da missão, do futuro,... Por isso, interrogar-se é possuir sabedoria, ciência, arte, ética. Perguntar-se também é um fenômeno inteligente para reativar as decisões pessoais.
É das profundezas de nossas entranhas que nascem as “perguntas” existenciais mais decisivas e inquieta-doras: Quê devo fazer? Quê estado de vida assumir? Quê opções concretas viver? Quais valores internalizar?... Em nosso contexto atual, somos constantemente empurrados para fora de nosso ser mais interior, e incentivados a procurar “respostas” em vez de ouvir as “perguntas”. Não fomos educados a elaborar perguntas, mas quase que somente a conservar respostas. Introjetamos respostas de perguntas que não foram feitas.
Muitas vezes procuramos, sem descanso, por respostas, indo de porta a porta, de livro a livro ou de mestre a mestre, sem termos escutado com cuidado e atenção as “perguntas” do interior. “A tarefa do sábio é enredar-se em perguntas, desvencilhar-se de respostas” (Nilton Bonder)
É lógico que as respostas são essenciais na vida, mas elas podem bloquear a capacidade criativa e o dinamismo da vida de cada um, fechando-nos num ciclo enfadonho de rotinas e ritualismos. Quantas vezes nos surpreendemos fazendo perguntas existenciais para nós mesmos: quem somos? Para onde vamos? Tem sentido o que fazemos?...
Nós nos aproximamos da verdade graças às nossas perguntas. As perguntas são, às vezes, mais importantes que as respostas, porque as respostas passam. E o que em um dado momento é uma boa resposta, pode não ser depois. É a pergunta que permanece. E a pergunta é esta fome de verdade que nos faz escavar por dentro. Uma pergunta é como uma ferramenta que nos permite escavar nosso poço interior. E cada golpe nos aproxima da fonte. Cada questão profunda nos aproxima da resposta. A resposta é a vida, é a fonte que jorra do fundo do poço.
Se nossas questões, nossos problemas, nossas perguntas existenciais não são testados e amadurecidos na oração e na solidão silenciosa, não é realista esperar por respostas verdadeiramente nossas. Quantas pessoas podem dizer que suas decisões são realmente suas! Afirma o poeta Rilke: “Quero pedir-lhe ao máximo... para que seja paciente com tudo o que não está resolvido em seu coração e que tente amar as perguntas por si mesmas... Não busque respostas que não lhe podem ser dadas agora, pois não seria capaz de vivê-las”.
A Pedagogia de Jesus, portanto, se constitui numa atividade interrogante, que muitas vezes incomoda nossos “hábitos normóticos” de viver a vida cristã. Sua pedagogia nos coloca diante do mistério das coisas, das pessoas, dos fatos, da criação... Por isso, em toda resposta, por mais objetiva que seja, ainda resta o inexplicável. Em toda clareza persistem as sombras, em toda convicção permanece uma dúvida.
O caminho de Jesus é um caminho de perguntas, um convite a situar-se como discípulo e caminhar com o coração aberto a novas perguntas. A resposta à pergunta de Jesus (“e vós, quem dizeis que eu sou?”) implica a adesão à pessoa d’Ele e ao seu projeto, o Reino; significa fazer o caminho com Ele, colocar-se onde sempre se colocou, na margem, na periferia... Isso acarreta oposição, perseguição, cruz. Tomar a Cruz significa prontidão, estar preparado...
A pergunta de Jesus – que Lucas apresenta em um contexto de oração – é uma pergunta expansiva e nos afeta a todos nós, seguidores d’Ele: É uma pergunta onde não valem respostas secas (“um profeta”) nem respostas aprendidas (teologicamente corretas), porque remetem à vivência pessoal e única de cada um. Quem é Jesus para mim? Pergunta instigante que nos ajuda a captar a originalidade de Sua vida, a escutar a novidade de Seu chamado, a deixar-nos atrair pelo Seu projeto, contagiar-nos por Sua liberdade, empenharmos por viver seu caminho.
Cada um de nós deve se colocar diante de Jesus, deixar-se olhar diretamente por Ele e escutar, a partir do mais profundo de si mesmo, Sua pergunta: “Quem sou Eu realmente para você?” A esta pergunta responde-se mais com a vida que com palavras sublimes.
Texto bíblico: Lc. 9,18-24
Na oração: Dá-nos cada dia, uma pergunta que nos escave e que nos aproxime de Ti! De Ti que és a Fonte, o Pai de nossa inteligência, de Ti que colocaste em nós este desejo de verdade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
19.06.2013
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