TENTAÇÕES: “há coisas que são mentira, mas que aparecem como
verdadeiras; aí se enraíza seu atrativo”
“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e, no deserto, era guiado pelo Espírito” (Lc. 4,1)
1º Dom. Quaresma
O batismo é um evento de primeira importância na vida e na missão posterior de Jesus. Nesse momento Ele fez a experiência de sua vocação, deu-se conta perfeitamente da missão que o Pai lhe confiava e acolheu-a com todas as suas consequências. Ora, aquela missão comportava, de fato, não só um fim, que havia de realizar (a salvação e a libertação total da humanidade) senão, também, um meio, ou seja, um caminho e uma maneira de proceder, tendo em vista alcançar aquele fim. E esse meio ou esse procedimento era, essencialmente, a solidariedade com todos os pecadores e excluídos da terra, a ponto de morrer com eles e por eles.
Aqui é decisivo compreender que o meio – ou o como – da missão de Jesus é tão importante como o fim mesmo dessa missão. Isso, por uma razão muito simples: o ser humano pode ser enganado mais facilmente no que diz respeito ao meio ou ao “como” que no tocante ao fim mesmo da missão. Daí a relação tão profunda e estreita que os evangelhos estabelecem entre o batismo de Jesus e as tentações no deserto que o mesmo Jesus sofreu.
As tentações, na realidade, são o prolongamento do relato do batismo; e isso se vê claramente por uma série de detalhes que os Evangelhos apontam: é o Espírito, que pousou sobre Jesus no batismo, Aquele que O leva “imediatamente” ao deserto; a primeira tentação faz referência direta ao título “Filho de Deus”, proclamado no batismo... Desde o início, Jesus aparece como o homem que “se deixa conduzir”, a partir do centro, pelo Dinamismo divino – isso é o Espírito – precisamente porque não está aferrado ou identificado com seu eu. É o homem descentrado em quem o Espírito pode expressar-se com liberdade.
Não podemos esquecer que o tentador não propõe a Jesus que se afaste de seu fim, ou seja, de seu projeto messiânico de salvação (“Se és o Filho de Deus...), senão que, na realidade, o que ele faz é oferecer a Jesus alguns meios determinados para realizar a salvação. De fato, os meios que o tentador apresenta são os meios, humanamente falando, mais eficazes que ninguém poderia imaginar: possibilidade de transformar as pedras em pão, o prestígio indiscutível de quem salta do alto do templo, sustentado pelos anjos e, para culminar, todo o mundo a seus pés. Quem resiste a um homem com tais meios? Todos serão atraídos porque, em definitiva, terá entre suas mãos o poder total e o domínio absoluto. Eis aqui a intuição e a genial proposta do tentador: salvar e libertar toda a humanidade, mas mediante o poder, o prestígio e a dominação. O tentador não pretende que Jesus se afaste de seu fim, senão que procure atingir esse fim, usando os meios que são exatamente o oposto da solidariedade.
Mas Jesus rejeita a tentação do poder, porque para Ele, não há outro meio de salvação e libertação que a solidariedade até a extrema radicalidade. A tríplice tentação condensa as “pulsões” mais importantes que o ser humano experimenta e que, quando alimentadas, podem afastá-lo do melhor de si: o ter, o poder e o prestígio (fama). Nesse sentido, Jesus não vive para seus interesses, mas em docilidade à Vontade de Deus; Jesus não é um Messias que se impõe pelo poder nem pelo êxito; a única força que o move é a fidelidade ao Pai e à missão.
Hoje estamos condenados, pelos meios de comunicação, a alcançar o sucesso custe o que custar, doa a quem doer, impedidos de realizar gestos de gratuidade e solidariedade. A Ética e a Moral são apenas conceitos idealistas que não correm mais nas nossas veias. Por que ser transparente num mundo de pessoas opacas e “brilhantes”, que só querem ofuscar os outros com tanto brilho individual? A ideologia da vaidade é aquela que responde por essa ânsia de tudo ganhar, de comparar-se com os outros num ritmo frenético. Como recuperar os sonhos e utopias quando precisamos manter nossos rostos com aparência de jovens enquanto nossos espíritos estão carcomidos pela angústia e pela não superação dos fracassos que são sinais das nossas tentativas de avançar cada vez mais?
“Esta fome de prazer, de posse e de poder, esta sede de reconhecimento pelo êxito e admiração, esta é a perversão do homem moderno. Este é seu ateísmo. E assim o homem se converte num desgraçado e altivo semideus” (Moltmann).
As “tentações de Jesus” constituem a melhor mediação que dispomos para uma aproximação ao espaço de nosso próprio coração. E o coração é lugar onde se encontram dois dinamismos, dois impulsos:
a) impulso para “ir além de si mesmo” – impulso de vida
b) movimento de retração-medo-apegos – impulso de morte
Aqui, trata-se da consciência da presença destas duas forças opostas (uma de alargamento ou expansão de si mesmo em direção aos outros, à criação, a Deus; e outra de fechamento, resistência e medo). O tempo Quaresmal ajuda a desvelar (tirar o véu, pôr às claras...) os dois dinamismos, as duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso interior. Não se trata de alimentar uma luta entre eles, como um combate entre o bem e o mal; tampouco se trata de uma leitura moralista diante da presença das chamadas “tentações” (tendências, impulsos, inclinações... presentes em todos nós).
O seguimento de Jesus não é luta interna que desgasta, levando ao sentimento de impotência e desânimo. O combate dualístico (entre o bem e o mal) desemboca no puritanismo, no farisaísmo, no legalismo, no perfeccionismo, no voluntarismo... onde o centro sou “eu”. A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos eu alimento; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para deixar-se conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito. Trata-se de sermos dóceis para deixar-nos conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos.
Não é possível conseguir uma situação de paz e reconciliação interna se não se parte de uma escuta muito atenta das vozes que ressoam em nosso interior, atraindo para direções contrárias. O engano acontece quando nosso coração se apega “pulsionalmente” aos dinamismos de morte (riqueza, poder, prestígio) até depender deles; nesse caso, eles deixam de ser mediações do Reino para converter-se em ídolos do próprio coração. Deles se espera a salvação, e não de Deus.
Não será através do voluntarismo que poderemos calar essas vozes, negar oposições internas existentes, conciliar diplomaticamente os impulsos e os movimentos que se opõem em nosso interior ou reconciliar as desavenças íntimas existentes. O decisivo é “deixar-se conduzir” pelo Espírito. Aqui não há engano.
Texto bíblico: Lc. 4,1-13
Na oração: A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a tomar consciência das alianças e cumplicidades nas quais podemos cair em nossas relações com o mundo e com aqueles elementos que de modo mais decisivo põe em perigo nossa liberdade: as riquezas, o poder, o prestígio. É uma espécie de "embriaguez existencial" na qual a alteridade desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se esvazia.
- Rezar minhas “pulsões desordenadas”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
11.02.2013
“Quando jejuardes, não fiqueis com o rosto triste como os hipócritas” (Mt. 6,16)
Caminheiros somos, como foi o Povo de Deus, rumo à Terra Prometida, hoje num deserto diferente, povoado de desafios que podem atrofiar a visão e nos colocar à margem do caminho, mas também um deserto de encantos, repleto de sinais e de presença de Deus, que nos impulsiona, nos acompanha nas longas jornadas e nos acolhe no fim da marcha.
O tempo da Quaresma é para nós cristãos tempo privilegiado para retomar o ritmo da marcha, esvaziar nossas mochilas do supérfluo, reabastecer-nos do essencial, retomar as metas discernidas e assumidas diante de Deus. É Jesus mesmo que vai à nossa frente, que nos abre um caminho novo, orientado pela solidariedade com os mais sofridos, pela partilha do nosso ser e ter, por um amor incondicional e gratui-to... É Ele que se faz solidário em nossas dores e alegrias, pacificando o nosso interior e revelando o amor do coração paterno e materno de Deus.
A oração, a esmola e o jejum, são as três atitudes mais características do tempo da Quaresma. E nem sempre valorizadas como merecem, em nossa existência. A oração é adentrar-nos no nosso próprio interior, porque aí se faz ouvir a voz de Deus. E se ouvimos sua voz, nossa vida tomará um estilo diferente, mais evangélico. Mas dificilmente podemos entrar no interior se nos deparamos com um coração endurecido, hermético. Quando a oração é levada a sério, podemos prescindir de muitas coisas, fazer um autêntico jejum: de alimento, de tempo, de caprichos... Chegar a viver aquela sábia sentença de S. Francisco de Assis: “Desejo, realmente, poucas coisas, e as poucas coisas que desejo as desejo muito pouco”. Então, já não é preciso perfumar-se e nem lavar o rosto, mas compartilhar a partir da generosidade que Deus desperta. E isto tem um nome: esmola.
O tempo da Quaresma é tempo propício para recuperar o sentido da prática do jejum. O jejum real e sincero nos ajuda a fortalecer a liberdade interior frente às falsas necessidades, obriga-nos a renovar e confirmar o desejo de recorrer a Deus, de purificar nossa vida e exercitarmo-nos na oração e na justiça. O jejum e a sobriedade favorecem a aproximação espiritual a Deus e aos irmãos que sofrem. Ambos terminam facilmente na oração e em obras de amor e misericórdia (esmola). O jejum implica uma parada, graças à qual, a pessoa perseverante pode retomar suas energias que estão meio perdidas, para reuni-las e orientá-las para seu destino original. O jejum é um “olhar amoroso e vigilante” sobre si mesmo e para si mesmo, uma tomada de consciência sincera na direção de uma transformação profunda.
Na tradição dos Padres do Deserto, o jejum é o meio que a pessoa utiliza para criar um “espaço vazio” no qual o Espírito possa repousar, permitindo-a distinguir o essencial do supérfluo. O jejum tem a finalidade de nos possibilitar a experiência da falta. Descobrir que, além dos alimentos que nos nutrem, é o Senhor da vida que nos nutre. É sentir também nossa fragilidade. É uma maneira de retornarmos ao essencial, aceitar-nos em nossos limites. E é do fundo de nossos limites que invocamos a Deus. É do cerne de nossa humanidade que nós reencontramos a chama da divindade.
O jejum nos torna mais simples e humildes, mais conscientes de nossa própria fragilidade e debilidade, mais compreensivos e compassivos com as fraquezas alheias, mais misericordiosos; então, sim, ele está contribuindo para que Deus nos modele segundo o que Ele é. O jejum nos desperta para a solidariedade; com o jejum não vamos remediar a fome no mundo, mas sim, expressar que a fome no mundo nos diz respeito e nos afeta. E somos tão afetados que, voluntariamente, nos aproximamos da experiência de quem todos os dias dorme com o estômago vazio. É um gesto, antes de tudo, de compaixão, de padecer juntamente com os que sofrem.
Diante de uma sociedade que valoriza o ser humano em função do que consome – “consumo, logo existo” – nosso jejum é um grito que anuncia que o ser humano é valioso em si mesmo, porque assim o é para Deus. O que anima a pessoa a realizar o gesto forte de “ordenar-se” é a sua liberdade, o seu desejo de união com Deus e com toda a humanidade. É a busca da “vida em plenitude”.
Corresponde a cada um saber quais são os setores da vida nos quais lhe convém exercitar o jejum:
- Jejum da palavra para aprender a escutar.
- Jejum dos pensamentos para viver no presente.
- Jejum na utilização dos meios de comunicação para poder assimilar tanta informação.
- Jejum na comida, na roupa, na bebida, nos bens supérfluos... para ser capaz de agradecer tanta diversidade de dons...
- Jejum de ressentimentos, tristezas, medos e outros sentimentos negativos para que a vida possa fluir com mais liberdade...
Corresponde a cada pessoa encontrar sua ascese, ou seja, encontrar a maneira de ir esvaziando-se, despojando-se, para deixar espaço aos outros e ao Outro e chegar a viver em estado de união. Sem esta ascese, há saturação, banalização e exigências que nos levam ao endurecimento do coração. Disto brota uma relação muito íntima entre a atrofia do Transcendente e a atrofia da solidariedade.
É urgente fomentar uma “cultura da austeridade, da comunhão, da partilha...”, se não queremos nos desumanizar, nem desumanizar o planeta. A ascese nos capacita para a solidariedade; o ordenamento de nossos desejos nos permite escutar os desejos dos outros.
A ascese nos dá liberdade para sermos independentes das coisas e vivermos com o essencial. Não se trata de privar-se de “desfrutar”, senão de evitar que o “desfrutar” se converta numa obsessão e numa dependência. A sensibilidade para com os outros desaparece na medida em que as próprias pulsões se tornam intensas e descontroladas. Trata-se de não saturar o desejo, mas de deixá-lo aberto, como dinamismo para o Ultimo Desejo. Quanto mais vivemos em Deus, menos somos nós o centro, menos dependentes das coisas e mais receptivos somos aos outros.
Textos bíblicos: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Nossa quaresma torna-se um “estar com Jesus” no deserto, para, como Ele, dar a Deus o lugar central de nossa vida.
A quaresma é um tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir em nós; é abrir espaço, alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de reconstrução de si (conversão), de retomada da opção fundamental por Deus e pelo seu Reino (maior serviço, mais compaixão, mais partilha, mais solidariedade...).
- qual é o seu estado de ânimo e disposição para viver esta Quaresma?
- Você está preparado para a travessia do deserto? Está disposto a “caminhar”, a “sair”.
- Você está disposto a ser mais servidor, mais acolhedor, mais atento aos outros... nesta Quaresma?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
11.02.2013
“Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca” (Lc. 5,4)
5º Dom. Tempo Comum
Vivemos em “mundos-bolha”. É difícil sair do terreno conhecido, dos mares rasos. Tudo parece conspirar para que as pessoas se mantenham dentro dos limites politicamente corretos. Debaixo das expressões “transgressor”, “alternativo”, “diferente” se esconde um forte e constrangedor convencionalismo.
Quê significa hoje “lançar as redes em águas mais profundas?” Está difícil encontrar algo que soa verdadeiramente diferente: sair de nossas seguranças para adentrar-nos no mar aberto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo... É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode enriquecer-nos... A vida está cheia de possibilidades; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, provocações, aprendizagens, motivos para celebrar... lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
Há uma “normalidade doentia” instalada no nosso interior, reprimindo nosso nobre potencial e condicionando-nos a levar uma vida sem meta, sem significado, sem vigor, sem criatividade, sem entusiasmo...
“Ser normal é ser doente” (Kierkegaard). “Normalidade doentia” é a vida pequena, mesquinha, atrofiada..., é sempre fazer as mesmas coisas e não imaginar que elas poderiam ser realizadas de uma forma diferente; é a doença de praticar o que todos praticam sem refletir, sem questionar se existiria outra possibilidade de fazer. Faz as coisas de forma repetitiva, utilizando baixo potencial criativo.
Na pessoa “normal” predomina o dinamismo do medo e não do desejo. A necessidade de mudanças gera insegurança, obscuridade no seu horizonte... Tende a ser uma pessoa medíocre, nada arrojada e sem desejos de romper seu estreito e limitado mundo.
Nem tudo na vida pode ser diferente, novo, rompedor. Mas existe o perigo de que tudo na vida seja convencional, rotineiro. Uma pessoa pode construir uma vida encapsulada em espaços feitos de hábitos e seguranças, situações estáveis, convivendo com pessoas que pensam e vivem do mesmo modo... Com isso, ela acaba estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isto acontece, termina tendo perspectivas pequenas, visões incompletas, horizontes atrofiados e, provavelmente, ignorância sobre um mundo amplo, complexo e cheio de ricas possibilidades.
Somos “seres de travessia”; é próprio do ser humano ousar, romper, ir além... No entanto, não temos rotas formatadas; “ir em direção às águas mais profundas” é um bom momento para arriscar a viver uma experiência transformadora, aproximando-nos do diferente: abrir portas de mundos que desconhecemos; viver situações às quais não estávamos acostumados; sentir coisas que nunca havíamos sentido; conhecer lugares e pessoas que tornarão mais autêntica nossa travessia...
“Nós não nascemos humanos; nós nos tornamos humanos”, através de um investimento em nosso potencial de despertar e de auto-realização. Nesse sentido, é normótica uma pessoa estagnada em seu processo de humanização, que não ativa seu potencial de inteligência e imaginação, de consciência ética, de transparência e integridade, que enterra seus talentos que lhe foram confiados...
Uma pessoa se humaniza quando abandona os trilhos “normais” previsíveis e penetra em trilhas criativas e inusitadas. O imenso desafio da existência humana implica na ousadia de transgredir, consciente e responsavelmente, as amarras da normalidade, romper as velhas rotinas consagradas e se aventurar no mar aberto da vida. Neste caso, a pessoa realmente saudável é a que expressa um certo desajustamento justo, uma rebeldia criativa, um impulso mobilizador...
“Dá-me, Senhor, capacidade e valentia para deixar o terreno conhecido, para sair do já sabido, para aprender cada dia aquilo que possa se tornar novidade, surpreendente, diferente” (oração Magis)
Jesus é o homem integrado, livremente tem acesso ao seu oceano interior e deixa emergir as ricas possibilidades, criatividades, inspiração... Ele traz o “novo” das profundezas do seu ser: novo ensinamento, novo olhar sobre a vida, nova atitude, novo compromisso...
Ao mesmo tempo, com sua presença instigante, Ele desperta, ativa e faz vir à tona o que há de mais humano nas pessoas. No caso dos pescadores, homens rudes mas que carregam uma nobreza interior, Jesus os desafia a serem mais humanos. “Farei de vós pescadores de homens”. “Pescar homens” é trazer à tona o que de humanidade está escondido ou atrofiado em cada pessoa.
O apelo a lançar “redes em águas mais profundas” é ocasião para motivar a buscar a inspiração no oceano interior. Jesus convida aqueles pescadores, instalados numa maneira tradicional de pescar, a serem criativos na arte de pescar: sair da rotina, da maneira tradicional de pescar, buscar o novo e o diferente nas profundezas do mar... Isso dá medo, mas faz a pessoa deslocar-se para o desconhecido, sair das margens conhecidas e seguras.
Do mar da Galileia ao mar da vida: este é o movimento que Jesus desencadeia em todos nós. Ele desafia a que cada um mergulhe mais a fundo no oceano do coração e alí busque o humano que está escondido: novos sonhos, novas possibilidades, nova inspiração, novo sentido para a existência...
Para isso é preciso vencer o medo que atrofia tudo o que é humano em nós. Alargar nossos espaços interiores, sermos mais ousados e sonhadores, romper com o “normótico” e tradicional, ativar e desvelar o que está escondido. Assim, com nossa presença humanizadora, seremos capazes de pescar o “humano” que também está presente no outro.
Texto bíblico: Lc. 5,1-11
Na oração:
Pedro e seus companheiros queriam algo novo; no entanto, romper com a normalidade na arte de pescar estava para além de suas possibilidades. Foi necessário que Alguém de fora os incitasse ao abandono daquele modo arcaico de pescar.
Diante de Deus, considerar algumas posturas que poderão ser desenvolvidas, para eliminar o “vírus” da normalidade:
- você tem uma curiosidade sadia diante do novo e do desconhecido?
- você age com otimismo lúcido, enfrentando as situações desconhecidas de forma auto-motivada?
- você tem o hábito da interrogação? Grandes oportunidades podem ser descobertas quando se aprende a fazer perguntas, principalmente a si mesmo.
S. Inácio de Loyola, antes de fazer qualquer coisa, tinha o hábito de se perguntar:
O quê eu vou fazer? Por quê vou fazer? Para quem vou fazer? Como vou fazer?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
04.02.2013
“Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam de sua boca” (Lc. 4,22)
4º Dom. Tempo Comum
O ser humano é um “corpo falante”. O “sopro de vida” passa pelo “sopro da palavra”. “Nós somos palavra”. Somos feitos para a comunhão, para unir as nossas vidas. É graças à força das palavras que derrotamos o silêncio angustiante da solidão, derretemos o gelo da indiferença, aprendemos a “partilhar o ser e o ter”. De modo particular os poetas, os amantes, os místicos e os filósofos perceberam, desde sempre, a força e a sedução da palavra.
As palavras conseguem criar pontes, horizontes, chegando a lugares jamais imaginados ou tocados pelos pés de quem a emite. No entanto, elas perdem força quando não nascem do silêncio. O mundo está repleto de papos vazios, confissões fáceis, palavras ocas, cumprimentos sem sentido, louvores desbotados e confidências tediosas, palavras enfeitadas e vazias, sem alma, nem paixão. “Os homens gastam-se tanto em palavras que não podem entender o silêncio de Deus” (D. Helder Câmara).
A palavra tem os atributos divinos. Os próprios textos sagrados nos dizem que “Deus é Palavra” e, em Jesus, ela se faz carne. Jesus, a Palavra Encarnada, ajusta sua palavra à Palavra do Pai. As palavras tem um peso no anúncio e na atividade missionária de Jesus; não são neutras. Como um raio x que transpassa, as palavras proferidas por Ele iluminam os recantos mais profundos do ser humano; como um refletor em noite escura, ela reacende a esperança onde tudo já perdeu o sentido; como a chuva em terra seca, ela desperta novidades na vida, sacode as consciências adormecidas, põe em questão as atitudes de indiferença e de fechamento...
Enfim, a palavra de Jesus desencadeia nos ouvintes uma crise: eles tem que se decidir porque com a palavra de Jesus se dá uma divisão entre luz e trevas, vida e morte... Quem aderir à sua pessoa e mensagem, encontrará uma saída feliz e libertadora da crise: a vida eterna.
Jesus pregou uma mensagem que constituía uma crise radical para a situação social, religiosa, política e humana da época. Proclama o Reino de Deus. A crise que Jesus provoca junto aos seus conterrâneos visa redimir o ser humano, isto é, tirá-lo de seu horizonte limitado e estreito para elevá-lo a um horizonte amplo, próprio de Deus. A crise irrompe quando os dois horizontes se entrechocam.
A novidade de Jesus consiste em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo. Desse modo, Ele aponta para a vida como lugar da Presença. Jesus nos convida a viver o encontro com Deus no centro de nossa pessoa e da vida mesma. E Ele se faz de “espelho” para nós, para nos revelar como é que é uma vida vivida desse modo: uma existência marcada por um amor compassivo e por um compromisso acolhedor.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.
Falar em conflito na missão de Jesus é o mesmo que falar da fidelidade de Jesus. O que tem valor em sua vida é seu Amor fiel, e não os conflitos em si mesmos. A dimensão conflitiva da fidelidade de Jesus à missão é o resultado do confronto entre sua missão (que anuncia a justiça do Reino e as bem-aventuranças) e a realidade que não quer ouvir e rejeita a novidade do Reino. A conflituosidade na vida de Jesus proveio do choque entre as exigências do Amor e a realidade injusta e pecadora. Jesus não cria conflitos; Ele os constata ao dar testemunho das exigências do Amor.
Talvez o que mais nos falte hoje em dia seja dirigir nosso olhar sobre “a palavra”, prestar atenção à palavra mesma a partir da espiritualidade. Podemos chegar, assim, ao “interno conhecimento” da palavra, à reverência para a palavra por ser expressão externa da palavra interior escutada no silêncio, por ser palavra “dirigida” a Alguém.
Sem dúvida, em nossa sociedade pós-moderna, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Atrofiamos as palavras, adocicamo-las, manipulamo-las ou as submetemos a um violento esvaziamento de significados segundo nossa conveniência.
É preciso uma atenção especial à “palavra ociosa” ou sem direção, a qual não traz benefício próprio nem alheio, nem tem intenção clara. Portanto, “cuidar a palavra é cuidar o mais próprio do ser humano, enquanto que é através dela como se expressa nosso mistério” (Melloni, sj).
É preciso “sentir” a palavra, e isso implica um conhecimento espiritual, que não é nem puramente intelectivo nem puramente afetivo. É palavra que procura traduzir a palavra interior, saber “empalavrar”, ou seja “pôr em palavras” nossa realidade interior e exterior.
Desde o nascimento até à morte, continuamente estamos “empalavrando” nossos sentimentos, sonhos, aspirações... A palavra abarca todas as expressividades humanas. Ela não se reduz à oralidade. A gestualidade, a linguagem corporal, a presença solidária e compassiva... tudo isso também forma parte da palavra humana. Os comportamentos éticos também e os valores são formas de “empalavramento”. As palavras são, ao mesmo tempo, pensamento, ação, sentimento... Para o ser humano só existe o que pode ser expresso através das palavras.
Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.
Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida. Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio (há demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem pouco.
Jornais, revistas, tevê, outdoors, telefone, face-book, Internet, correio eletrônico... há demasiado palavrório. Carecemos de poesia.
O silêncio é a matriz da palavra. Talhada pelo silêncio, mais significado ela possui. O tagarela cansa os ouvidos alheios porque seu palavreado crônico ecoa sem consistência. Já o sábio pronuncia a palavra - empalavra – lavra a palavra do meio do cascalho de sua vida; ele não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo. Ele tem a capacidade de aproximar a palavra à experiência, para resgatá-la da insignificância, do anonimato, fazê-la inédita, consciente e podê-la assim confrontar com a Palavra que, feito carne, entrou em nossa experiência histórica.
Sabem os místicos que, sem calar o palavreado crônico, é impossível ouvir, no segredo do coração, a Palavra de Deus que neles se faz expressão amorosa e ressonância criativa. A palavra recém saída do forno da experiência está viva, quente... transforma a vida.
Texto bíblico: Lc. 4,21-30
Na oração:
Você é atento ao que fala, o modo como fala, o tom e os sentimentos com que fala?
Você consegue distinguir as palavras que salvam e as que arrasam?
Cave palavras nas minas do seu silêncio, e deixe que o Espírito diga a “palavra” misteriosa, diferente, reveladora de sua verdadeira identidade. Somente o silêncio poderá gerar “palavras de vida”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
01.02.2013
Nós cristãos temos sacralizado coisas, templos, objetos, títulos..., nos quais pensamos encontrar Deus e nos relacionar com Ele. No entanto, como seguidores de Jesus e enraizados no Evangelho, precisamos urgentemente caminhar para a “sacralização” do ser humano.
É chegado o momento de assumir de verdade uma questão capital. O vazio dos templos, o pouco apreço e a baixa estima das práticas piedosas, dos dias religiosos, das coisas da religião... é a ocasião privilegiada que os “sinais dos tempos” nos servem de bandeja, para que caiamos na conta de que está acontecendo um “deslocamento” do sagrado, uma autêntica “metamorfose” do sagrado, que não é um atentado contra a religião e contra Deus. Trata-se, pelo contrário, de uma “recuperação” do sagrado no sentido autêntico dado por Jesus e que se encontra no cristianismo nascente.
O verdadeiramente sagrado, que é preciso respeitar e dignificar, é o ser humano, que está no centro da atividade e ensinamento de Jesus e acima das instituições religiosas.
A questão está clara. Jesus deslocou Deus dos lugares sagrados, O separou dos objetos sagrados, dos templos sagrados... e O colocou em cada ser humano, O revelou no meio da vida, das relações, do trabalho, da luta, das festas...
Este “deslocamento” de Deus é percebido claramente na cena das “Bodas de Caná”, (Jo. 2,1-12). Em quê consistiu o primeiro “sinal” realizado por Jesus, no evangelho de S. João?
Mergulhando mais a fundo na cena damo-nos conta de que a água que Jesus transformou em vinho não era água para os usos domésticos ou, mais precisamente, para usos “profanos”; em outras palavras, não era “água para a vida” (beber, preparar refeições, lavar-se, regar...), mas era “água para a religião”. O Evangelho diz isso expressamente: “Havia ali seis talhas de pedra para a purificação dos judeus, com capacidade de setenta a cem litros cada”. Portanto, seiscentos litros de água, armazenadas em talhas de pedra. Expressa-se, assim, em linguagem metafórica, a enormidade e o peso da religião judaica; representa todo o sistema da observância ritual judaica, que impedia as pessoas viverem mais plenamente.
Jesus, na primeira oportunidade que teve, suprimiu a “água da religião” e transformou-a em vinho, no generoso “vinho da vida”, sinal da abundância de vida e do prazer de viver. Definitivamente, o que Jesus quis dizer, mediante o primeiro dos “sinais” que realizou em sua vida, foi que a velha ordem religiosa havia terminado. A partir de então, Deus manifesta sua “glória” de outra maneira. Jesus traça e marca uma nova ordem: Deus deixou de impor e exigir rituais religiosos e purificações sagradas. Em vez disso, Deus se comunica “na vida”, no prazer da vida, na alegria de saborear a vida e a festa, em tudo o que, de maneira espontânea, evoca o melhor vinho que nós, humanos, podemos beber neste mundo.
Jesus “des-sacralizou” o templo, o sábado, o sacerdócio, as instituições religiosas judaicas, e “sacralizou” a festa como tempo e espaço de humanização. A “glória de Deus”, a partir de Jesus, não se manifesta mais no Templo, nos sacrifícios e nas solenidades litúrgicas, mas no prazer da festa e na alegria dos amantes que compartilham o melhor vinho. Isso é muito humano! E exatamente por isso é tão divino.
Não nos esqueçamos de que tudo isso aconteceu em uma festa de casamento.Essa é a razão pela qual é tão difícil converter-se ao Evangelho. De uma forma ou de outra, todos nós ouvimos, a todos nós chegou a mensagem da religião que prega a ética do dever e da renúncia, da moral, do sacrifício e da mortificação, da superação, da paciência, da privação de todo bem e, acima de tudo, a negação do prazer proporcionado pelo amor entre as pessoas.
Ao abolir o “sagrado” das instituições religiosas e do culto, abafadores de tantas injustiças, Jesus inaugura a normalidade do profano, do secular, da vida cotidiana, da vida partilhada e festiva... Nossa cultura e nossa religião nos educaram nessa mentalidade. E não nos explicaram que o verdadeiramente difícil é amar buscando sempre a felicidade da outra pessoa, sua realização, sua alegria, sua liberdade, sem pretender jamais dominá-la, nem fazê-la à nossa imagem e semelhança, em jamais pedir algo em troca. Amar assim, com tal transparência de sentimentos e de intenções, isso é pureza de coração. Por essa razão, aí nos deparamos todos com o grande obstáculo para nos deixarmos deslumbrar pela “glória” do Senhor.
Por essa razão, a grande revolução trazida por Jesus, na história das tradições religiosas e da humanidade, consistiu em demonstrar que precisamente a divinização do ser humano consiste em sua mais profunda e radical humanização.
Jesus entendeu e viveu a religião “de outra maneira”. Jesus entendeu a religião de um modo que sua forma de praticá-la não se ajustou ao modelo estabelecido até então. Jesus foi um leigo, que não fundou nenhum templo, nem levantou altares, nem organizou uma classe sacerdotal, nem impôs jejuns e privações ascéticas, nem dispôs cerimônias rituais ou purificações sagradas. De nada disso falam os Evangelhos.
Pelo contrário, os relatos evangélicos atestam muitas vezes que Jesus teve sérios conflitos com a religião sagrada de seu tempo, a ponto dos sacerdotes daquela religião verem n’Ele um perigo, uma ameaça; ou seja, o perigo e a ameaça que os “sinais” representavam para o “lugar santo” (templo) e sua religião em geral. Sabemos que Jesus disse a uma mulher samaritana que havia chegado a hora em que Deus não é mais adorado neste ou naquele templo. O que Deus quer é a adoração “em espírito e em verdade”.
O Deus de Jesus está deveras no templo de sempre: no ser humano. Não podemos imaginar Deus distante do humano, ou, pior ainda, em oposição ao humano e até rival do mais humano que há em nós. Nós cristãos cremos no mistério da “encarnação”. Quando falamos desse “mistério”, estamos nos referindo não só à divinização do ser humano, mas igualmente à humanização de Deus. Jesus nos revela um Deus tão profundamente humano que n’Ele fica desterrada qualquer forma de manifestação de desumanidade. E somente podemos crer no Deus de Jesus na medida, e só na medida, em que sejamos profundamente humanos.
Na oração: “Encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”; “Ver Deus em tudo e tudo em Deus”; “Em tudo amar e servir”... são expressões inacianas que revelam uma atitude contemplativa perante a vida.
- Sua experiência de Deus é vivida somente nos tempos de oração-celebração, ou também é sentida no ritmo cotidiano de sua vida?
- Quem é o Deus em quem você crê? É o Deus da lei, do sacrifício, cuja presença atrofia de tudo o que é humano... ou é o Deus de ternura, o Deus da vida e da festa...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
14.01.2013
“O céu se rasgou e viu-se o Espírito descer sobre Ele” (Lc. 3,21-22)
Terminado o “tempo natalino”, começamos hoje o “tempo comum” (Ano C), ou seja, a vida pública de Jesus, sua missão como Filho em favor dos filhos. O relato do batismo – que marca a passagem da vida em Nazaré para a vida peregrina – faz referência a uma experiência fundante de Jesus: confirmado pelo Pai, impulsionado pelo Espírito, Ele descobre o sentido de sua vida e a missão que devia realizar.
O batismo de Jesus implica uma profunda experiência espiritual, muito ligada à sua atitude humilde de aproximar-se do rio Jordão, onde as pessoas simples do povo buscam no batismo de João uma purificação de suas vidas. Jesus “desce” ao Jordão, gesto que condensa sua descida do céu à terra, sua “kénosis”, a radicalização de sua Encarnação. É uma “descida” às águas da humanidade. Nesse sentido, o batismo não é a prova da divindade de Jesus, mas a prova de uma verdadeira humanidade; Jesus “desce” ao Jordão, submerge na vida e na condição humana e ali faz a experiência de ser conduzido pelo Espírito em favor da humanização de todos.
Ao sair do Jordão, Jesus experimenta uma “teofania” (manifestação) que revela seu mistério mais profundo: o Céu deixa de estar em silêncio, o Céu não se compraz na Lei e no Templo, o Céu se compraz em Jesus que, a partir de sua profunda percepção do Deus de Israel como Ternura e Fonte da Vida, converte sua vida em uma Boa Noticia para os abatidos da casa de Israel.
O céu se abre e sobre a terra começa a caminhar um Homem cheio do Espírito. Esse Espírito que desce sobre Ele é sopro de Deus que cria vida, a força que renova e cura a humanidade ferida, o amor que transforma tudo. Sob o impulso do Espírito Jesus se dedica a libertar a vida, a curá-la e a fazê-la mais humana. Por isso, o grande protagonista da liturgia de hoje é o Espírito. A missão de Jesus não pode ser entendida a não ser pela experiência de deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito.
Quando consideramos profundamente a vida de Jesus, o que Ele faz, o que Ele sente e o que Ele diz, temos esta evidência: este homem é inexplicável sem o Espírito. Sem esse Espírito tudo se apaga no cristianismo. A confiança em Deus desaparece. A fé se debilita. Jesus fica reduzido a um personagem do passado, o Evangelho se converte em letra morta. O amor se esfria e a Igreja não passa de uma instituição religiosa a mais.
Sem o Espírito de Jesus, a liberdade se atrofia, a alegria se apaga, a celebração se converte em costume, a comunhão se esfacela. Sem o Espírito a missão é esquecida, a esperança morre, os medos crescem, o seguimento de Jesus desemboca na mediocridade religiosa (cf. Patriarca Atenágoras).
No batismo, Jesus rompe com a “normalidade” de sua vida cotidiana e começa a ver tudo a partir de um horizonte mais amplo. Ele sente um chamado real a olhar a humanidade, com suas feridas e possibilidades, a partir da consciência de uma fraternidade ampla. Ao descer às margens do Jordão, Jesus desloca-se para as margens da humanidade, rompe fronteiras, abre os olhos a uma realidade mais ampla...
Ao “entrar na fila dos pecadores” Jesus descobre novos rostos, novos dramas, novas histórias... e se deixa empapar (banhar) por esta realidade carente de sentido e de horizontes. Ao conectar-se com esta realidade, Jesus carrega a própria história de um horizonte diferente, na qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades. Descobre uma perspectiva mais ampla que o ajuda a formular melhor o sentido de seu chamado e de sua própria missão.
A festa do batismo de Jesus é uma ocasião especial para repensar nosso batismo, um convite permanente para relançar-nos em Sua aventura, de deixar-nos invadir pelo Seu Espírito, de comprometer-nos com Seu Reino.
Na vivência cristã, nosso maior risco é o esquecimento de Jesus e o descuido de seu Espírito. É preciso voltar às fontes, à raiz, recuperar o Evangelho em toda sua pureza e verdade, deixar-nos batizar pelo Espírito de Jesus. Se não nos deixamos reavivar e recriar por esse Espírito, nós cristãos não teremos nada importante a contribuir com a sociedade atual, tão vazia de interioridade, tão incapaz para o amor solidário e tão carente de esperança.
Sabemos que todo ser humano sente em seu interior a força do Espírito que rompe as barreiras de seu egoísmo, que o expande para além de si mesmo, que o arranca de seus “lugares estreitos”... Nesse sentido, o batismo significa uma experiência de rompimento de fronteiras profundas, de deslocamento para novos horizontes, de alargamento do coração... um movimento de expansão de todo o ser. “Experiência” que implica emoção e descoberta, com sabor do risco, da criatividade, da ousadia...
Da experiência batismal emerge uma pessoa internamente reconstruída, com vontade de sair daquilo que a limita, empobrece, degrada...; é a experiência de alguém que é impelido a lançar-se, a assumir novos riscos, a deslocar-se para as novas encruzilhadas de si mesmo e da história.
Para “viver o batismo”, é preciso tornar-se velejador de mar aberto, livre e desprendido, abrir-se para o novo e diferente, deixando-se conduzir pela correnteza do rio... e “passar para a outra margem”. Essa “travessia” exige mudança de atitude, pôr-se a caminho, êxodo, sair-de-si... Sair da margem conhecida, velha, rotineira... para encontrar a nova margem da relação, do compromisso, dos sonhos...; lugar provocador de mudanças, de onde brotam as grandes experiências, as intuições, os ideais vitais...
“Não basta fazer viagens, de vez em quando, às fronteiras, levar uma doação, fazer uma reportagem impactante e lançá-la na torrente midiática que se expande pelo mundo inteiro. Nem sequer é suficiente permanecer ali por algum tempo. É necessário fincar raízes profundas nas realidades fronteiriças para estar solidamente enraizados, para pertencer a esse mundo, para ser daí” (Benjamín G. Buelta sj).
Textos bíblicos: Lc. 3,15-16.21-22
Na oração: Ao “descer” junto às margens do nosso Jordão, podemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a peregri-nar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão sentido e consistência ao nosso viver.
Recordar (lembrar com o coração) dimensões da vida que precisam ser ampliadas a partir da vivência do batismo. Recordar medos, entraves, obstáculos... que limitam sua vida batismal.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
08.01.2013
“E a estrela ia adiante deles, até parar sobre o lugar onde estava o menino” (Mt. 2,9)
O ciclo do Natal tem-se revelado como um tempo infestado de “lugares comuns”, no qual experimentamos emoções conhecidas e também comercializadas; no entanto, precisamos nos aproximar deste mistério como se fosse da primeira vez: ali acontece o inusitado e o surpreendente.
As informações dos meios de comunicação, as cadeias de televisão... despertam os olhos para ver o de cima, o que conta, o que vale, o que impera..., enquanto que Belém nos atrai para baixo, nos dá olhos para ver o que não aparece, o que não conta, o que quase não se vê. Deus revela sua presença na história pelo lado mais baixo e fraco. E para encontrá-Lo temos de empreender o caminho de “descida”, dirigir o olhar e o coração para o mundo das “margens”.
Em tempos de “deslocamentos forçados” para milhões de seres humanos, somos convidados a olhar o “avesso” da história para encontrar a Salvação que vem. É por esse caminho que podemos chegar ao conhecimento de nós mesmos e nos fazermos mais “humanos” e “solidários”. No fundo, a única resposta diante do mistério do Natal é esta: “Só o Amor faz coisas assim” (Guardini)
É surpreendente que a pequenez e a vulnerabilidade sejam o cartão de visitas de Deus. A festa de hoje é o memorial desta verdade, sempre esquecida. Deus não nos estende a mão a partir de cima, senão que se mostra necessitado, a partir de baixo. Ele nos ajuda a partir da fragilidade. Ele está “envolvido em faixas” , deitado em cima de palhas, como se não houvesse outro modo de manifestar sua compaixão.
A estrela misteriosa “parou no lugar onde estava o menino”. Deus já não deve ser buscado para além dos astros; Ele está no coração da humanidade, e nada do que é humano é descartado...Deus vem na contramão de nossas expectativas, arma tenda nos acampamentos dos exilados e excluídos, compartilha a sorte dos fugitivos, se solidariza com os últimos, a “massa sobrante”...
Tendo Ele nascido para sempre nas “periferias” do mundo, porque deseja assumir toda a história a partir daí, todos nós também temos de voltar constantemente o olhar para as “novas periferias” da exclusão, a partir de onde Ele continua nos questionando. Ele não tem palavras, mas é a Palavra; não impõe a paz, mas é a Paz e o Príncipe da Paz; Ele não veio trazer a luz, mas é a Luz nas trevas do coração humano...
Jesus nasce fora da pequena Belém, numa manjedoura, porque, para aquela família deslocada pelos mecanismos do império, não havia lugar no centro. No entanto, Jesus é o “centro” da história; Ele descentraliza o mundo a partir da periferia: torna-se “ex-cêntrico” porque não combina nem se ajusta com a construção social de todos aqueles que controlam o mundo a partir do centro.
A ação de Deus provoca um “deslocamento” geográfico, social, religioso..., e todo aquele que pretende encontrar-se com Jesus terá de dar meia-volta e peregrinar em direção às “margens”.O Senhor vem! Na sua direção põe-se a caminho os simples, os pobres, os excluídos, os últimos: somen-te eles tem olhos capazes de reconhecer... a Esperança; a Ele vão todos os que, em seu coração, lançam-se a uma busca aberta: somente quem deseja a Luz pode ver o brilho nos olhos do Menino de Belém!
Sobre ele se inclina sua Mãe, em silêncio: o Amor não precisa de palavras para ser entendido.
Vamos também nós, como os Magos, fazer este caminho em direção ao “Deus clandestino”, para que as águas deste tempo natalino possam empapar nossas vidas e despertar em nós o assombro, a acolhida, o olhar contemplativo... diante do Menino que não fala e mostra tudo de Deus.
Texto bíblico: Mt. 2,1-12
Na oração: Diante de milhões de estrelas de nosso mundo que ofuscam nossos olhos, é preciso aprender a discernir aquela que nos conduz a Jesus. Nesse sentido, o relato dos Magos é paradigma de discernimento. Recordemos o relato da Epifania e procuremos perceber, por trás do texto, três possíveis ícones de nossa interioridade: Herodes, os escribas e os Magos.
Todos atuam convencidos de fazer o melhor e de serem até justos. No entanto, somente os Magos tem a autêntica liberdade para ver algo mais além de si mesmos e para abrir-se à Boa Notícia. Tal relato ilustra o risco do fechamento em si e de enredar-se nas armadilhas do próprio poder ou da própria inteligência. Isso se manifesta como rigidez para a mudança, a intensa necessidade de manter a própria imagem, a resistência em aceitar coisas novas que rompam seu frágil equilíbrio ou os sérios limites da vontade...
A impressão que se tem é que a atitude de Herodes está dominada pelo medo a tudo o que ameace seu pequeno protagonismo, seu minúsculo poder, a pequena cota de prestígio com a qual sustenta sua frágil autoestima...; e essas ameaças devem ser eliminadas o quanto antes.
Por outra parte, parece que toda a inteligência e a longa formação dos escribas lhes permite quase tocar a verdade, mas, petrificados em seu próprio saber, não vêem os sinais que os magos percebem; obscurecidos pelo cinismo, perderam a capacidade necessária para abrir-se ao mistério e à novidade que ultrapassa suas sutis racionalizações.
Estes dois ícones – Herodes e os escribas – nos sugerem que as resistências para com a alteridade contaminam aos “sábios e entendidos” e aqueles que, a partir de seu poder e prestígio, não deixam espaço para o encontro com o outro, nem para escutar o que vem de fora.
No processo da oração busquemos ser como os magos: desejosos de encontrar a Vontade de Deus, atentos para reconhecer estrelas na noite e ágeis para segui-las, capazes de pedir ajuda quando nos perdemos e apaixonados por descobrir o caminho que nos conduz para as periferias da humanidade. Nesse processo, os Magos escutam outras palavras e sinais, aprendem a filtrar aquilo que “ajuda para o fim” e a não seguir qualquer conselho.
Herodes e os escribas estão presentes e ameaçam reaparecer sempre. A Graça também nos precede e nos acompanha sempre e libera nosso coração e nossa inteligência para abrir-nos ao novo, a abertura que permite reconhecer o “mistério” e adorá-lo.
Como os Magos, também nós nos dirigimos primeiramente aos palácios de nossa sociedade do bem-estar e aos “Herodes” contemporâneos, até que nos damos conta de que ali não encontramos o que estamos buscando, que ali se anula e se anestesia a vida, essa vida de Deus que quer crescer em nós.
Os Magos do Oriente são o símbolo de tantos homens e mulheres que em qualquer parte do mundo, a partir de outras sendas e tradições espirituais, se perguntam, buscam e caminham. Eles não buscam sozinhos, mas em comunidade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
02.01.2013
“O Senhor volte para ti o Seu rosto e te dê a paz!” (Num. 6,26)
Sobre o evangelho de 01.01.2013
“Começar de novo...”, diz o refrão de uma conhecida música; pois é exatamente o dom de recomeçar, sempre, que nos caracteriza como humanos.
Neste início de um Novo Ano, somos impelidos a caminhar para algo novo; somos convocados pelo futuro a realizar projetos diferentes, possibilidades novas, “coisas” que nos acenam lá de longe e nos fazem uma proposta: “re-criem-nos”; coisas que surgem sob a forma de um desejo, de uma esperança... mas que sempre dependem de nós para se tornarem concretas. Elas exigem empenho, dedicação e criatividade.
Habita em nosso interior uma nostalgia de alguma coisa mais original, de um novo início e da tentativa de outros caminhos. Trata-se de uma nostalgia de algo mais humilde e simples, que nasce do “húmus”, da terra que somos. É o desejo de sermos nós mesmos simplesmente, humanamente, prazerosamente.
É a necessidade de viver recomeçando continuamente.
Corremos o risco de “secar por dentro” se perdermos a simplicidade, o amor, a ternura...
Não é este o momento de permanecermos imóveis só porque o caminho está obscuro e inexplorado. O que deve impulsionar a vida cristã atual é a espiritualidade da criação, da iniciativa, do momento presente... Vivemos um momento importante, único, num tempo de renascimento em estado embrionário, num momento de absoluto compromisso com a vida.
Num mundo em que reina sempre mais a citação, a cópia, a simulação, a repetitividade, a atividade sem sentido, a mediocridade..., sentimos a necessidade de ler o que nunca foi escrito, de construir o que nunca foi tentado antes, de recuperar o que foi deteriorado...
A lógica da nossa sociedade de consumo reprime nossa criatividade, nos faz retroceder em nossa humanidade e nos impede de aproximar de toda experiência mais profunda. Marcados por tradições e hábitos, dialogamos com o possível, o já esperado, o já testado, o “sempre fizemos assim”... Por isso, sentimos o desejo do retorno à espontaneidade e de aventurarmos na descoberta de um mundo diferente, ainda que assustador e incerto. “A princípio, estranha-se. Depois, entranha-se” (Fernando Pessoa).
Somos impulsionados, continuamente, a romper com o formalismo e convencional, a vida marcada pela ordem, normas claras e recompensas seguras... e caminhar para uma vida mais audaz e incerta, de horizontes amplos, de exigências que nos convidam a “começar de novo”, de significado mais universal.
Não caminhamos empurrados pelas costas, nem nossa vida é obra da inércia. Fomos feitos para o mais.
O Evangelho deste dia nos desafia a superar a rotina acostumada e romper as estreitezas da vida para poder acolher a admirável profundidade que se esconde e se revela na simplicidade da cena, que em seu nível mais profundo ou espiritual, fala de todos nós. Ali fala-se de alguns pastores, de um presépio, de um recém-nascido, de uma mulher que “guarda” um segredo, de glória e louvor a Deus. Toda a cena quer introduzir-nos em um Silêncio admirado e agradecido, pleno de luz, de paz e de gratidão.
A simplicidade do relato nos convida a mergulhar no Mistério que aí se expressa. Tudo está aí. E, da mesma maneira, tudo é agora. Pastores, presépio, recém-nascido, mulher silenciosa…: quando sabemos olhar, descobrimos que tudo está cheio da Presença que é, atemporal e ilimitada.
A Presença ou o Mistério não é uma realidade separada, à margem das coisas, nem sequer “ao lado delas”. Por esse motivo, os pastores, a mãe, o presépio, o recém-nascido... representam à realidade inteira: somos nós mesmos, é tudo o que nos rodeia neste preciso momento, são todos os seres. Como diz o livro da Sabedoria: “todos levam teu sopro divino” (12,1).
Basta “olhar” em profundidade. Pacificada a mente, silenciado o coração... abre-se passagem para a contemplação. Tudo está em tudo. E tudo é um admirável Mistério de Unidade. Aquilo que chamamos “Encarnação” é a proclamação de que tudo está atravessado pela Divindade, que em tudo se expressa e se manifesta. Quando contemplamos assim, sabemos que os pastores, a mãe, o presépio, o recém-nascido... representam a realidade inteira.
E diante dessa manifestação, o que nos resta? A atitude de Maria: acolher todas as coisas, “guardá-las”, “meditando-as no coração”. Ir mais além dos conceitos e das palavras e, desse modo, descansar – admirados, agradecidos, irmanados – no Mistério e deixar-nos conduzir por Ele.
“Meditar as coisas no coração” significa ativar o “olhar contemplativo” que se encontra em todos nós e que se manifesta quando cessamos nosso palavreado crônico. Serenados interiormente, somos presenteados com o dom de permanecer no presente, onde tudo está bem, onde tudo flui mansamente e na santa paz.
Este é o desafio diante do Novo Ano que se inicia: devemos primar por construir “ambientes de paz”: paz que vem do alto, que aquece nossos corações, plenifica nossas relações e se expande, tal como perfume, em todas as direções.
Paz é aspiração congênita do ser humano. Nosso coração humano foi feito para a paz e anseia a convivência harmoniosa com Deus, com o cosmos, com os nossos semelhantes. É processo interminável.
Na raiz bíblica do termo “shalon”, (em latim “pax”) está a ideia de “algo completo, inteiro”. A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência está do lado da falta, da carência, do incompleto.
Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, rompe os convênios, exclui os mais fracos.
Paz: Há milênios esta palavra ressoa e ecoa na história dos povos. Inúmeros homens e mulheres a cultivam secretamente no coração. Todos a invocam. Muitos dão a vida, defendendo-a... A paz autêntica contém densidade humana. É paz de consciência inocente dos justos que fazem o bem, dos profetas que se arriscam em favor dos outros. Paz é humanidade alegre, espontânea, confiante. Paz não é sossego, não é concordismo, nem cumplicidade. Paz requer bravura. Somente o ser humano amante da paz é realmente perigoso, não o violento.
Mas, a paz ainda não encontrou espaço para ser a companheira de estrada em nosso cotidiano. Permanece a promessa profética de que ela habitará na nossa terra. Assim, o sonho impossível, que reina desde sempre no coração do Senhor, amante da Paz, se realizará, graças àquelas pessoas revolucionárias, que acreditam, desejam e realizam a paz.
Paz “solidária” que abraça os excluídos; paz “resistência” que não se acovarda; paz “audácia” que não se amedronta; paz “limpa” que não corrompe a ética; paz “profética” que encarna a justiça; paz “rebelada” que não se dobra; paz “estética” que revela a face bela da nova humanidade... (cf. Juvenal Arduini). Na carta de S. Paulo aos Efésios, Cristo é chamado “a nossa paz” (Ef. 2,14).
A paz é característica do reino messiânico que Jesus inaugurou. Ele revela que a paz é um trabalho muito paciente, de artesanato. Ele era um artesão, um carpinteiro. Ele sabia que para ser mestre na arte de fazer móveis era preciso saber aplainar muito bem. A paz começa nesta arte de aplainar o que em cada um de nós é áspero e duro; há divisões e conflitos em nosso interior..., mas nós podemos, pacientemente, construir a paz do coração.
Quem tem paz irradia luz; quem vive na luz constrói a paz. Paz expansiva, paz que é respiração da vida, paz marcada pela esperança.
“Que a Paz de Cristo reine em vossos corações” (Col. 3,15)
Texto bíblico: Lc. 2,16-21
Na oração: Temos um coração maior que o mundo e desejos que nos fazem ter asas de águia. Quê sonhos alimentam o novo ano que se inicia... no nível pessoal, familiar, profissional, eclesial, social...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
27.12.2012
“Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém... Jesus desceu com seus pais para Nazaré” (Lc. 2)
Festa da Sagrada Família
O Evangelho de hoje relata a segunda visita de Jesus ao templo em Jerusalém (a primeira foi por ocasião da circuncisão). Trata-se do seu ingresso oficial na comunidade hebraica, inaugurando sua maioridade.
Em Jerusalém, no templo, Jesus adolescente realiza seu primeiro e solene ato de revelação. É nessa ocasião que Ele pronuncia as primeiras palavras registradas pelos evangelhos. E a primeira palavra, na prática, é “Pai”, dirigida a Deus; “Pai” será também a última palavra pronunciada por Jesus, ainda em Jerusalém, mas no novo templo do Calvário: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito” (Lc. 23,46).
Nas primeiras palavras de Jesus temos a afirmação condensada do que foi a sua vida, a revelação do seu mistério mais profundo. A relação com o Pai é aquela que determina todas as suas atitudes e ações.
Para Jesus é uma “necessidade” realizar na história concreta de sua vida o desígnio salvífico do Pai. Ela tem uma prioridade absoluta. Sobrepõe-se a todos os outros deveres, inclusive ao dever sagrado da piedade para com os pais. Porque não se pertence a si mesmo, Jesus também não pertence a seus pais terrestres. Ele – sua pessoa, sua vida e sua missão – pertencem inteiramente ao Pai.
Estas primeiras palavras de Jesus nos revelam onde está o centro de sua identidade e de sua missão: na escuta atenta e na comunhão com o Pai.
Jesus voltará a Jerusalém outras vezes; aí vai morrer e ressuscitar, porque Jerusalém é o sinal da vida e da morte, das lágrimas e da beleza, do sangue e da luz. Em Jerusalém, Jesus encontrará alegria e dor, morte e vida, acolhimento e rejeição. Jerusalém é a cidade da história humana e da história salvífica: lá está a “casa” do templo, a “casa” do Senhor, e a “casa” da dinastia de Davi, da qual descende o Cristo. Na “perda e encontro” de Jesus no Templo se condensa toda sua vida, que é buscar a Vontade do Pai.
De Jerusalém a Nazaré: dois espaços geográficos que integram a missão de Jesus. Nazaré, um lugar desconhecido e insignificante, mas reconhecido pelos profetas, protegido pela Antiga Aliança. Nazaré está no traçado do retorno-êxodo de Jesus do Egito. Enfim, de modo mais específico, Ele vai morar “numa cidade chamada Nazaré”. Nazaré é o sinal da epifania de Deus na rotina do dia-a-dia, é o sinal da palavra divina escondida nas vestes humildes da vida simples; é a escuta atenta ao pai que fala na simplicidade dos atos e das pequenas coisas, próprios de um ambiente familiar.
Jesus nos convida a entrar em sua casa para aprender d’Ele e com Ele os valores do Evangelho. É difícil compreender a “normalidade” da vida de Jesus Cristo; parece até que o Reino não tem exigências sobre a sua Vida. Identificando-se com a vida de todo mundo mostrava que a salvação não consistia em coisas extraordinárias e em gestos fantásticos, mas na “adoração do Pai em espírito e verdade”.
Jesus gasta praticamente toda sua Vida nesta humilde condição; passou desapercebido como Messias. O Reino se revela no pequeno, no anônimo e não no espetacular, no grandioso. Ele está misteriosamente se realizando entre nós.
Podemos dizer que esta página é, em certo sentido, a apologética do cotidiano, das horas, dos meses, dos anos escondidos, da vida monótona, provinciana, não-escrita, de Jesus. Para o plano de Deus é importante inclusive quem vive em Nazaré, de onde não pode vir nada de bom ou que seja digno de ficar registrado nos anais da história.
Essa atenção à simplicidade do cotidiano, à natureza da Galiléia, à mensagem que Deus esconde nas pessoas, nas coisas, nas horas, na natureza... é uma constante na pregação de Jesus. Tanto em Nazaré quanto na vida pública, Jesus nos comunica uma profunda união com o Pai. Jesus recorre em seu íntimo ao Pai, numa oração confiante e de entrega. Jesus sente quando o Pai o chama a mudar o estilo de vida escondido. Ele está atento aos “sinais dos tempos” e sabe discernir nesses sinais a Vontade do Pai que o chama a mudar de caminho, a deixar sua terra, a lançar-se numa aventura. Começa uma vida itinerante, missionária, despojado de tudo.
A vida de Nazaré coloca os critérios evangélicos na nossa cabeça e no nosso coração. A vida de Nazaré chega à nossa vida em muitos momentos (serviços ocultos, doença, rotina...). Nazaré pode transformar-se em Jerusalém quando, quem a habita, deixa-se possuir pela totalidade do amor no coração. A “vida oculta” coloca em evidência nossas motivações e nossos valores mais profundos.
É a importância do não importante. O importante é ser significativo e não importante! Jesus nos ensina, em Nazaré, o valor das coisas corriqueiras, quando são feitas com dedicação e carinho. É uma teologia do trabalho! O fazer, seja qual for, segundo suas motivações, é redentor!
Não são as coisas que nos fazem importantes, mas nós que fazemos qualquer coisa ser importante! É o sentido que damos à nossa vida e à nossa ação que fazem com que estas sejam significativas ou não.
Somos nós que damos significado às coisas e não o contrário!
Quando são “as coisas importantes” que nos fazem importante, e se “essas coisas”, um dia desaparecem, parece como se a própria vida perdesse seu sentido. Na escola da vida, Jesus também foi aprendiz.
Aprender é consequência básica da dinâmica da Encarnação. Lucas o confirma:
“Jesus crescia em sabedoria e em graça, diante de Deus e diante dos homens” (Lc. 2,40.50).
Portanto, Jesus viveu a vida como um processo lento e progressivo, a partir da própria condição humana no meio dos seus, no meio do povo e em vista do Reino de Deus, graças a uma criatividade transformadora.
Texto bíblico: Lc. 2,41-52
Na oração: viva em sua família a grandeza de ser plenamente humano; descubra o significado profundo da vida cotidiana mais simples: trabalhos, relações, família... O ambiente familiar, quando espaço humanizador, integra a vida cotidiana de Nazaré com os desafios de Jerusalém (família que se alarga, sai de si, se compromete, abre-se a causas humanas...)
Na vida de todos nós há momentos em que Deus intervém, tirando-nos de Nazaré para a vida pública (Jerusalém). Ainda que o itinerário de Nazaré pareça pobre, se o percorremos com fidelidade e amor, ele se insere no projeto de Deus, fica iluminado e nos impulsiona a ter amplos horizontes. Para atravessar a Nazaré cotidiana é preciso aprender a dimensão perfeita do amor, que é doação silenciosa, é oblação alegre e livre.
* como é sua família? Vive comprometida buscando uma sociedade melhor e mais humana, ou fechada exclusivamente em seus próprios interesses? Educa para a solidariedade, a paz, a sensibilidade para com os necessitados... ou só ensina a viver para o consumo insaciável, o máximo lucro e o esquecimento dos outros?
* No seu ambiente familiar cuida-se da fé, dos valores do Evangelho... ou se favorece apenas um estilo de vida superficial, sem metas nem ideais...? É espaço instigante, de crescimento, aberto ao novo e diferente... ou ambiente atrofiante, sufocante...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
27.12.2012
“...encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc. 2,12)
O palácio e a manjedoura, o imperador e a criança, Augusto e Cristo, Herodes e os pastores... esses são os pontos mais distantes entre si, os pólos extremos de toda a história humana. Esse abismo nos ajuda a compreender o modo de agir de Deus. Ele não irrompe na história pelo lado mais alto e forte; prefere revelar sua presença pelo lado mais baixo e fraco. Para encontrar Deus temos de empreender o caminho de “descida”, dirigir o olhar e o coração para o mundo da exclusão.
Não é a grandeza e o poder, segundo os critérios humanos, que são decisivos para Deus.Lá em “cima” não há lugar para a Maria pobre, nem para o José sem recursos, nem para a criança sem títulos. O Filho de Deus apareceu nos grotões da humanidade, justamente lá onde ferve a luta pela sobrevivência, onde se acotovelam os esquecidos e os náufragos da vida... Deus se faz “clandestino” entre os clandestinos desta terra de exclusão.
Com a ação ousada e surpreendente de Deus, a periferia se põe em efervescência, os pobres e excluídos se agitam, uma alegria contagia a todos. Uma novidade foi introduzida por Deus na história da humanidade: chegou a vez do protagonismo dos últimos, dos pequenos, da “massa sobrante”...; quem estava “fora” ocupa o centro das atenções; o olhar de todos se dirige para a periferia da história, onde Deus se faz “margem”. Na Encarnação e Nascimento de Jesus esvaziou-se o céu. Deus abandonou o trono altíssimo, exilou-se nas entranhas profundas da humanidade e assumiu tudo o que é radicalmente humano.
Esta é a maneira que Deus escolheu para aproximar-se de nós, para percorrer os estreitos e poeirentos caminhos de nossa existência. Sua “entrada” no mundo não foi com estardalhaço e triunfo estrepitoso; deu-se à margem da história oficial, fora da cidade, numa noite silenciosa de Belém, no coração da terra, numa gruta de animais. Quase ninguém o percebeu. Outras “preocupações” dominavam o coração dos homens, a porta foi fechada... não restando a Ele outro caminho senão o da “clandestinidade”.
Vivemos imersos num contexto sociocultural onde o sentido e a força do mistério do Natal permanece obscurecido. Em primeiro lugar, a proximidade do fim de ano carrega o peso do cansaço, do ativismo, das correrias e ansiedades... que acabam impedindo uma preparação mais intensa para acolher a Novidade natalina. Em segundo lugar, somos continuamente impactados por um modo de festejar o Natal que nos distancia da Gruta de Belém. Trivialidades, consumismo, superficialidade, vazio, vulgaridade... são traços que acompanham nossa cultura e que dificultam enormemente a vivência profunda do Natal.
Tais situações nos desumanizam e nos afastam do essencial. O “deficit” de humanismo nos inquieta e nos escandaliza. Corremos o risco de viver nossa própria humanidade em “banda estreita”, ou seja, sem sonhos, sem projetos, sem uma causa de envergadura sobre a qual investir as melhores energias.
Seduzido pelos estímulos ambientais, envolvido por apelos vindos de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes... o ser humano se esvazia, “torna-se líquido”, perde a interioridade, afasta-se do horizonte de sentido e... se desumaniza. Longe de uma humanidade dinâmica, operante, ousada... o que a pessoa deixa transparecer é uma humanidade neutra, apática, estagnada.
Como recuperar, na festa do Natal, a densidade humana perdida?
Nossa fé nos possibilita afirmar que em Jesus “Deus se humanizou” e que só podemos encontrar Deus na “humanidade de supera nossa inumanidade”. Encontramos Deus humanizando-nos, fazendo-nos mais humanos: potenciando nossa bondade, dignidade, compaixão...; dinamizando nossas possibilidades criadoras, espirituais...; ampliando nossas reservas de riquezas interiores...
No Nascimento de Jesus, Deus vem nos revelar que o mais nobre que há em nós é a nossa própria humanidade. Este é o mistério escondido na Gruta e que poucos ficam encantados e assombrados diante dele; esta é a enorme riqueza que mereceria ser redescoberta e que permanece oculta aos olhos daqueles que são incapazes de uma atitude contemplativa.
A celebração do Natal deveria nos ajudar a criar em nossos ambientes “oásis de humanidade”. Entende-se “humanidade” como capacidade de ser oblativo, de ser-para-os-outros, de romper a tirania do egoísmo e fazer do amor a pauta do agir. Do coração das pessoas humanizadas brotam gestos de misericórdia, de compaixão de solidariedade.
A espiritualidade natalina desperta o “ser humano” que todos temos dentro e nos possibilita a aventura apaixonante de viver a vida humanamente e vivê-la com paixão. Ela nos desafia a assumir o potencial humano criativo que está latente em nosso interior.
Quando recuperamos a “banda larga” de nossa humanidade, nos afirmamos como seres originais e criativos, capazes de “re-tecer vínculos” com Deus, com os outros, com a natureza... Somente a experiência do Natal interiorizada nos impulsiona construir “comunidades de solidariedade”, ou seja, tecidos sociais com um sentido mais humanizante que o círculo fechado de produção-consumo.
No Nascimento de Jesus aconteceu algo desconcertante. João expressa isso em termos muito claros: “a Palavra de Deus se fez carne”. Deus não ficou em silêncio para sempre; Ele quis se comunicar a nós, não através de revelações ou aparições, mas encarnando-se na humanidade de Jesus. Não se “revestiu” de carne, não tomou a “aparência” de um ser humano. Deus se fez realmente carne fraca, frágil e vulnerável como a nossa. Em Jesus, Deus se humanizou.
A partir da Encarnação e Nascimento de Jesus já não cremos num Deus isolado e inacessível, fechado em seu Mistério impenetrável, mas podemos nos encontrar com Ele em um ser humano como nós. Para nos relacionar com ele não precisamos sair de nosso mundo, não precisamos buscá-lo fora de nossa vida, pois O encontramos feito carne em Jesus. Isto nos faz viver a relação com Ele com uma profundidade única e inconfundível. Jesus é para nós o rosto humano de Deus.
Segundo Jacob Boehme, místico medieval, Deus é uma Criança que brinca. É nessa atmosfera “infantil” que Deus se aproximou de nós. Não veio como um rei poderoso, nem como um sumo-sacerdote ou um grande filósofo. Ele mergulhou na nossa fragilidade humana fazendo-se criança pobre, que nasce na periferia, no meio de animais, envolvido em faixas, deitado numa manjedoura... para que ninguém se sentisse distante d’Ele, para que todos pudessem experimentar o sentimento de ternura que uma criança desperta e sobre quem nos dobramos, maravilhados.
Texto bíblico: Lc. 2,1-14
Na oração: Humanizando-se, Jesus desatou todas as possibilidades humanas presentes em cada pessoa.
Contemplar o rosto do Menino clandestino é perigoso: subverte nossas opções, nosso modo de viver, nossos valores... e nos compromete com o sonho de Deus na noite de Natal: “Paz na terra aos homens que Ele ama” (Lc. 2,14)
Que a celebração do Natal faça emergir o que há de mais “humano” em cada um de nós.
Um “humano Natal” a todos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
19.12.2012
“Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?” (Lc. 1,43)
4º domingo advento
Quando Deus entra e atua na história das pessoas, move-as para irem “apressadamente” ao encontro dos outros, para serví-los nas suas necessidades, para comunicar a alegria pela salvação recebida, e para alegrar-se com os outros pelas graças que eles receberam.
Aquela que foi “agraciada” por Deus não fica só contemplando as maravilhas que Deus realizou nela, mas sai para proclamá-las. Quem tem consigo o Salvador não o pode guardar só para si. A expressão “apressadamente” quer sublinhar a atitude interior de fé e de disponibilidade de Maria. Sua “pressa” está dinamizada pelo fervor interior, pela alegria e, sobretudo pelo desejo de servir.
A Visitação realiza o encontro entre a mãe do precursor do Messias e a mãe do Messias, e, no entanto, tudo se desenvolve numa casa normal, entre gente simples, na árida região montanhosa da Judéia. A atmosfera é de alegria. A Palavra de Deus adentra a intimidade e o calor familiar de uma casa, e anuncia um evento glorioso e universal. As palavras de Isabel são uma proclamação, a celebração e reconhecimento da ação de Deus nos pobres e nos humildes. O Pai, através do instrumento frágil de uma mulher, ignorada pela sociedade oriental, apresenta ao mundo a sua Salvação.
Contra uma concepção cada vez mais “econômica” do mundo, contra o triunfo do possuir, do ter, da escravidão das coisas, a Visitação exalta a alegria do partilhar, do acolher, do admirar, da felicidade da gratuidade, da contemplação, da doação. O ser humano, e todo o seu ser, transforma-se então em louvor de Deus; é o canto das escolhas caprichosas de Deus, que tem um “fraco” pelos pobres, por todos os infelizes e os oprimidos; poder e riqueza não gozam de nenhum prestígio aos seus olhos.
O grito de alegria de Isabel expressa, com o pulo de alegria de João, a chegada da Salvação que entra nas nossas casas através de Maria. É um convite a todos para que se unam ao seu louvor e à sua alegria.
É da nossa condição humana buscar um espaço, um lugar hospitaleiro e acolhedor, o lugar onde nos situamos no mundo e onde podemos ser encontrados. São muitos os lugares por onde transitamos, mas o mais importante deles é a nossa casa. A casa é mais do que uma realidade física, feita de quatro paredes, portas, janelas e telhados.
Casa é uma experiência existencial primitiva, ligada ao que há de mais precioso na vida humana, que é a relação afetiva entre aqueles que a habitam e com aqueles que nela são acolhidos. “É preciso que você saiba acolher o outro. Existe uma crise de moradia muito mais grave que a falta de casas: é a escassez de pessoas interiormente disponíveis para seus irmãos.”
No interior de nosso país ainda se conserva o bom hábito de “fazer visitas” e a casa torna-se espaço humano de partilha, convivência, festa, ajuda mútua... Por outro lado, sobretudo nos grandes centros, as casas estão cercadas por uma parafernália eletrônica de segurança, com entrada rigorosamente controlada, alarmes contra invasores..., impedindo o acesso até dos mais próximos (parentes, amigos...). Além disso, vivemos na época dos celulares, do facebook, do twiter, do myspace...; com os amigos a gente troca mensagens eletrônicas em vez de visitas; com os desconhecidos, contato virtual descompromissado.
Além disso, há uma doença que afeta praticamente todas as casas: nelas, há muito mais espelhos que nos isolam do que janelas que nos universalizam. A contemplação narcisista de nosso rosto atrofia o horizonte de nossa vida; o espelho é incapaz de ampliar nosso mundo afetivo e relacional, não facilita a acolhida, o encontro... O centro do espelho somos nós mesmos.
As janelas abertas, por sua vez, permitem ampliar nosso horizonte. Através delas purifica-se o ar denso, pouco respirável que geramos quando nos fechados em nós mesmos. Elas nos abrem à comunhão com a natureza, com os outros, com a realidade que nos cerca. Elas nos humanizam, pois servem para nos revelar quem somos para os outros e, assim, poder passar da janela à porta que se abre para que eles entrem em nossa vida. Outros rostos precisamos descobrir: concretamente, rostos feridos, excluídos, carentes de proximidade e abraço.
Seja uma CASA sempre aberta: “entrada franca”.
- Nada de “cachorros” que atemorizem o visitante: seu orgulho, seu egoísmo, sua inveja, sua ironia, sua rudeza, seu preconceito. Que o outro não se retire, suspirando: “Não tive coragem... tive medo que ele me mandasse embora, que risse de mim, que não me compreendesse...”
- Nada de longas esperas que desanimam: esteja sempre atento, nem que seja para um cumprimento, um sorriso, um aperto de mãos, caso você não tenha tempo para uma conversa.
Uns instantes de intensa atenção basta para acolher o outro.
- Nada de móveis que impeçam a circulação; mantenha sua casa disponível. Não imponha seus gostos, suas ideias, seus pontos de vista. Nada de retribuições que custam caro: se você oferece alguma coisa, faça-o gratuitamente e nada espere em troca. Nada de contrato oneroso: “entra-se” e “sai-se” à vontade, com naturalidade, sem formalidades...” (Michel Quoist).
- Somos casa: lugar de encontro. Ele vem. Sua presença causa mudança;
casa, lugar de lava-pés, do mandamento novo, da amizade, da oração...;
casa, lugar de discipulado – olhar, escutar e seguir;
casa, lugar de unção-acolhida, serviço e adoração;
casa, lugar do Nascimento, da experiência de Ressurreição, de Pentecostes;
casa, minha realidade pessoal e lugar de encontro com o outro.
Deixe ressoar a voz do Senhor: “Eu quero, em tua casa, celebrar a Minha Ceia!”.
Texto bíblico: Lc. 1,39-45
Preparar o coração:
Deus não é distância e solidão. Ele é comunicação, presença, libertação.
Ele está perto. Sua proximidade nos causa espanto: Deus possibilita cada um “entrar” em sua casa e captar em profundidade a sua realidade, perceber a raiz do seu ideal de vida (cada vez mais atraente-convincente-exigente), como também suas contradições, ilusões, medos...
Neste “mergulho” interno, cada um pode construir uma espécie de mapa da própria casa, com as regiões fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e ainda misteriosas...
* “Eis que estou à porta e bato”. Deus é infinitamente vinda, iniciativa...
Peregrino em nossa direção. Ele bate, querendo entrar e ficar... mas aguarda.
* Aguarda nossa percepção, nosso consentimento. Suas batidas podem nos acordar do sono do egoísmo e da falta de compromisso.
Toque que convida à acolhida e à vigilância ativa, à coragem e à confiança.
O toque divino desperta nosso coração para o novo e nosso “querer” encontra um novo itinerário:
“Mestre, onde queres morar?”
- “Vinde e vêde!” Quando o Senhor entra em nossa casa, tudo se modifica...
Na oração:
- Como me sinto em minha casa? Preciso abri-la, arejá-la? Modificá-la? Iluminá-la? É acolhedora? Humanizadora?... Tem mais espelhos ou janelas?
- como está minha casa interior? Preparada para acolher o Senhor?
- há um “lugar sagrado” para Ele? há espaço para os outros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
17.12.2012
“As multidões perguntavam a João: ‘Quê devemos fazer?’” (Lc. 3,10)
3º Dom. Advento
“O povo estava na expectativa...”: uma bonita maneira de indicar uma atitude positiva de espera diante de João Batista que, sob o impulso da Palavra brotada no deserto, tocou o coração de muitas pessoas; seu chamado à conversão e seu apelo a uma vida mais fiel a Deus despertou em muitas delas uma pergunta concreta: “Quê devemos fazer?”. Com algumas pinceladas João reforça a necessidade de mudar a maneira de pensar e de agir; isto é, desatar o que já está presente em nosso coração: o desejo de uma vida mais justa, digna e fraterna.
João não fala do cumprimento minucioso das normas legais ou dos ritos religiosos. Em nenhum caso faz alusão à religião; o que ele pede a todos é melhorar a convivência humana. De fato, uma religiosidade que não se alarga em direção aos outros não é a religiosidade que Deus deseja. Ou seja, não se trata propriamente de fazer coisas nem de assumir deveres, mas ser de outra maneira, viver de forma mais humana; trata-se de que, a partir do centro de cada pessoa, aquilo que é o verdadeiramente humano, flua humanidade em todas as direções. Que todo o ser se mova na perspectiva do amor oblativo.
No entanto, corremos o risco de transformar o “fazer” em simples ativismo, ou seja, uma ação desprovida de sentido e de direção. De fato, vivemos mergulhados numa cultura de resultados, distraídos e perdidos na variedade de luzes, cores, sensações fugazes, vivências superficiais... A existência inteira faz-se maquinal e rotineira.
O cotidiano torna-se convencional e, não raro, carregado de desencanto, pesado, estressante... Corremos o risco de sermos apenas imitadores ou repetidores, pois tememos nos perder na busca do novo; as respostas são confirmadas e as perguntas silenciadas.
Vivemos a “compulsão da utilidade”, preocupando-nos unicamente com o “fazer habitual” que não tem maior impacto na realidade social-eclesial, não muda nada... De fato, muitas vezes vivemos, no cotidiano da vida, o drama da desintegração: atividades soltas, desprovidas de inspiração e criatividade, num ritmo burocrático e sem o exercício da avaliação das mesmas. Falta uma referência e um horizonte que unifique tudo, que possibilite reorientar e canalizar nossas potencialidades, impulsos, inspirações, que desperte nossa paixão e dê novo sentido à nossa missão. Com isso, nossa missão se transforma em pura “fazeção”, ou seja, fazer por fazer, fazer para afirmar-se, fazer para brilhar, fazer para produzir, fazer para se impor...
Para integrar bem os diversos dinamismos da vida, é decisivo centrar no horizonte que inspira nossa missão e nos motiva a fazer o que fazemos e como fazemos. E o horizonte é “ajudar”. “Ajudar” é, para a espiritualidade do Advento, o horizonte e a chave de integração de nossa vida.
“Ajudar”, como atitude pessoal e comunitária, é o equivalente evangélico “servir”. Um “ajudar” (servir) que brota da experiência de ser “ajudado” (servido) por um Deus servidor.
No “ajudar” dão-se as mãos o amor a Deus e o amor à pessoa humana, a experiência interior e a ação cotidiana, a ação e a contemplação; nele se expressa a profundidade e o enraizamento da pessoa nas exigências cotidianas da vida; nele convergem a busca de Deus e o compromisso com o mundo.
“Ajudar” nos remete a uma espiritualidade ativa, mas que não consiste meramente em “fazer”, nem se acomoda com qualquer forma de fazer; ele nos permite olhar o global e comprometer-nos com o particular. “Ajudar” pede um coração magnânimo, ou seja, grandeza de sonhos, de ânimo e de desejo; mas, ao mesmo tempo ele nos convida à humildade, ou seja, abrir-nos às necessidades do outro, descer ao nível do outro, renunciando nossos próprios critérios, modos fechados de viver...
“Ajudar” é oposto do ativismo, que é um fazer “insensato”, sem sentido e sem direção. “Ajudar” é fazer com inspiração, com horizonte de sentido; é perguntar-nos continuamente: “por que fazemos isso? para quem fazemos?... “Em quê posso ajudar?” (D. Luciano M. de Almeida)
“Ajudar” nos permite “trabalhar descansadamente”, encontrando prazer e humor naquilo que fazemos, porque iluminado por um horizonte que nos atrai.
Para “ajudar” de verdade, é necessário em primeiro lugar, que nosso fazer esteja atravessado de visão (de Deus, de ser humano de mundo), de escuta, de atenção, de compaixão e contemplação da realidade na qual estamos inseridos, e das pessoas a quem somos chamados a ser presença solidária; que não seja, simplesmente, a aplicação de um plano ou esquema pré-estabelecido, pensado a partir de nós mesmos.
“Ajudar” não vai na linha do impor, senão do propor. Trata-se, isso sim, de propor com qualidade, com firmeza, com proximidade, com compromisso pessoal, tendo cuidado especial na arte do acompanhamento. Isso requer presença gratuita, desinteressada, centrada no bem da outra pessoa, sem criar dependências, mas fazendo o outro crescer em liberdade.
“Ajudar” implica possibilitar ao outro ser protagonista de seu processo, devolver ao outro a autoria, a autonomia... No “fazer” o centro somos nós, no “ajudar” é o outro; no “fazer” medimos a quantidade, no “ajudar”, a qualidade de nossa ação. No “ajudar” há parceria (mão dupla): na medida em que ajudamos, somos ajudados; na ajuda há um enriquecimento e crescimento mútuo.
“Ajudar” não é substituir os outros naquilo que eles podem e tem de fazer, ou dizendo o que tem de ser feito, mas colocá-los em condição de que eles mesmos se experimentem ajudados, descubram por isso o Deus que ajuda a todos e sintam o impulso para ajudar a todos como ideal de suas vidas.
A prioridade da atenção aos outros nos obriga a pensar, a inovar, a propor de uma outra forma, a mudar... Só assim, quando nosso fazer é dinâmico, ele se transforma em “ajudar”. O carinho e a sensibilidade para com os outros, o desejo profundo e sincero de “ajudar” é o que vai nos mobilizar. Se a lógica profunda do nosso fazer é “ajudar, devemos fazer mais por aqueles que mais ajuda necessitam, por aqueles mais desvalidos, que são mais fracos, que estão mais desprotegidos...
Além disso, “ajudar” tem maior visibilidade quando a missão é vivida em grupo, quando a colaboração com outros e a partilha em comum tornam-se um “modo de proceder”, esvaziando-nos de toda pretensão de sermos proprietários para sermos simples servidores.
“Ajudar” os outros, inspirados e animados pelo Espírito de Jesus, é o que torna “espiritual” nossos atos, nossos pensamentos e orações, nossos trabalhos, nossa vida inteira. “Ajudar” faz “espiritual” nossa vida, toda nossa vida. Quem vive o clima do Advento não é prisioneiro da “cotidianidade”; toda a nossa vida se transforma na história de uma espera e de um encontro surpreendente. Nessa espera vislumbramos detalhes decisivos: a vivência da ternura, a reinvenção da vida em cada amanhecer, a gratuidade amorosa, a alegria descontrolada, o despertar de sonhos... Espera-se Jesus vivendo os valores que Ele encarnou: o cuidado dos pobres, o coração dilatado no serviço, o cuidado terapêutico, a ajuda gratuita...
Nessa atitude de espera o cristão pode dar sabor à sua vida: nos pequenos gestos ela floresce e aponta para um sentido novo.
Texto bíblico: Lc. 3,10-18
Na oração: sua missão como seguidor(a) de Cristo: simples ativismo burocrático ou espaço de ajuda criativa?
* Como cristãos, como podemos responder frente ao chamado tão simples e tão humano de João Batista?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
10.12.2012
“Levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima” (Lc. 21,28)
1º Dom. Advento
Com a liturgia deste domingo inicia-se o “tempo do Advento” e um novo “ano litúrgico” (Ano C – centrado no evangelista Lucas). Mais uma vez nos disponibilizamos, através da oração e da vivência litúrgica, a viver mais intensamente o Tempo do Advento e alargar nossas vidas para nele caber o mistério do Natal.
Advento nos revela a presença da eternidade no coração do tempo. O Eterno continua vindo, pelos caminhos mais imprevisíveis, iluminando a dura rotina e a sequência do cotidiano. Advento é tempo de espera, de preparação e de chegada. Tempo forte carregado de sentido, que nos faz ter acesso àquilo que é mais humano em nós: o sentido da esperança, a travessia, o encontro com o novo... tempo que nos arranca de nossas rotinas e modos fechados de viver.
A Vinda de Cristo é o grande evento que agita os corações, sacode as inteligências, inquieta as pessoas, move as estruturas... Toda a nossa vida se transforma na história de uma espera e de um encontro surpreendente. Por isso, o Advento deveria ser um tempo para voltar-nos para o interior em meio à agitação, e olhar para dentro de nós mesmos. Aí, no nosso interior, há tanto de eterno. A eternidade dialoga com a gente, fala por dentro. Caminhamos para o “Senhor que vem” à medida que mais nos adentramos ao fundo de nós mesmos e da realidade. Advento nos convida a “contaminar-nos” da realidade; e isso nos humaniza.
Somos “seres de travessia”. O Advento nos convida a não perder de vista nosso horizonte, nossos objetivos, nosso propósito de investir a vida, gratuitamente, naquilo que vale a pena. Cada momento é o “hoje” de Deus; por isso o “fim” está sempre chegando. O Esperado traz uma novidade que envolve e que se revela em cada rosto humano e em cada fragmento de tempo, deste tempo colocado em nossas mãos. Contemplando o “hoje” de Deus, o coração se alarga até o assombro, os braços se abrem para a acolhida, os pés se movem para o encontro, os olhos se aquecem para o reconhecimento.
A liturgia nos propõe, neste começo do Advento, um texto que fala dos “últimos dias”, como um convite a estarmos atentos, numa vigilância esperançosa, para acolher “Aquele que vem”. Este relato pertence ao chamado “gênero apocalíptico” que, para muitos, à primeira vista, pode significar o “fim do mundo” acompanhado de catástrofes que desestabilizam tudo (o céu, a terra e o mar), provocando medo e angústia.
No entanto, a palavra “apocalipse” (literalmente “levantar o véu”) significa “revelação”. Os textos apocalípticos pretendem revelar o sentido profundo (oculto) na história, pessoal e coletiva, e indicar que é Deus quem, a todo instante, dirige os destinos da mesma. Tais textos são uma mensagem de esperança. Lido e rezado em chave libertadora, este texto nos fala do surgimento de um “mundo novo” que nos é dado de presente, depois de sacudir e derrubar o velho mundo.
O “discurso apocalíptico” é uma mensagem de sabedoria que nos desperta e nos faz sair de nossos medos, ansiedades, embotamentos... e experimentar a Plenitude e a Libertação que o Presente contém e é. O decisivo é que Cristo está vindo sempre. Se o encontro com Ele não acontece é porque estamos adormecidos ou com a nossa atenção centrada em outras coisas (“gula, embriaguez, preocupações da vida” – v. 34), apegados ao caduco e ao transitório que não plenifica.
Diante do surgimento de um novo mundo requer-se “estar despertos” e “levantar a cabeça”; e a pessoa “desperta” é, justamente, aquela que vê a novidade em tudo; quem tem a cabeça erguida vislumbra novos horizontes. Ao contrário, quem permanece adormecido, move-se no terreno da rotina, com o coração atrofiado e a mente embotada pelos vícios e preocupações vazias. Adormecidos, debatemo-nos entre o passado que se foi e o futuro que nunca chega, escravos da ansiedade que nos faz viver fora do presente.
O Advento vem nos dizer que não há outra coisa a fazer senão viver intensamente o momento presente. A plenitude está na consciência do instante presente, onde o “Filho do Homem” se revela. No presente pleno, tudo tem sabor de novidade, a percepção da própria identidade se amplia sem limites, a consciência da comunhão com tudo e com todos se alarga...
Nesta perspectiva, o “discurso apocalíptico” nos alerta que somos destinatários de um chamado para viver despertos em meio às dificuldades e incertezas de nossos tempos. Muitas vezes, como “anciãos encurvados” e com a “cabeça baixa” nos movemos sob o peso do legalismo, das tradições passadas, dos fracassos, marcados pelo desalento e pela desesperança.
Há maneiras de viver que impedem a muitos de caminhar com a cabeça erguida confiando nessa libertação definitiva: acostumados a viver com um coração insensível e endurecido, buscam preencher a vida de bem-estar e falsas seguranças, de costas ao Pai do Céu e aos seus filhos que sofrem na terra. Este estilo de vida os fará cada vez menos humanos.
Advento é o momento de escutar o chamado que Jesus nos faz a todos: “levantai-vos”, animai-vos uns aos outros”, “erguei a cabeça” com confiança. Deus é Salvação e já está em nós. Basta despertar-nos e descobri-Lo. Esta descoberta nos descentra de nós mesmos, nos projeta para o outros, para o infinito e nos identifica com tudo e com todos.
O momento do encontro com “Aquele que vem” nos introduz na soleira de um futuro novo e carregado de esperança, aquela esperança que dá sentido às nossas atividades, liberta o coração da preocupação, expulsa toda ansiedade e impulsiona a buscar o Reino. O fundamento da segurança e da serenidade reside na consciência de estar nas mãos providentes de Deus.
O fiel discípulo de Jesus, descobrindo-se amado e protegido pela ternura providente, se sente sempre a caminho, isto é, pronto a acolher cada fragmento de luz e de vida, que fala da presença e da passagem de Deus. O presente, tecido de partilha, solidariedade, misericórdia, mansidão, reveste o futuro de luz.
A verdadeira segurança cresce no coração e na confiança de sermos protegidos por um Deus que sabe o que precisamos e nos aguarda. É esta a relação fundamental, fecunda e criativa, que possibilita o “êxodo” de nós mesmos e a acolhida do “advento” do Outro e dos outros.
Texto bíblico: Lc. 21,25-28.34-36
Na oração: “Advento”: o Senhor vem... em sua direção! Ou melhor, já chegou! Basta despertar-se para descobri-Lo e descobrir-se n’Ele. Tome consciência do momento presente, deste único instante, aqui e agora, carregado de Presença e permaneça nele. Deus é Salvação que se dá a todos em cada instante.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
26.11.2012
“Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade” (Jo. 18,37)
Festa de Cristo Rei
Jesus, rei atípico. Qualquer conotação que o título tenha com o poder, deturpa a mensagem evangélica. Uma coroa de ouro na cabeça e um cetro de brilhantes nas mãos é uma ofensa ao mesmo Jesus.
Jesus não se apóia na força das armas, nem se move no interior do sistema que se sustenta na injustiça e na mentira. Tem um fundamento completamente diferente. Sua realeza provém do amor de Deus ao mundo. Ele reina entregando sua vida. Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos. Jesus reina perdoando, amando, a partir de uma situação de humilhação e impotência. João nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até à morte. Um rei crucificado é uma contradição. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres, de liberdade e justiça, de verdade, de solidariedade e de misericórdia.
Jesus é rei desta forma e não da forma triunfalista como querem os cristãos “gloriosos”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia do excluídos e não dos poderosos do povo. Um rei que lava os pés dos seus, um rei despojado de poder, de riqueza e que não pode defender-se.
Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Não tem exército, nem armas. Até os seus o abandonaram. Mísero rei!
O título de Cristo Rei foi proclamado pelo Papa Pio XI (1925) quando a Igreja estava perdendo seu poder e seu prestígio, acossada pela modernidade. Como pura imitação dos reis deste mundo, o triunfa-lismo religioso corre o risco de utilizar este título para manipular idéias, dominar consciências, alimentar sentimentos de culpa, impor o servilismo e o medo...
Frente a isto, o evangelho de hoje revela-se surpreendente e até escandaloso, porque nos apresenta esse título numa situação de humilhação e impotência extrema: na Paixão, com insultos, escárnios e zombarias dos chefes judeus, de Pilatos, dos soldados romanos...
Diante dos donos do poder e das autoridades religiosas que se julgam em posse da verdade e que tem um
Deus feito à medida de seus interesses, Jesus afirma que “veio para dar testemunho da verdade”. Jesus é o mártir da Verdade. Quando diz que “veio para dar testemunho da verdade” Ele não está falando de morrer por uma doutrina teórica, nem se refere a verdades doutrinais ou a um conjunto de crenças; Ele está falando da verdade de Seu Ser e da verdade de todo ser humano.
Jesus é o Homem autêntico, a referência de ser humano, o ser humano verdade. Jesus é a última referência para todo aquele que queira deixar transparecer em sua vida a verdadeira qualidade humana. Jesus é verdadeiro porque revela o que é mais nobre em seu coração; não usa máscara, é pura transparência do rosto do Pai.
A Verdade é uma das grandes carências existenciais; ela aponta para o sentido da existência, expressa a grande e permanente busca do ser humano. Não se trata de uma necessidade periférica, mas uma dimensão que nos humaniza. Jesus, diante de Pilatos, se apresenta como resposta a esta busca.
“Conhecer a verdade” é aspiração humana inata. O ser humano tem sede de verdade. Vai buscá-la nas encostas do mundo e nos recôncavos de seu espírito. Descobrir a verdade é conquista alvissareira. Compensa atravessar vigílias e trilhar veredas para chegar à verdade. Uma das angústias humanas é não alcançar o manancial da verdade. Enquanto existir verdade encoberta, o ser humano vive inquieto.
A verdade clareia a vida. Sem a verdade, a existência é sombria. A verdade gera autenticidade. Onde falta a verdade, instala-se lacuna na existência. Quem não vive a verdade, está “carunchado” por dentro. Impregnar-se da verdade é humanizar-se.
O ser humano busca a verdade; antes que “ter” verdade, ele quer “ser verdade”, ele deseja existir na verdade. Jesus afirma: “eu sou a verdade”, e não “eu tenho a verdade” (poderia fechá-lo diante da verdade do outro, caindo no fundamentalismo). O importante não é ter a verdade, mas ser verdadeiro. A pessoa verdadeira pode entrar em ressonância e em sintonia com a verdade do outro.
Ser “testemunho da verdade” requer “viver na verdade”; e viver na verdade inclui o reconhecimento e a aceitação da própria verdade (com suas luzes e sombras) e da verdade dos outros. Quando alguém transita por este caminho, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar na verdade” (S. Teresa).
Ser seguidor de Jesus é fixar o olhar n’Ele, pois Ele é o centro do nosso caminho; ao caminhar com Ele, vamos nos revelando e a partir d’Ele vamos descobrindo nosso ser verdadeiro (que nos abre para acolher a verdade presente em cada ser humano – verdade que vai além das verdades religiosas, políticas, ideológicas...). É significativo que os antigos gregos entenderam a verdade como “a-létheia” (“sem véu”), ou seja, quando emerge a verdade de nós mesmos.
Quem se descobre verdadeiro e sem máscara, vive profundamente, alarga sua vida a serviço dos sem-vida.
Esta é a via da humanização; e quanto mais nos humanizamos, mais nos divinizamos. A verdade não é um dogma e sim um caminho. Quanto mais verdades absolutas, mais estreito vai ficando o nosso mundo. A humanidade busca a verdade, mas também pode asfixiá-la. Costuma-se calar a verdade que incomoda. Também existe sempre a tendência de querer impor, pela força, pelo medo, aquilo que acreditamos ser verdadeiro. “A verdade também pode ter suas vítimas”.
Mas a verdade é indobrável. Mesmo ensanguentada, não capitula. Nunca podemos abrir mão de uma busca por uma verdade que subverta. Importa “inventar” a verdade, ir à morada da verdade, encontrar a verdade, “descobrir o que está oculto”, “fazer surgir o novo”. Acatar a verdade é sinal de maturidade. A verdade é limpa. É inocente. A verdade retira o mundo da escuridão. Quando a verdade habita a consciência, o ser humano ilumina-se. Onde há verdade há humanidade transparente. Há rosto fascinante”. (cf. Juvenal Arduini).
Verdade não é apenas um princípio abstrato. Verdade é a realidade existente, o fato concreto, ela mostra o que existe e o que não existe. A verdade salienta a dignidade da pessoa, reivindica liberdade e igualdade, sustenta o significado essencial do ser humano preserva os valores consistentes. A verdade descobre o que está recoberto, des-vela o que está velado, des-oculta o que está escondido, des-lumbra o que está ensombreado, des-mascara o que está camuflado, des-emudece o que está calado, des-cativa o que está algemado.
A festa de “Cristo Rei” é uma boa oportunidade para o encontro com a nossa verdade: n’Ele, todos somos “reis”, ou seja, todo aquele que se identifica com Ele é também rei. Reis servidores devemos ser todos.
Comprometemo-nos com o “Reinado de Deus”, porque como reis, estamos todos a serviço de todos.
Texto bíblico: Jo. 18,33-37
Na oração:
precisamos dar passos em direção a maiores níveis de verdade humana e evangélica em nossas vidas, nossas relações, nossas instituições...
* o que há de verdade e o que há de mentira em nosso seguimento de Jesus?
* onde há verdade que nos humaniza e onde há mentira que nos atrofia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
21.11.2012
“Há uma esperança para o teu futuro” (Jer. 31,17).
33º Dom.Tempo comum
Estamos no penúltimo domingo do “ano litúrgico B” e a liturgia, ao propor leituras que fazem referência “aos últimos tempos”, quer nos convidar à “vigilância”; de modo especial, o evangelho de hoje é tirado do “discurso escatológico” ou “pequeno apocalipse de Marcos”.
Trata-se de um anúncio esperançador e certo. A esperança é reforçada pela imagem da figueira que, carregando-se de brotos, anuncia a primavera. Esse é nosso destino: caminhamos para uma Primavera que não conhecerá ocaso. A certeza disso está enraizada na promessa de Jesus: “O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão”.
Na verdade, os discursos escatológicos e os anúncios apocalípticos, apesar de sua aparência, são sempre um chamado à esperança. Esperança que não é uma projeção para um futuro incerto e que serve para fugir do presente ou para poder “suportá-lo”. Por este motivo, não podemos entender a esperança como mera “expectativa” que nos afasta do presente, na promessa de algo que nos faça sentir melhor em outro tempo e em outro lugar.
A autêntica esperança, no entanto, não só não nos afasta do presente, senão nos enraíza nele. Porque, realmente, só há uma esperança: aquela que corresponde ao desejo de viver intensamente o “Agora”. Essa é a única coisa que aspiramos: reconhecer-nos e viver na Plenitude do que é, no Presente pleno, na Presença que somos. Presente que se abre ao novo futuro. E para este “novo tempo” nos dirigimos quando nos permitimos viver no coração do Presente, quando nos deixamos encontrar por ele.
Em meio às sombras, perplexidades, contradições, provocações e promessas de vida, que constituem o atual momento histórico, queremos expressar a fé no futuro da nossa vida. Ainda que soframos ventos contrários e as nuvens se adensem no horizonte, sabemos e confessamos com o profeta, e pela graça do Espírito, que existe futuro.
Para ser fiel, é preciso seguir o Espírito, deixando-se surpreender pelos novos rumos que Ele aponta, seduzir pelos novos horizontes que Ele descortina, desafiar pelas novas provocações que Ele lança, a partir da realidade histórica e dos novos sinais dos tempos. Essa relação viva e dinâmica com o Espírito é fundamental para a vida cristã, em qualquer circunstância.
A esperança é algo constitutivo no ser humano. Para ele, viver é caminhar para um futuro. Sua vida é sempre busca de algo melhor. O ser humano “não só tem esperança, senão que vive na medida em que está aberto à esperança e é movido por ela” (H. Mottu). Por isso, quando numa sociedade se perde a esperança, a vitalidade atrofia, a marcha se paralisa e a vida mesma corre o risco de degradar-se. A esperança, hoje como sempre, não é virtude de um instante. É a atitude fundamental e o estilo de vida daqueles que enfrentam a existência “enraizados e edificados em Jesus Cristo” (Col.2,6).
A esperança se constrói dia a dia “enraizando” nossa vida no Senhor. É em meio desta sociedade onde nós cristãos procuramos “dar razão de nossa esperança”(1Pd. 3,15). A esperança há de ser arriscada. Ela não é a virtude própria dos momentos fáceis. Ao contrário, a esperança cristã cresce, se purifica e se enriquece em meio aos conflitos. “... porque é mais belo o risco ao lado da esperança que a certeza ao lado de um universo frio e sem sentido...” (Rubem Alves).
A esperança cristã é chamada a “abrir horizonte” ao ser humano contemporâneo. No meio desta nossa história, às vezes medíocre e insensata, está se gestando o verdadeiro futuro do ser humano. Frente a uma “visão imediatista” da história, sem meta e sem sentido algum, a esperança cristã leva a sério todas as possibilidades latentes na realidade presente. Precisamente porque quer ser realista e lúcido, o cristão se aproxima da realidade, vendo-a como algo inacabado e “em marcha”; não aceita as coisas “tal como são”, mas “tal como deverão ser”.
Quem ama e espera (esperançar) o futuro (“novos céus, nova terra”) não pode “conformar-se” com a realidade tal como é hoje. A esperança não tranquiliza, inquieta; introduz “contradição” com a realidade; gera protesto; nos desperta da apatia e da indiferença próprias do ser humano contemporâneo; nos desinstala.
A esperança cristã destrói os “germes de resignação” da sociedade moderna e combate a “atrofia espiritual” dos satisfeitos. Por isso, a esperança cristã não é só “interpretação” do mundo e da condição humana. É esforço de transformação. Introduz na sociedade sede de justiça e compromisso de humanização. Aquele que vive com esperança se sente impulsionado a fazer o que espera.
O futuro que espera se converte em projeto de ação e compromisso. E este compromisso é precisamente o que gera esperança no mundo.
Como desencadear hoje esta esperança na sociedade atual?
- Frente ao pragmatismo científico técnico, a esperança defende a pessoa.
- Frente ao individualismo, a esperança alimenta a solidariedade.
- Frente à insensibilidade, a esperança desperta a misericórdia, a ternura, a acolhida, a compaixão comprometida...“onde não há coração, não cresce a esperança”.
- Frente à violência, a esperança cria condições para o diálogo e reconciliação. O perdão é um gesto de confiança no ser humano; engendra esperança.
- Frente à incredulidade e o vazio existencial, a esperança fortifica a fé em Deus. O ser humano necessita do “Deus da esperança”. Ele é o fundamento último sobre o qual poder apoiar sua confiança radical na vida.
Texto bíblico: Mc. 13,24-32
Na oração: quê esperança você carrega no coração?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
12.11.2012
“Ela, na sua penúria, ofereceu tudo o que tinha, tudo o que possuía para viver” (Mc. 12,44)
32º Dom.Tempo Comum
A extrema simplicidade do relato do Evangelho de hoje esconde a mais profunda mensagem de Jesus: toda a parafernália e suntuosidade religiosa externa não tem nenhum valor espiritual; a única coisa que importa é o interior de cada pessoa. Esta atitude fundamental manifesta-se nos gestos mais simples e aparentemente insignificantes.
O contraste entre as duas cenas é muito forte. Ao contrapor os escribas e a pobre viúva, Jesus denuncia, em primeiro lugar, a falsa religião fundada na aparência, pomposidade e ostentação daqueles que se apresentam como os especialistas e intérpretes oficiais da Escritura, amigos do prestigio, que buscam ser os primeiros e que usam a religião para espoliar os pobres.
Em segundo lugar, com seu fino olhar, Jesus observa uma pobre viúva e move seus discípulos a aprender dela algo que os escribas não lhes ensinarão nunca: uma fé total em Deus e uma generosidade sem limites. Seu gesto passa desapercebido de todos, mas não de Jesus; no seu silêncio e no seu anonimato, a viúva põe em evidência a religião corrupta dos dirigentes religiosos; ela não busca honras nem prestígio, mas atua de maneira calada e humilde revelando um coração mais solidário: dá o que tem porque outros podem necessitar; não dá do que sobra ou do supérfluo, mas “tudo o que tem para viver”.
Segundo Jesus, estas pessoas simples, mas de coração grande e generoso, que sabem amar sem reservas, são aquelas que de melhor pode existir no grupo dos seus seguidores; são elas que fazem o mundo mais humano e fraterno, aquelas que mantém vivo o Espírito de Jesus em meio a outras atitudes religiosas falsas e interesseiras. É a partir dessas pessoas que devemos aprender a seguir Jesus. São as que mais se parecem e mais se identificam com Ele.
Partindo deste gesto generoso da pobre viúva, façamos uma consideração sobre a generosidade que é a virtude do dom. Por ser mais afetiva, mais espontânea, ligada ao coração... a generosidade revela-se na ação, não em função de um mandato, de uma lei, de um interesse..., mas unicamente de acordo com as exigências do amor, da solidariedade...
Sem se reduzir ao amor, a generosidade tenderia, em seu mais extremo ápice, a se confundir com ele. O amor é sempre generoso. A generosidade é desejo de amor, desejo de alegria e de partilha, é a própria alegria, pois o generoso se regozija com esse desejo.
“Agir bem e manter-se alegre; o amor é a finalidade; a generosidade é o caminho” (Spinosa).
A generosidade nos leva em direção aos outros e em direção a nós mesmos enquanto libertos de nosso pequeno eu. É a generosidade que nos liberta da mesquinhez, da avareza, do egoísmo... A generosidade é ao mesmo tempo consciência de sua própria liberdade e firme resolução de bem exercê-la. É por isso que a generosidade reforça a autoestima.
O princípio é a vontade: ser generoso é saber-se livre para agir ordenadamente. O ser humano não é prisioneiro de seus afetos desordenados, nem de si mesmo, mas, ao contrário, é senhor de si. Ser generoso é ser livre de si, de suas pequenas covardias, de suas pequenas posses, de seus pequenos apegos... É o princípio de toda virtude, a busca do bem supremo e o contentamento que ela produz – felicidade generosa. Ser generoso é ser livre, e é esta a única grandeza verdadeira (magnanimidade).
“Notemos que a generosidade, como todas as virtudes, é plural, tanto em seu conteúdo como nos nomes que lhe emprestamos ou que servem para designá-la. Somada à coragem, pode ser heroísmo. Somada à justiça, faz-se equidade. Somada à compaixão, torna-se benevolência. Somada à misericórdia, vira indulgencia. Mas seu mais belo nome é seu segredo, que todos conhecem: somada à doçura, ela se chama bondade” (André Comte Sponville – Generosidade).
Em nosso encontro com Cristo, experimentamos a generosidade como libertação, como um mergulho no coração da verdade. Sentimos o nosso coração dilatar-se até às dimensões do universo; ele se sente livre para qualquer desafio, para lançar-se a uma intensa generosidade.
É a generosidade que alarga o nosso coração, rompendo seus estreitos limites e lançando-o a compromissos mais profundos. Sentimos que cada nova entrega é uma libertação maior: são novas oportunidades de serviço, de maior aproximação d’Aquele que veio, não para ser servido, mas para servir e para dar sua vida pelo mundo.
“Não deve ser tacanho aquele que com quem Deus Nosso Senhor tem sido tão generoso.
Tanto descanso e consolação acharemos, quanto nesta vida os distribuirmos” (S. Inácio)
Nós cristãos deveríamos aprender a “ver os grandes acontecimentos da história do mundo a partir de baixo, da perspectiva dos inúteis, dos suspeitos, dos maltratados, dos que não tem poder, dos oprimidos, dos desprezados, numa palavra: da perspectiva dos que sofrem” (D. Bonhoeffer).
O “novo” na opção pelos pobres não reside, em primeiro lugar, no interesse pelos “pobres”, mas na inversão de ótica. Não se trata tanto de uma ação caritativa (embora nunca pode faltar quando estamos diante do pobre concreto), mas sobretudo de fazer o próprio pobre sujeito histórico e protagonista de uma sociedade nova marcada por maior humanidade, partilha, solidariedade, convivência fraterna e justiça.
A generosidade que nasce da compaixão leva a reconhecer no outro (sobretudo o outro que é excluído) uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação. Isto pede de nós uma atitude de abertura ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, redescobrir com urgência a generosidade como valor ético e como atitude permanente de vida... não uma generosidade ocasional, mas uma generosidade cotidiana que se encarna nos pequenos gestos de serviço no dia-a-dia.
Texto bíblico: Mc. 12,38-44
Na oração: Esta cena tão simples do Evangelho nos desafia mais uma vez e nos vemos retratado nela; simplesmente temos que nos deixar interpelar pelo relato e tentar descobrir se nossa atitude de vida está mais próxima da dos escribas ou mais próxima daquela da viúva.
* o quê prevalece em mim: uma religião de aparência, de ritualismos, de moralismos (própria dos escribas) ou uma religião do coração (simplicidade, generosidade, despojamento...) própria da viúva?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
06.11.2012
“Santificai-vos e sede santos, porque eu sou Santo” (Lev. 11,45)
No próximo domingo celebraremos a festa de Todos os Santos e Santas, ou seja, todos aqueles(as) que, sem exceção, estão na Memória, na Entranha, no Consolo de Deus, na eterna Compaixão que regenera, na Grande Comunhão que é o coração do próprio Deus.
Ela nos recorda que esta é a vocação fundamental à qual somos todos chamados, enquanto seguidores de Jesus Cristo. Deus é a possibilidade universal da santidade, da liberdade para o bem, para a misericórdia, para a justiça. A santidade de Deus é a vocação universal de todos, cada um à sua maneira.
Deus é a graça que transborda, a bondade que se derrama, o perfume que se expande, a fonte que mana e corre em todos os seres, transformando tudo sem fazer-se notar.
Ser santo(a), portanto, é ser dócil para “deixar-se conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e não entendemos. Seus caminhos não são os nossos caminhos. Este “deixar-se levar” pela mão providente de Deus é uma ousadia.
“Deixar-se levar” é uma ousadia porque pressupõe a ação de Deus, um Deus que impulsiona e que impulsionará sem limites. É também uma ousadia porque a pessoa confia tranquila e descansadamente na força do Senhor que não falha. Ser santo(a) é “arriscar-se” em Deus. É navegar no oceano da gratuidade, da compaixão, da solidariedade...
Nós cristãos honramos a santidade universal sem fronteiras de raça, de credo, de cultura... Todos os santos e santas estão no coração do mundo pois são plenamente em Deus. Todos são santos(as), porque já vivem a Vida Eterna e dão alento ao coração do nosso tempo e do nosso mundo.
Nossa vocação é a santidade da Vida para além de todo sistema moral, para além de toda crença, para além de toda religião, porque fora da Igreja há salvação ou santidade. Mais ainda. A santidade é nossa verdade mais íntima e universal.
Somos santos. Não somos santos porque somos irrepreensíveis, senão simplesmente porque somos, e vivemos, nos movemos e somos sempre em Deus e Deus em nós, também quando nos sentimos medio-cres e inclusive fracassados. Ainda não temos encontrado nossa plenitude, não temos realizado nosso ser verdadeiro, mas para esse horizonte caminhamos na santa comunhão de tudo quanto é. Somos um tesouro em vasos de argila em formação, e Deus é o paciente oleiro na sombra mais profunda de nosso barro.
Ser santo(a) é ser humano por excelência; é resgatar a paixão por um ideal de vida; paixão pela vitória da esperança; paixão pelo sonho de melhorar a si mesmo e ao mundo; paixão pelo futuro... enfim, ser santo(a) é fazem das Bem-aventuranças a pauta de seu viver.
Santos(as) são todos aqueles(as) que fizeram do amor e da entrega a Deus e ao outro o centro e o sentido maior de suas vidas. Isto é ser santo: alguém que se “descentrou” de tal maneira que sua vida é movida pela necessidade do encontro e do compromisso com o outro que cruza seu caminho.
O Evangelho nos propõe um modelo de santidade muito mais dinâmico e próximo da vida cotidiana, com seus altos e baixos, alegrias e dores. Ele revela uma nova forma de santidade: a santidade da vida comum, da resposta à Providência divina em meio às rotinas do tempo, uma caridade tecida nos pequenos gestos cotidianos. O(a) santo(a) faz as coisas que todo mundo faz, mas faz de maneira diferente. Há um “mais” qualitativo. Há algo na conduta, no brilho do olhar, na bondade do gesto, na pureza do agir, na liberdade, na gratuidade que o faz ser diferente. Isso é ser santo(a).
Surge, então, a imagem de um(a) santo(a) que é filho(a) do momento e da situação presente, cuja atuação se dá no mundo em que está encarnado. O(a) santo(a) é aquele que, na “loucura santa”, revela uma pulsação de vida para com o mundo; é um biófilo (amigo da vida); é um cooperador, agindo sob o primado da escuta da Palavra de Deus dita na e pela situação cotidiana.
Não é o trivial ou o excepcional que distingue a santidade do ato: o que importa é sua correspondência à Vontade de Deus expressa na situação concreta.
Ainda carregamos resquícios de uma falsa visão da santidade como afastamento do mundo e de seus perigos e buscar refúgio no deserto, nas montanhas ou nos conventos. O(a) santo(a) não se afasta do mundo para encontrar a Deus; ele(ela) faz a “experiência” do Deus agindo no mundo. Aí O encontra e caminha com Ele. O(a) santo(a) é aquele(a) que faz o que Deus faz neste mundo, aquele que faz que este mundo seja justo, santo, salvo.
O mundo não é só o “habitat” da sua missão: é sobretudo a fonte da sua espiritualidade, o lugar certo para encontrar a Deus e escutar o Seu chamado. Na espiritualidade cristã, o mundo já não é percebido como ameaça ou como suspeita, mas como dom pelo qual Deus nos faz participar d’Ele mesmo. O mundo não é lugar da exploração e da depredação, mas é o lugar da receptividade e da oferenda.
É característico da espiritualidade cristã encontrar a Deus na vida cotidiana, ou seja, no dia-a-dia da vida familiar, no exercício da profissão, nas relações sociais, nas decisões éticas, na ação cidadã, no amplo tema dos direitos humanos, no campo da economia, na presença ativa em política, no mundo da cultura, no diálogo com os meios de comunicação, na navegação por internet...
Pondo-nos na escola do Evangelho, é aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reino, trabalhando cada dia como amigos de Jesus que passam, observam, curam, se compadecem, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos. O(a) santo(a) é aquele(a) que na liberdade, afirma: “Fora do mundo não há salvação”.
O(a) santo(a) faz a experiência da intimidade, da presença, da proximidade, da comunhão, da aliança, da glória de Deus em sua própria vida. Ele vive embriagado de vida, de Deus, vive como um peixe no oceano de Deus, dizendo um profundo sim às ondas, ao vento, ao sol, à existência...
Os santos sentem e sabem: se Deus não pode ser encontrado no próprio coração e no coração da vida não será encontrado em lugar nenhum.
O(a) santo(a) sente-se cativado, envolvido, amado, entusiasmado, sintonizado, habitado por Deus de tal maneira que seus olhos, gestos, suas atitudes, palavras, seu coração, sua existência transbordam Deus.
Tal experiência é incomunicável; ninguém pode vivê-la por nós. Num mundo em que nem todos são capazes de grandes façanhas ou de alcançar sucessos, Deus nos deu a aptidão de encontrar a grandeza no dia-a-dia. Temos apenas que ser santos o bastante para que possamos reconhecer o milagre no ritmo da vida.
Texto bíblico: Mt. 5,1-12
Na oração: Marcados pelo espírito das Bem-aventuranças, os(as) santos(as) de hoje, movidos por um olhar novo e um coração ardente, entram em comunhão com a realidade tal como ela é; sentem o mundo como “sacramento de Deus” e são capazes de descobrir e apontar os sinais de esperança ali presentes; revelam uma presença afetiva, marcada pela ternura, compaixão e por isso geradora de misericórdia; presença comprometida solidariamente na vivência da mansidão e na busca a paz...
* Rezar sua presença santificante na realidade cotidiana.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
01.11.2012
“O Amor é Deus, e a morte significa que uma gota desse amor deve retornar à sua fonte” (Tolstoi)
E que é a morte, essa perturbadora irmã da vida?
Ao celebrar o “Dia dos mortos”, todas as culturas e religiões, cada uma à sua maneira, intuíram o que não se pode dizer, ou o que só pode ser dito com muito recato: que a morte é passagem, eclosão, nascimento; que nela entramos nesse processo definitivo de libertação, de transformação, de acesso à Plenitude da Vida, à Comunhão dos santos, à Santidade de Deus...
No entanto, há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. A morte é distante e virtual: procuramos negá-la, escondê-la, dissimulá-la. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana. Vivemos como se tivéssemos que ser imortais. Quando ela está perto, as pessoas se afastam dela, ou então, ela é afastada para locais específicos.
A vida marcada pelo medo da morte é uma vida “em terra de sombras”, que contradiz nossa vocação de ser filhos do dia e da luz.
O medo da morte impede viver adequadamente o presente. Mais grave ainda, o medo da morte pode chegar a escravizar-nos e angustiar-nos a ponto de impedir-nos de viver a vida com sentido, qualidade e prazer. Ela nos golpeia em dimensões muito sensíveis e frágeis de nossa experiência humana. A negação da morte sempre cobra um preço – o encolhimento da nossa vida interior, o embaçamento da visão, o achatamento da racionalidade, a atrofia dos sonhos. Ao final, o auto-engano toma conta de nós.
Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma experiência que nos faz despertar para uma vida mais rica.
Como diz o refrão: “A morte, menos temida, dá mais vida”.
Ao desvelar a precariedade de nossa existência, a morte nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente. Ao compreendermos, de verdade, nossa condição humana – nossa finitude, nossa fragilidade, nosso breve período de tempo sob a luz -, não só passamos a saborear a preciosidade de cada momento e o simples prazer de existir, como também intensificamos nossa compaixão por nós mesmos e por todos os outros seres humanos.
Encarar a morte, com serenidade, não só nos pacifica como também torna a existência mais leve, mais preciosa, mais vital. Essa abordagem da morte leva a um compromisso maior para com a vida.
Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos vivem, porque incapazes de reinventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Portanto, devemos confrontar a morte como fazemos com outros medos. Devemos contemplar nosso fim último, familiarizar-nos com ele, dissecá-lo e analisá-lo, raciocinar com ele e descartar aterrorizadoras distorções infantis sobre a morte. Vencer o medo da morte é reconhecer que a vida sempre é um dom, não o resultado de nosso esforço; e que, por isso mesmo, o essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”.
Jesus entrou por dentro da morte, redimiu-a a partir de seu interior. Jesus entrou no túnel escuro da morte e no final dele nos revelou a imensa luz do amor do Pai que o ressuscita. É na escuridão da dor e da morte que a fé se manifesta e nos revela que fomos feitos por mãos celestiais, chamados à vida, para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus.
Confessamos que a vida é de Deus e, como Ele, é eterna. E nossa última morada não é sob a lápide fria de um túmulo, mas no coração do mistério de um infinito Amor. A morte do ser humano é um “trânsito para o Pai”, “morrer para dentro de Deus”. Vivemos “travessias” provisórias até a grande travessia para Deus. A morte é nossa confirmação na mão de Deus: Ressurreição.
A vida e a morte não são, portanto, inimigas que se destroem; elas são amigas, irmãs inseparáveis. Morre-se ao longo da vida. Este é o caminho normal de morrer. A vida é o lento amadurecer da morte. Morre-se na vida, durante a vida, na medida em que a morte é fruto maduro das opções de toda a vida. As escolhas fazem e farão a nossa morte. A morte nos ronda e nós rondamos a morte. “Começamos a morrer no dia em que nascemos”.
A experiência cristã nos revela o caminho de uma morte preparada ao longo da vida, porque a entende em relação com a vida e a vida em relação com a morte. Vida sem morte é irresponsável; viver sem morrer é viver menos. Tira a seriedade da vida. Só assumida em liberdade e ativamente, a morte se humaniza. Na fé, cristianiza-se.
Na verdade, a morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria vida, as perdas, os sonhos não realizados, os riscos que não tomamos por medo... Nesse sentido, a morte não é o fim da vida, mas sua plenitude, quando esta é vivida com sentido.
A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão...
A existência histórica cresce no útero do tempo e a morte é o parto para a vida plena. A morte é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada, trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna.
Participando da morte de Jesus, podemos também fazer de nossa morte um ato de decisão, de entrega, de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo morto e ressuscitado nos ajuda a ir tirando do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e imortalidade, e ir encontrando uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita para a vida de outros.
De fato, segundo o Evangelho de hoje, aqueles que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros. Para a fé cristã, a morte é passo para a comunhão plena. Último passo. Por isso, não pode ser escondida; antes, preparada. A fé revela-nos a morte como momento em que a pessoa se abre para dimensões nunca antes imaginadas. A fé cristã não é masoquista ou sádica quando nos ensina a bem morrer. Assim nos dá maior responsabilidade diante da própria vida.
Texto bíblico: Mt. 25,31-46
Na oração: recordar os grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises, mortes...) onde não há razões, não há uma lógica... mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
30.10.2012
“O cego jogou o manto, deu um salto e foi até Jesus” (Mc. 10,50)
30º Dom. Tempo Comum
Bar-Timeu: “bar”, em aramaico, significa “filho de”. Ele é um homem sem nome, conhecido simplesmente como filho de Timeu. Estava sentado num ponto estratégico, mendigando às margens da estrada. Todos os peregrinos passam por ali para ir a Jerusalém. Jesus também vai passar por ali. É difícil que alguém escape daquele ponto. Ele está atento.
Do meio do barulho dos passos, da balbúrdia e do vozerio das pessoas brota, da boca do cego, uma invocação incontrolável, cada vez mais persistente; uma oração, um ato de fé:
“Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim”.
Só ele sabe o incômodo que é estar cego, esmolar, vivendo fora da cidade, à margem do caminho. A hora é agora e não há tempo a perder.
Jesus interrompe bruscamente a sua caminhada apressada para Jerusalém. Ele ouve, pára e chama justamente aquele cujo grito perturbava e incomodava a “tranquilidade” da multidão que o seguia. Os dois ainda não se conheciam, mas era forte, em ambos, o desejo de se encontrar.
O cego levanta-se de um pulo, deixa de lado seu manto, sem hesitar: sua riqueza, sua segurança, seu teto... e entra na luz do olhar de Jesus. Bartimeu não está mais excluído, às margens da estrada. Agora, ele se encontra no centro da cena: face a face com o “Filho de Davi”.
Ele poderá ver, não apenas o rosto das pessoas, a côr de uma flôr, o sorriso de uma criança, o encanto da aurora ou o pôr-do-sol, mas, sobretudo, poderá ver a própria existência, o sentido das coisas, da história, dos acontecimentos humanos e da vida...
Finalmente, Bartimeu poderá decidir onde ir, o que fazer da própria vida e como dirigir-se ao próprio Deus. Jesus não o segura; não o convida a segui-lo mas oferece a capacidade de ver na direção certa; oferece-lhe a liberdade; ajuda-o a descobrir que, o desejo de viver, de caminhar, de gritar, nasce da fé.
E, naquela liberdade total, interior, faz a sua escolha: “...e seguia-o pelo caminho”. Esta frase expressa mobilidade e proximidade. Depois da experiência do encontro com Jesus, Bartimeu passou da imobilidade ao movimento, da exclusão à inclusão, do afastamento à proximidade... Para ele, a obscuridade se tornou luz; a marginalidade se tornou estrada; a estraneidade se tornou familiaridade; a liberdade se tornou gratidão; a marginalidade se tornou seguimento... E tudo isso começou de um grito... e de um salto.
A capa que antes o acompanhava e protegia é abandonada. Fica lá, na beira da estrada, marcando o lugar da mudança. A imagem que ela representava é coisa do passado. A capa continua lá no mesmo lugar, mas Bartimeu, agora tomado pelo olhar de Jesus, é homem do caminho, discípulo, seguidor...
Ao chamado de Jesus, reage dando um salto. Salta para um novo ver, salta ainda mais para um novo ser. Salta da vida sem graça, limitada a pedinte da margem do caminho, para a graça da vida de caminheiro solidário rumo à transformação.
A existência humana pode ser marasmo, sonolência, estagnação, medo, repetição, inércia e fixismo. Mas ela pode ser conduzida também com sabedoria e imaginação. Nosso interior contém potencial para vencer a inércia e superar o medo do desconhecido, do fracasso, da desilusão... Carregamos sonhos e desejos, mas podemos correr o risco de convertê-los em uma contínua espera, em algo que não se materializa.
Há um momento em que, para alcançá-los, temos de saltar, temos que nos separar do solo para poder chegar até eles. Esse instante, ou esse tempo, produz-nos vertigem, o medo pode nos paralisar.
O solo são nossas seguranças, o conhecido, o que já temos. O solo é nossa realidade. Renegar o solo que nos sustenta é viver maldizendo nossa realidade, não a aceitando. Aquele que não conhece e não aceita o solo no qual pisa não pode saltar.
Outros, no entanto, estão tão apegados ao solo que é impossível para eles dar o salto. A realidade para eles é como o asfalto nos dias calorosos de verão: os calçados ficam colados ao chão. Estão tão presos ao presente imediato, impedidos de serem ousados no salto criativo.
Para dar o salto ousado e criativo é preciso fazer como o cego Bartimeu: desvencilhar-nos de nosso manto, fardo inútil e peso que nos imobiliza à beira do caminho. Isso impede nossa agilidade e mobilidade para ir adiante na longa jornada que a vida apresenta.
Ao mesmo tempo, sem lamentar o solo que pisamos, viver agradecidos por cada trecho do caminho, por cada salto feito, pelos momentos de risco e frios na barriga; ao mesmo tempo, ter a tranquila certeza de que saltar é humanizador e plenificante.
É importante descobrir o real significado do salto que nos arranca do passado paralisante e nos lança na aventura que modela a vida pessoal, social, ética, religiosa, histórica... O salto inteligente estimula a criatividade e rejeita a mediocridade.
Para isto, devemos suscitar e cultivar o legítimo “salto”, que é fenômeno inovador e fecundo. Isso implica pisar o solo com a confiança de que sabemos que a vida está cheia de novas possibilidades, de metas que ainda não superamos, de encontros que ainda não se realizaram, de chamados aos quais ainda não respondemos, de compromissos ainda não assumidos...
Construir a vida que queremos implica saber saltar, saber partir e deixar para trás nossa situação de comodidade, os lugares cotidianos onde nos movemos como peixe na água, onde nos sentimos seguros.
É importante ter clareza da direção para onde saltamos. Há saltos equivocados: salto amargo, salto pessimista, salto frustrado, salto mortal, salto no escuro, salto no desespero, salto na tragédia, salto no suicídio. Há saltos perversos: salto dos mais fortes sobre os mais fracos, salto autoritário, salto dos prepotentes...
O verdadeiro salto humano tem sentido de inovação. É o salto da multiplação, o salto da gênese permanente e da história inacabada. Salto é o acontecer inesperado, é o surgir repentino, é o germinar da realidade, é o despontar da madrugada. O salto acorda o espírito, solta a liberdade, assume a responsabilidade e aponta o destino inédito.
Salto é também ruptura; de fato, o salto rompe obstáculos e desloca resistências. O salto é surpreendente. Há salto que só se realiza com a quebra da rotina. E cada salto inspirado, pessoal ou social, inaugura novo salto para a humanidade.
É hora de um salto arrojado, e não de covardia. É tempo de assumir o salto. É salto para acordar, salto para pensar, salto para viver, salto para criar, salto para clamar, salto para partir e salto para construir.
O salto envolve a totalidade de ser humano, busca a verdade, busca o bem, busca a ética, busca a utopia, busca o direito e a justiça; busca o salto da humanização.
Texto bíblico: Mc. 10,46-52
Na oração: O salto autêntico reclama coragem àquele que está prostrado; de tempos em tempos precisamos de saltos que nos ajudem a superar o medo e nos garantir a autonomia e a construção de nossa própria história.
Há um impulso interior que nos convida a saltar, do conhecido ao novo: um novo projeto, um novo compromisso, uma nova missão. Isso implica momentos de risco, mas também ali está a serena confiança de que podemos e queremos saltar. Não no vazio, mas no encontro.
O salto lúcido mantém o olhar vigilante, de discernimento: em que direção saltar?
A oração é o ambiente natural para concentrar-se e preparar-se para o grande salto da vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
24.10.2012
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