“Santificai-vos e sede santos, porque eu sou Santo” (Lev. 11,45)
No próximo domingo celebraremos a festa de Todos os Santos e Santas, ou seja, todos aqueles(as) que, sem exceção, estão na Memória, na Entranha, no Consolo de Deus, na eterna Compaixão que regenera, na Grande Comunhão que é o coração do próprio Deus.
Ela nos recorda que esta é a vocação fundamental à qual somos todos chamados, enquanto seguidores de Jesus Cristo. Deus é a possibilidade universal da santidade, da liberdade para o bem, para a misericórdia, para a justiça. A santidade de Deus é a vocação universal de todos, cada um à sua maneira.
Deus é a graça que transborda, a bondade que se derrama, o perfume que se expande, a fonte que mana e corre em todos os seres, transformando tudo sem fazer-se notar.
Ser santo(a), portanto, é ser dócil para “deixar-se conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e não entendemos. Seus caminhos não são os nossos caminhos. Este “deixar-se levar” pela mão providente de Deus é uma ousadia.
“Deixar-se levar” é uma ousadia porque pressupõe a ação de Deus, um Deus que impulsiona e que impulsionará sem limites. É também uma ousadia porque a pessoa confia tranquila e descansadamente na força do Senhor que não falha. Ser santo(a) é “arriscar-se” em Deus. É navegar no oceano da gratuidade, da compaixão, da solidariedade...
Nós cristãos honramos a santidade universal sem fronteiras de raça, de credo, de cultura... Todos os santos e santas estão no coração do mundo pois são plenamente em Deus. Todos são santos(as), porque já vivem a Vida Eterna e dão alento ao coração do nosso tempo e do nosso mundo.
Nossa vocação é a santidade da Vida para além de todo sistema moral, para além de toda crença, para além de toda religião, porque fora da Igreja há salvação ou santidade. Mais ainda. A santidade é nossa verdade mais íntima e universal.
Somos santos. Não somos santos porque somos irrepreensíveis, senão simplesmente porque somos, e vivemos, nos movemos e somos sempre em Deus e Deus em nós, também quando nos sentimos medio-cres e inclusive fracassados. Ainda não temos encontrado nossa plenitude, não temos realizado nosso ser verdadeiro, mas para esse horizonte caminhamos na santa comunhão de tudo quanto é. Somos um tesouro em vasos de argila em formação, e Deus é o paciente oleiro na sombra mais profunda de nosso barro.
Ser santo(a) é ser humano por excelência; é resgatar a paixão por um ideal de vida; paixão pela vitória da esperança; paixão pelo sonho de melhorar a si mesmo e ao mundo; paixão pelo futuro... enfim, ser santo(a) é fazem das Bem-aventuranças a pauta de seu viver.
Santos(as) são todos aqueles(as) que fizeram do amor e da entrega a Deus e ao outro o centro e o sentido maior de suas vidas. Isto é ser santo: alguém que se “descentrou” de tal maneira que sua vida é movida pela necessidade do encontro e do compromisso com o outro que cruza seu caminho.
O Evangelho nos propõe um modelo de santidade muito mais dinâmico e próximo da vida cotidiana, com seus altos e baixos, alegrias e dores. Ele revela uma nova forma de santidade: a santidade da vida comum, da resposta à Providência divina em meio às rotinas do tempo, uma caridade tecida nos pequenos gestos cotidianos. O(a) santo(a) faz as coisas que todo mundo faz, mas faz de maneira diferente. Há um “mais” qualitativo. Há algo na conduta, no brilho do olhar, na bondade do gesto, na pureza do agir, na liberdade, na gratuidade que o faz ser diferente. Isso é ser santo(a).
Surge, então, a imagem de um(a) santo(a) que é filho(a) do momento e da situação presente, cuja atuação se dá no mundo em que está encarnado. O(a) santo(a) é aquele que, na “loucura santa”, revela uma pulsação de vida para com o mundo; é um biófilo (amigo da vida); é um cooperador, agindo sob o primado da escuta da Palavra de Deus dita na e pela situação cotidiana.
Não é o trivial ou o excepcional que distingue a santidade do ato: o que importa é sua correspondência à Vontade de Deus expressa na situação concreta.
Ainda carregamos resquícios de uma falsa visão da santidade como afastamento do mundo e de seus perigos e buscar refúgio no deserto, nas montanhas ou nos conventos. O(a) santo(a) não se afasta do mundo para encontrar a Deus; ele(ela) faz a “experiência” do Deus agindo no mundo. Aí O encontra e caminha com Ele. O(a) santo(a) é aquele(a) que faz o que Deus faz neste mundo, aquele que faz que este mundo seja justo, santo, salvo.
O mundo não é só o “habitat” da sua missão: é sobretudo a fonte da sua espiritualidade, o lugar certo para encontrar a Deus e escutar o Seu chamado. Na espiritualidade cristã, o mundo já não é percebido como ameaça ou como suspeita, mas como dom pelo qual Deus nos faz participar d’Ele mesmo. O mundo não é lugar da exploração e da depredação, mas é o lugar da receptividade e da oferenda.
É característico da espiritualidade cristã encontrar a Deus na vida cotidiana, ou seja, no dia-a-dia da vida familiar, no exercício da profissão, nas relações sociais, nas decisões éticas, na ação cidadã, no amplo tema dos direitos humanos, no campo da economia, na presença ativa em política, no mundo da cultura, no diálogo com os meios de comunicação, na navegação por internet...
Pondo-nos na escola do Evangelho, é aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reino, trabalhando cada dia como amigos de Jesus que passam, observam, curam, se compadecem, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos. O(a) santo(a) é aquele(a) que na liberdade, afirma: “Fora do mundo não há salvação”.
O(a) santo(a) faz a experiência da intimidade, da presença, da proximidade, da comunhão, da aliança, da glória de Deus em sua própria vida. Ele vive embriagado de vida, de Deus, vive como um peixe no oceano de Deus, dizendo um profundo sim às ondas, ao vento, ao sol, à existência...
Os santos sentem e sabem: se Deus não pode ser encontrado no próprio coração e no coração da vida não será encontrado em lugar nenhum.
O(a) santo(a) sente-se cativado, envolvido, amado, entusiasmado, sintonizado, habitado por Deus de tal maneira que seus olhos, gestos, suas atitudes, palavras, seu coração, sua existência transbordam Deus.
Tal experiência é incomunicável; ninguém pode vivê-la por nós. Num mundo em que nem todos são capazes de grandes façanhas ou de alcançar sucessos, Deus nos deu a aptidão de encontrar a grandeza no dia-a-dia. Temos apenas que ser santos o bastante para que possamos reconhecer o milagre no ritmo da vida.
Texto bíblico: Mt. 5,1-12
Na oração: Marcados pelo espírito das Bem-aventuranças, os(as) santos(as) de hoje, movidos por um olhar novo e um coração ardente, entram em comunhão com a realidade tal como ela é; sentem o mundo como “sacramento de Deus” e são capazes de descobrir e apontar os sinais de esperança ali presentes; revelam uma presença afetiva, marcada pela ternura, compaixão e por isso geradora de misericórdia; presença comprometida solidariamente na vivência da mansidão e na busca a paz...
* Rezar sua presença santificante na realidade cotidiana.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
01.11.2012
“O Amor é Deus, e a morte significa que uma gota desse amor deve retornar à sua fonte” (Tolstoi)
E que é a morte, essa perturbadora irmã da vida?
Ao celebrar o “Dia dos mortos”, todas as culturas e religiões, cada uma à sua maneira, intuíram o que não se pode dizer, ou o que só pode ser dito com muito recato: que a morte é passagem, eclosão, nascimento; que nela entramos nesse processo definitivo de libertação, de transformação, de acesso à Plenitude da Vida, à Comunhão dos santos, à Santidade de Deus...
No entanto, há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. A morte é distante e virtual: procuramos negá-la, escondê-la, dissimulá-la. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana. Vivemos como se tivéssemos que ser imortais. Quando ela está perto, as pessoas se afastam dela, ou então, ela é afastada para locais específicos.
A vida marcada pelo medo da morte é uma vida “em terra de sombras”, que contradiz nossa vocação de ser filhos do dia e da luz.
O medo da morte impede viver adequadamente o presente. Mais grave ainda, o medo da morte pode chegar a escravizar-nos e angustiar-nos a ponto de impedir-nos de viver a vida com sentido, qualidade e prazer. Ela nos golpeia em dimensões muito sensíveis e frágeis de nossa experiência humana. A negação da morte sempre cobra um preço – o encolhimento da nossa vida interior, o embaçamento da visão, o achatamento da racionalidade, a atrofia dos sonhos. Ao final, o auto-engano toma conta de nós.
Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma experiência que nos faz despertar para uma vida mais rica.
Como diz o refrão: “A morte, menos temida, dá mais vida”.
Ao desvelar a precariedade de nossa existência, a morte nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente. Ao compreendermos, de verdade, nossa condição humana – nossa finitude, nossa fragilidade, nosso breve período de tempo sob a luz -, não só passamos a saborear a preciosidade de cada momento e o simples prazer de existir, como também intensificamos nossa compaixão por nós mesmos e por todos os outros seres humanos.
Encarar a morte, com serenidade, não só nos pacifica como também torna a existência mais leve, mais preciosa, mais vital. Essa abordagem da morte leva a um compromisso maior para com a vida.
Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos vivem, porque incapazes de reinventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Portanto, devemos confrontar a morte como fazemos com outros medos. Devemos contemplar nosso fim último, familiarizar-nos com ele, dissecá-lo e analisá-lo, raciocinar com ele e descartar aterrorizadoras distorções infantis sobre a morte. Vencer o medo da morte é reconhecer que a vida sempre é um dom, não o resultado de nosso esforço; e que, por isso mesmo, o essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”.
Jesus entrou por dentro da morte, redimiu-a a partir de seu interior. Jesus entrou no túnel escuro da morte e no final dele nos revelou a imensa luz do amor do Pai que o ressuscita. É na escuridão da dor e da morte que a fé se manifesta e nos revela que fomos feitos por mãos celestiais, chamados à vida, para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus.
Confessamos que a vida é de Deus e, como Ele, é eterna. E nossa última morada não é sob a lápide fria de um túmulo, mas no coração do mistério de um infinito Amor. A morte do ser humano é um “trânsito para o Pai”, “morrer para dentro de Deus”. Vivemos “travessias” provisórias até a grande travessia para Deus. A morte é nossa confirmação na mão de Deus: Ressurreição.
A vida e a morte não são, portanto, inimigas que se destroem; elas são amigas, irmãs inseparáveis. Morre-se ao longo da vida. Este é o caminho normal de morrer. A vida é o lento amadurecer da morte. Morre-se na vida, durante a vida, na medida em que a morte é fruto maduro das opções de toda a vida. As escolhas fazem e farão a nossa morte. A morte nos ronda e nós rondamos a morte. “Começamos a morrer no dia em que nascemos”.
A experiência cristã nos revela o caminho de uma morte preparada ao longo da vida, porque a entende em relação com a vida e a vida em relação com a morte. Vida sem morte é irresponsável; viver sem morrer é viver menos. Tira a seriedade da vida. Só assumida em liberdade e ativamente, a morte se humaniza. Na fé, cristianiza-se.
Na verdade, a morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria vida, as perdas, os sonhos não realizados, os riscos que não tomamos por medo... Nesse sentido, a morte não é o fim da vida, mas sua plenitude, quando esta é vivida com sentido.
A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão...
A existência histórica cresce no útero do tempo e a morte é o parto para a vida plena. A morte é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada, trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna.
Participando da morte de Jesus, podemos também fazer de nossa morte um ato de decisão, de entrega, de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo morto e ressuscitado nos ajuda a ir tirando do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e imortalidade, e ir encontrando uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita para a vida de outros.
De fato, segundo o Evangelho de hoje, aqueles que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros. Para a fé cristã, a morte é passo para a comunhão plena. Último passo. Por isso, não pode ser escondida; antes, preparada. A fé revela-nos a morte como momento em que a pessoa se abre para dimensões nunca antes imaginadas. A fé cristã não é masoquista ou sádica quando nos ensina a bem morrer. Assim nos dá maior responsabilidade diante da própria vida.
Texto bíblico: Mt. 25,31-46
Na oração: recordar os grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises, mortes...) onde não há razões, não há uma lógica... mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
30.10.2012
“O cego jogou o manto, deu um salto e foi até Jesus” (Mc. 10,50)
30º Dom. Tempo Comum
Bar-Timeu: “bar”, em aramaico, significa “filho de”. Ele é um homem sem nome, conhecido simplesmente como filho de Timeu. Estava sentado num ponto estratégico, mendigando às margens da estrada. Todos os peregrinos passam por ali para ir a Jerusalém. Jesus também vai passar por ali. É difícil que alguém escape daquele ponto. Ele está atento.
Do meio do barulho dos passos, da balbúrdia e do vozerio das pessoas brota, da boca do cego, uma invocação incontrolável, cada vez mais persistente; uma oração, um ato de fé:
“Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim”.
Só ele sabe o incômodo que é estar cego, esmolar, vivendo fora da cidade, à margem do caminho. A hora é agora e não há tempo a perder.
Jesus interrompe bruscamente a sua caminhada apressada para Jerusalém. Ele ouve, pára e chama justamente aquele cujo grito perturbava e incomodava a “tranquilidade” da multidão que o seguia. Os dois ainda não se conheciam, mas era forte, em ambos, o desejo de se encontrar.
O cego levanta-se de um pulo, deixa de lado seu manto, sem hesitar: sua riqueza, sua segurança, seu teto... e entra na luz do olhar de Jesus. Bartimeu não está mais excluído, às margens da estrada. Agora, ele se encontra no centro da cena: face a face com o “Filho de Davi”.
Ele poderá ver, não apenas o rosto das pessoas, a côr de uma flôr, o sorriso de uma criança, o encanto da aurora ou o pôr-do-sol, mas, sobretudo, poderá ver a própria existência, o sentido das coisas, da história, dos acontecimentos humanos e da vida...
Finalmente, Bartimeu poderá decidir onde ir, o que fazer da própria vida e como dirigir-se ao próprio Deus. Jesus não o segura; não o convida a segui-lo mas oferece a capacidade de ver na direção certa; oferece-lhe a liberdade; ajuda-o a descobrir que, o desejo de viver, de caminhar, de gritar, nasce da fé.
E, naquela liberdade total, interior, faz a sua escolha: “...e seguia-o pelo caminho”. Esta frase expressa mobilidade e proximidade. Depois da experiência do encontro com Jesus, Bartimeu passou da imobilidade ao movimento, da exclusão à inclusão, do afastamento à proximidade... Para ele, a obscuridade se tornou luz; a marginalidade se tornou estrada; a estraneidade se tornou familiaridade; a liberdade se tornou gratidão; a marginalidade se tornou seguimento... E tudo isso começou de um grito... e de um salto.
A capa que antes o acompanhava e protegia é abandonada. Fica lá, na beira da estrada, marcando o lugar da mudança. A imagem que ela representava é coisa do passado. A capa continua lá no mesmo lugar, mas Bartimeu, agora tomado pelo olhar de Jesus, é homem do caminho, discípulo, seguidor...
Ao chamado de Jesus, reage dando um salto. Salta para um novo ver, salta ainda mais para um novo ser. Salta da vida sem graça, limitada a pedinte da margem do caminho, para a graça da vida de caminheiro solidário rumo à transformação.
A existência humana pode ser marasmo, sonolência, estagnação, medo, repetição, inércia e fixismo. Mas ela pode ser conduzida também com sabedoria e imaginação. Nosso interior contém potencial para vencer a inércia e superar o medo do desconhecido, do fracasso, da desilusão... Carregamos sonhos e desejos, mas podemos correr o risco de convertê-los em uma contínua espera, em algo que não se materializa.
Há um momento em que, para alcançá-los, temos de saltar, temos que nos separar do solo para poder chegar até eles. Esse instante, ou esse tempo, produz-nos vertigem, o medo pode nos paralisar.
O solo são nossas seguranças, o conhecido, o que já temos. O solo é nossa realidade. Renegar o solo que nos sustenta é viver maldizendo nossa realidade, não a aceitando. Aquele que não conhece e não aceita o solo no qual pisa não pode saltar.
Outros, no entanto, estão tão apegados ao solo que é impossível para eles dar o salto. A realidade para eles é como o asfalto nos dias calorosos de verão: os calçados ficam colados ao chão. Estão tão presos ao presente imediato, impedidos de serem ousados no salto criativo.
Para dar o salto ousado e criativo é preciso fazer como o cego Bartimeu: desvencilhar-nos de nosso manto, fardo inútil e peso que nos imobiliza à beira do caminho. Isso impede nossa agilidade e mobilidade para ir adiante na longa jornada que a vida apresenta.
Ao mesmo tempo, sem lamentar o solo que pisamos, viver agradecidos por cada trecho do caminho, por cada salto feito, pelos momentos de risco e frios na barriga; ao mesmo tempo, ter a tranquila certeza de que saltar é humanizador e plenificante.
É importante descobrir o real significado do salto que nos arranca do passado paralisante e nos lança na aventura que modela a vida pessoal, social, ética, religiosa, histórica... O salto inteligente estimula a criatividade e rejeita a mediocridade.
Para isto, devemos suscitar e cultivar o legítimo “salto”, que é fenômeno inovador e fecundo. Isso implica pisar o solo com a confiança de que sabemos que a vida está cheia de novas possibilidades, de metas que ainda não superamos, de encontros que ainda não se realizaram, de chamados aos quais ainda não respondemos, de compromissos ainda não assumidos...
Construir a vida que queremos implica saber saltar, saber partir e deixar para trás nossa situação de comodidade, os lugares cotidianos onde nos movemos como peixe na água, onde nos sentimos seguros.
É importante ter clareza da direção para onde saltamos. Há saltos equivocados: salto amargo, salto pessimista, salto frustrado, salto mortal, salto no escuro, salto no desespero, salto na tragédia, salto no suicídio. Há saltos perversos: salto dos mais fortes sobre os mais fracos, salto autoritário, salto dos prepotentes...
O verdadeiro salto humano tem sentido de inovação. É o salto da multiplação, o salto da gênese permanente e da história inacabada. Salto é o acontecer inesperado, é o surgir repentino, é o germinar da realidade, é o despontar da madrugada. O salto acorda o espírito, solta a liberdade, assume a responsabilidade e aponta o destino inédito.
Salto é também ruptura; de fato, o salto rompe obstáculos e desloca resistências. O salto é surpreendente. Há salto que só se realiza com a quebra da rotina. E cada salto inspirado, pessoal ou social, inaugura novo salto para a humanidade.
É hora de um salto arrojado, e não de covardia. É tempo de assumir o salto. É salto para acordar, salto para pensar, salto para viver, salto para criar, salto para clamar, salto para partir e salto para construir.
O salto envolve a totalidade de ser humano, busca a verdade, busca o bem, busca a ética, busca a utopia, busca o direito e a justiça; busca o salto da humanização.
Texto bíblico: Mc. 10,46-52
Na oração: O salto autêntico reclama coragem àquele que está prostrado; de tempos em tempos precisamos de saltos que nos ajudem a superar o medo e nos garantir a autonomia e a construção de nossa própria história.
Há um impulso interior que nos convida a saltar, do conhecido ao novo: um novo projeto, um novo compromisso, uma nova missão. Isso implica momentos de risco, mas também ali está a serena confiança de que podemos e queremos saltar. Não no vazio, mas no encontro.
O salto lúcido mantém o olhar vigilante, de discernimento: em que direção saltar?
A oração é o ambiente natural para concentrar-se e preparar-se para o grande salto da vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
24.10.2012
“Quem quiser ser grande, seja vosso servidor; e quem quiser ser o primeiro seja o servo de todos”
29º Dom. Tempo Comum
"Ter poder": esta expressão ecoa forte no coração humano. Inquieta e se toma ambição como desejo de domínio. O poder deslumbra, ofusca e pode facilmente se tomar o centro da identidade de um indivíduo. Na verdade, o poder é uma das forças mais sedutoras em todos os tempos.
O coração humano sofre ao ver-se dominado por este desejo de poder que intoxica suas aspirações mais profundas de comunhão e solidariedade. Os relacionamentos são balizados, tanto no espaço institucional como nos encontros interpessoais, pela disputa do poder. A vida passa a valer pela força do poder que se tem e ela se torna uma arena de competição. É o extremo de perversidade e de desvio do coração humano.
Além disso, o exercício do poder se expressa nas atitudes de dominar, manipular, subjugar e definir tudo segundo um próprio e particular arbítrio. A perversidade do coração humano encontra no exercício do poder o campo mais propício para a revelação de suas mazelas, violências e mesquinhez. O que constitui poder, cargos, dinheiro, imposições, torna-se uma terrível rédea para o controle de grupos, a submissão de pessoas, o encastelamento do coração e a frieza de manipular tudo para tudo ser feito segundo o próprio gosto e segundo os próprios interesses.
Encanta-nos o grande, o importante, o notável, o solene, o que impressiona e chama a atenção, o que se impõe e causa admiração... Tais apetites nos rompem por dentro e destroçam nossa própria humanidade. Somos “educados” para sermos importantes e poderosos, mas não para sermos simplesmente humanos.A sedução do poder nos desumaniza.
É do coração do próprio Jesus que vem a indicação do remédio para este mal que sorrateiramente toma conta do coração humano e o endurece, produzindo os cenários de corrupção, mentiras e manipulações, impedindo a vida de desabrochar e crescer. Jesus tem consciência de que a busca e o desejo de “mandar” destrói a paz entre as pessoas; a ambição causa divisão em todo grupo; a busca de honras e protagonismos interesseiros rompem sempre a comunhão da comunidade cristã. Todo poder, entendido como domínio sobre os outros, opõe-se à graça do Reino, e assim devem estar conscientes os seus discípulos. Por isso, os seus seguidores devem renunciar os métodos de força, imposição e domínio que outros utilizam no mundo.
Jesus, com seu modo de viver, nos coloca diante da tentação que nos ameaça: o gosto do poder, da comodidade, de pompas, de querer ser como os “chefes das nações”, de ter privilégios... Sua proposta de vida é de uma sabedoria e de uma humanidade finíssima. Ele é profundamente consciente da força desagregadora e desumanizadora que revela toda busca de poder.
Jesus não quer “chefes” sentado à sua direita e à sua esquerda, mas servidores como Ele, que dão sua vida pelos outros. Sua Igreja não se constrói a partir da imposição dos de cima; nela não cabe hierarquia alguma de honra e dominação, mas hierarquia de serviço.
No grupo dos seus seguidores, aquele que quer sobressair e ser mais que os outros, deve se deslocar para o último lugar; assim, a partir da perspectiva dos últimos, poderá ter melhor visão daquilo que eles mais necessitam e poderá ser servidor de todos.
A verdadeira grandeza consiste em servir com amor; o serviço é a manifestação prática do amor. E o amor busca sempre o último lugar, precisamente porque esse é o lugar mais universal; é o lugar que mais nos humaniza, o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade.
Podemos supor, inclusive, que Tiago e João não buscassem diretamente um poder militar ou político, senão um tipo de autoridade e prestígio “espiritual”. Podemos também pensar que eles quisessem “mandar” na linha do bem, para ajudar os outros, como servidores do “Deus poderoso”. Mas Jesus não os distingue daqueles que mandam de forma pervertida. Não há para Ele um poder mau (próprio dos gentios) e outro bom (que seria próprio de seus discípulos).
Todo poder é, no fundo, violento e destruidor, toda imposição é má. Por isso, Jesus não quer melhorar o poder (convertê-lo), mas arrancá-lo pela raiz do coração dos seus seguidores. A comunidade cristã não precisa de poderes que a dominem, mas compreensão, misericórdia, respeito, tolerância...
Jesus não buscou o poder econômico do rico, nem o poder messiânico dos zebedeus, nem o poder sacerdotal do templo, porque o caminho do Reino que ele proclamou não leva à tomada do poder, senão à sua superação. Por isso responde: “entre vós, não deve ser assim...”
Jesus não veio fundar hierarquias entendidas em chave de honra e prioridade social ou espiritual, não veio melhorar a linha do poder, senão destruí-la; rejeita toda forma de poder que quer organizar o mundo e a sua comunidade a partir de cima. Dessa forma iniciou um movimento através de um “vazio de poder”. A partir disso entende-se o chamado ao seu seguimento, que implica uma inversão a respeito da ordem antiga: o poder (desejo de domínio) deve se transformar em gratuidade, gesto de amor desinteressado pelos outros.
Desta forma, Ele quer cimentar a vida de seus seguidores sobre Seu mesmo caminho de entrega, que é o caminho de Deus. O Deus de Jesus não atua por meio de poder. Por isso, seus seguidores devem renunciar ao poder e a imposição sobre os outros; eles devem se caracterizar por sua “qualidade” humana.
A nova atitude dos discípulos aparece, assim, como uma ampliação do gesto de Jesus que, sendo “Filho do Homem”, dá a vida pelos outros. Não veio para receber a majestade, a honra e o reino sobre os demais, senão que veio para dar sua vida pelos outros. Assim, seus discípulos não podem buscar tronos de poder, um à direita e outro à esquerda, senão ser capazes de servir aos outros.
Jesus inverteu a tendência dominante dos grupos sociais e religiosos que interpretam as estruturas de poder profano e religioso em forma sacral. Por isso, frente à manipulação messiânica dos filhos de Zebedeu, representantes de uma humanidade ansiosa de domínio religioso, estabeleceu aqui as bases de uma fraternidade onde não existe poder, senão servidor, exercido pelo “diakonos” (servidor libre).
A partir deste pano de fundo, o evangelho de hoje aparece como um manual de uma Igreja de servidores, onde a vida adquire seu mais profundo sentido, onde surgem relações novas, fundadas na gratui-dade, na compaixão, na acolhida...
Texto bíblico: Mc. 10,35-45
Na oração: “O melhor antídoto à sedução do poder é a espiritualidade. Não apenas no sentido religioso, mas sobretudo no que con-cerne ao aprofundamento subjetivo de valores éticos. Quem gosta de si mesmo não precisa mendigar o olhar alheio. Nem sempre prestamos atenção no preceito de Jesus: “Amar o próximo como a si mesmo.” Se não tenho boa autoestima, dificilmente saberei encarar o próximo com benevolência e compaixão.
Muitos caminhos conduzem a essa conquista interior. Para mim, a mais pedagógica é a meditação, esse silencioso exercício de deixar que Deus me habite para que eu possa abrir portas do coração e janelas da mente aos semelhantes e à natureza”. (Frei Betto).
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
16.10.2012
“…desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher” (Mc. 10,6)
27º Dom. Tempo Comum
As bases das relações humanas foram profundamente abaladas pela presença e atuação de Jesus. No seu tempo, a única glória que uma mulher poderia possuir era um corpo fecundo. Entretanto, no Reino de Deus, esta reclusão da mulher ao campo biológico sofre uma transformação radical.
Quando a mulher fica reduzida à condição de objeto e acorrentada por inteira às suas funções biológicas, perde sua voz e sua palavra; seu lugar na sociedade e na religião se esvazia. Portadora de um desejo e de uma palavra, a mulher deixa de ser, para Jesus, um objeto que se possui, um instrumento que se usa e uma propriedade a dominar e a destruir. A mulher, que não está mais limitada às suas funções biológicas, recupera sua palavra, sua voz e torna-se protagonista na instauração do Reino de Deus.
Marginalizadas, convertem-se nas preferidas de Jesus.
No meio de uma cultura marcadamente machista e patriarcal, Jesus desativou o machismo e rompeu com tabus intocáveis, adotando uma atitude de reconhecimento e valorização da mulher em nível de igualdade com o homem; e isso desde “o princípio”, ou seja, por vontade divina. Em um contexto no qual o mundo feminino era invisível, Jesus o fez visível, superando preconceitos e atitudes de dominação.
Ao renunciar sacralizar a sociedade patriarcal de sua época, Jesus restituiu à sua fonte original a relação entre homem e mulher, o matrimônio e a família. Homens e mulheres aparecem em seu projeto como iguais, sem prioridade de um sexo sobre o outro. No discipulado igualitário de Jesus, as mulheres encontraram espaço para se desenvolver em liberdade, rompendo a submissão à ordem patriarcal. Jesus as emancipou e as fez companheiras itinerantes, em companhia dos homens, para escândalo daqueles que olhavam o corpo da mulher como perigoso e contaminante.
Ao fazer referencia “ao princípio” Jesus vai diretamente à essência do problema, tratando de descobrir as exigências mais profundas do ser humano (vontade de Deus). O único absoluto é a pessoa e seu desenvolvimento como tal. O homem e a mulher são um lugar privilegiado de revelação e de experiência do sagrado. Cada pessoa jamais deixa de ter suas raízes plantadas no coração do próprio Criador. Os fariseus estão fechados ao mundo da ternura, do amor e do perdão. Só estão abertos à Lei.
O mais interessante do Evangelho de hoje é que Jesus vai mais além de toda lei. Busca desvelar a raiz antropológica do matrimônio (o projeto de Deus) para não anular nunca o que é verdadeiramente humano. O ser humano se humaniza quando em companhia, e uma estável relação de casal alcança o grau mais profundo de relação humana. Esta é a chave de todo o discurso.
Este projeto matrimonial é para Jesus a suprema expressão do amor humano. É Deus mesmo que atrai mulheres e homens para viverem unidos por um amor livre e gratuito. O matrimônio é a verdadeira escola do amor. Nenhuma outra relação humana chega a tal grau de profundidade. Em nenhum outro âmbito pode-se expressar melhor o dom total. O amor só emerge na pessoa quando esta amadurece como humana. O amor não é puro instinto, não é paixão, não é interesse, não é simples amizade nem o simples desejo de um querer mútuo. É a capacidade de ir ao outro e encontrar-se com ele(ela) como pessoa, ou seja, para ajudar-lhe a ser mais humana, e experimentando no dom, o mútuo crescimento em humanidade. Uma das qualidades mais bonitas do amor é que pode estar crescendo toda a vida.
“O amor é faísca de Javé” (Cant. 8,6-7)
Nesse sentido, o matrimônio não é uma realidade estática, mas uma realidade dinâmica, é chama divina, é mudança, é abertura ao novo, é projeto a ser construído cotidianamente a dois, é movimento na direção de um “Amor maior”, “amar melhor”, fundado sobre o amor incondicional de Deus.
Viver o matrimônio como dinamismo de vida é entrar no dinamismo expansivo do amor de Deus: “por ser exato o amor não cabe em si; por ser encantado o amor revela-se”. O amor não se fecha a dois; abre-se, amplia-se, envolve outros...; amor expansivo e que se expressa na compreensão, no perdão, no apoio, na paciência, no companheirismo...
“Projeto a dois”, mas sem anular a identidade, a originalidade do outro. O amor faz do homem e da mulher não “duas metades” que se encontram, mas dois inteiros que se doam, e que generosamente acolhem e transbordam o Amor de Deus semeado em seus corações, desde sempre.
Cada um é chamado a ajudar o outro a ser mais humano, mais gente, mais pessoa, mais santo(a)... possibilitar que o outro cresça e desenvolva suas capacidades, riquezas... É querer bem, respeitar, valorizar, sentir a falta do outro, conceder espaço, querer que o outro cresça, alegrar-se com as vitórias do outro, compadecer-se com os seus fracassos... É ajudar a manter sempre acesa a “faísca de Javé”, a chama do amor. Amor que encontra expressões diferentes de acordo com as circunstâncias e as fases da vida.
Por isso, o matrimônio deve ser re-inventado, re-construido cada dia. Isso implica ser criativo na maneira de vivê-lo, buscar novas expressões, novos gestos... Há sempre o perigo da “faísca divina do amor” se apagar pela rotina, cansaço, pela desencanto... A cada dia, o casal deveria dizer, um ao outro: “Hoje eu te recebo novamente como minha esposa/meu esposo, e te prometo ser fiel, na alegria e na tristeza...”. Re-encantar o “sim” e carregá-lo de sentido, de afeto, de ternura... Sim que se prolonga...
O “sim” dado ao outro diante de Deus, torna-se sagrado, compromete, faz cúmplice... Não é um “sim” que se fecha, mas que se expande, repercute nos outros, desencadeia outros “sins”... Sim com a marca da coragem, da ousadia... que arranca do imobilismo e desperta o sentido dos pequenos “sins” cotidianos.
Texto bíblico: Mc. 10,2-16
Na oração: Que a “faísca de Javé”, presente nos corações de tantos casais, se transforme numa labareda, iluminando e aquecendo o cotidiano de suas vidas, inspirando e apontando caminhos para todos aqueles que, em meio às sombras, vivem tateando um sentido para suas existências.
“Nascestes juntos no matrimônio, e juntos permanecereis para sempre.
Estareis juntos mesmo quando as asas brancas da morte separarem vossos dias.
Estareis juntos também na silenciosa memória de Deus.
Deixai, porém, que exista espaço no vosso estar juntos; deixai que os ventos do paraíso dancem entre vós.
Amai-vos reciprocamente, mas não permitais que o amor se torne uma prisão:
Deixai, antes, que haja um mar em movimento entre as orlas de vossas almas.
Ficai alegres, cantai e dançai juntos, mas deixai que cada um esteja só.
As cordas de um alaúde também estão sós, e, no entanto, vibram com a mesma música.
Recebei o coração um do outro, mas não para possuí-lo,
porque só a mão de Deus pode conter vossos corações.
Ficai de pé, juntos, mas não muito próximos, pois as colunas do templo estão separadas,
o carvalho e o cipreste não crescem um na sombra do outro”.
(Kalil Gibran, poeta libanês)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
02.10.2012
26º Dom. Tempo Comum
Vivemos mergulhados em um mundo diversificado, fragmentado, complexo e frágil, cheio de agudas necessidades. Ferem a nossa sensibilidade a extensa e profunda pobreza, a iniqüidade na exploração dos recursos da terra, a exclusão das “massas sobrantes” do centro da sociedade, o desprezo pelas diferenças étnicas e religiosas, a exclusão avassaladora...
A espiritualidade cristã nos diz que este mundo é digno de ser amado, porque nele Deus continua trabalhando; é também em meio às situações tão diferentes que Ele revela seu rosto e se deixa encontrar. Descobrimos Suas pegadas em todas as partes, pois o Espírito de Cristo está ativo em todos os lugares, pessoas, situações e em todas as atividades e mediações que buscam fazê-lo mais presente no mundo.
Com sua presença e ternura, Jesus, no Evangelho de hoje, quebra as atitudes preconceituosas que delimitam friamente os espaços e alimentam proibições que impedem a manifestação da vida. Para Ele, toda pessoa que favorece a vida, em qualquer situação, é um “aliado”, está “a nosso favor”. Ou seja, do Reino não se exclui ninguém; todos estão convidados. Todo aquele que sinceramente busca o bem e se compromete com a vida está a favor do Reino.
Jesus reprime a postura sectária, preconceituosa e excludente de seus discípulos, e adota uma atitude aberta e inclusiva, onde o mais importante é libertar o ser humano de tudo o que lhe oprime. O estreitamento de mentalidade discípulo João colide com a abertura do coração de Jesus.
Para o Mestre, o que conta é o bem que se faz. Jamais uma simples pertença grupal, uma simples afinidade ou mesmo proximidades culturais e cultuais, podem substituir o bem que se deve praticar. Conta o bem que só pode ser feito em nome de Deus; só Ele é a fonte única do bem. A força do bem é a condição única para alargar o horizonte e superar toda atitude preconceituosa estreita.
E o bem se torna valor absoluto, definindo a condição do verdadeiro discipulado.
Esta missão de buscar perceber a presença e a ação de Deus em todas as pessoas e circunstâncias nos coloca no centro de uma tensão, que nos impulsiona, ao mesmo tempo, para Deus e para o mundo. Podemos assim estar sempre enraizados firmemente em Deus e, ao mesmo tempo, imersos no coração do mundo. Somos chamados a estabelecer uma cultura de diálogo em um mundo rico, diverso e polifacético.
E para tornar este mundo mais justo e humano, é preciso considerá-lo como um todo unificado, onde todos dependem uns dos outro, independente de raça, sexo, religião, pensamento diferente... Impulsionados pelo mesmo Espírito de Jesus, guiados pelos valores do Evangelho, marcados pelos valores universais de respeito, dignidade, solidariedade e participação, nos preparamos para aprender do Senhor e uns dos outros, como trabalhar melhor como uma rede de comunidades, reforçar mais nossa aliança com a Criação e amar o mundo como fez o próprio Jesus.
Num mundo plurireligioso e pluricultural as novas fronteiras estão em todas as partes (não mais geográficas); somos chamados a construir pontes entre os que vivem de um lado e outro da fronteira. Mais ainda, que cheguemos a ser pontes em um mundo fragmentado, cheio de brechas... que isolam as pessoas e os grupos sociais e religiosos; estabelecer pontes de diálogo e reconciliação que permitam criar uma nova forma de convivência respeitosa, justa, harmônica e construtiva.
Todos sabemos que há um monstro que habita as profundezas de nosso ser, devorando-nos continuamente e expelindo seu veneno mortal: trata-se do preconceito. Ele constitui o risco permanente em nossa vida, pois limita a realidade, estreita o coração, inibe o olhar e nos faz incapazes de acolher o bem e a verdade presentes no outro. O mal que o preconceituoso faz a si mesmo e aos outros é enorme.
Marcado pela impaciência e desprovido do espírito de leveza, o preconceituoso é incapaz de relativizar os problemas, atrofia seu desenvolvimento criativo, aniquila seus sonhos e esfria seus relacionamentos. Vive o tempo todo petrificado em suas velhas e deformadas opiniões sobre tudo e sobre todos. Seu autoritarismo o leva a julgar os outros o tempo todo, vendo inimigos e concorrentes por todos os lados e acaba numa extrema solidão.
Geralmente, os preconceituosos são dogmáticos e fervorosos, muitos deles tornam-se fundamentalistas, com hostilidade e intolerância religiosa. Cegos para a verdade, eles preferem o autoengano ao conhecimento da verdade também presente no outro; fincam pé naquilo que pensam que sabem, no que está estabelecido e normatizado; não se atualizam, não conseguem ver o novo e a necessidade de mudanças.
Ao tornarem absoluta uma verdade, os preconceituosos se condenam à intolerância e passam a não reconhecer e a respeitar a verdade e o bem presentes no outro. Não suportam a coexistência das diferenças, a pluralidade de opiniões e posições, crenças e ideias. Daí surgem o conservadorismo radical, o medo à mudança, a violência diante da crítica, a suspeita, a vigilância, o controle autoritário...
A inflexibilidade da alma preconceituosa está ligada ao orgulho; ela tem aquela postura de que tudo sabe e tudo controla, carecendo da humildade de “saber que não sabe”. Não tem senso de igualdade e semelhança, e muito menos de compaixão. Aliada à ignorância, não admite que possa mudar de opinião, pois aferra-se a seus caprichos como um náufrago à tábua que o mantém à tona. Vive enraizada nas tradições e nas leis, quase sempre antiquadas e ultrapassadas.
Enfim, o preconceito impede a pessoa de viver, de se abrir ao mundo, de ser espontâneo e de viver mais intensamente.
Mc. 9,38-50: Ingenuamente João, o discípulo amado, revela, diante do Mestre, sua atitude preconceituosa ao proibir um homem de expulsar demônios em Seu nome. De acordo com esta visão míope, o critério já não é o bem que a pessoa faz, mas “porque não nos segue”. Não lhe preocupa a saúde e a vida das pessoas, mas o prestígio de grupo. Pretende monopolizar a ação salvadora de Jesus.
O Mestre revela o simples e, aparentemente, tão insignificante ato de oferta de um copo d’água como remédio que cura a rigidez do preconceito e vence a incapacidade de perceber a ternura acolhedora de cada gesto e sua importância na construção da vida e na recriação da dignidade humana. Vale um copo d’água que se dá. Vale pela importância sempre primeira do outro, não importa quem seja, fazendo valer o princípio norteador do coração amoroso de Deus. Há uma infinidade de pessoas de boa vontade que trabalham por uma humanidade mais digna, mais justa e livre. Nelas está atuando o Espírito de Jesus. Devemos senti-los como amigos e aliados, nunca como adversários. O seguidor de Jesus deve ser sempre fermento de unidade e nunca causa de discórdia e exclusão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
25.09.2012
“Eleva-se a Deus quem desce à realidade: às limitações da vida, às feridas do coração e à pequenez das pessoas”
25º Dom.Tempo Comum
O poder é uma das forças mais sedutoras e que sempre exerceu grande fascínio nas pessoas. Não há ser humano que não tenha sido “tentado” pelo canto desta sereia. Os Evangelhos relatam que também os discípulos de Jesus demonstravam apetite pelo poder:
-discutiam entre si qual deles era o maior (Mc. 9,34);
-alguns pretendiam ocupar os primeiros lugares (Mc. 10,37).
Mas Jesus, que foi tão tolerante com aqueles homens em outras coisas, neste ponto foi taxativo: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e o servidor de todos!” Ao abraçar carinhosamente uma criança, diante de todos, Jesus indica que o centro de sua comunidade não deve estar ocupado pelos grandes e poderosos que se impõem aos demais, a partir de cima. Em sua comunidade precisa-se de homens e mulheres que “desçam” para acolher, servir, abraçar e bendizer aos mais fracos e necessitados.
O Reino de Deus não se expande a partir da imposição dos grandes, mas a partir da acolhida e defesa dos pequenos. Onde estes se convertem no centro de atenção e cuidado, aí está chegando o Reino de Deus, a nova sociedade humana que o Pai quer. Entrar no Reino significa acolher e compartilhar o Projeto de Jesus; isso torna-se impossível para quem fundamenta sua vida por critérios de poder, prestígio, ambição...
Sabemos que o poder nos infla como balões, com desejos de subir, e estar no mais alto, longe de tudo o que é humano, onde as fragilidades e sofrimentos das pessoas não nos afetam, onde possamos vencer, distinguir-nos dos outros... Por seu caráter impositivo, o poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga.
Quem tem “poder” o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se ao outro, domina... A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando sua criatividade e fragilizando seus laços de convivência. O poder não constrói comunidade, pois quem tem poder se cerca de subservientes que cumprem suas ordens, dizem amém às suas ideias ou calam-se coniventes.
Sorrateiramente este mal toma conta do coração humano e o petrifica, impedindo a vida de desabrochar e a criatividade de se expressar. O exercício do poder se expressa nas atitudes de dominar, manipular, subjugar e definir tudo segundo os próprios critérios. A perversidade do coração humano encontra no exercício do poder o campo mais propício para a revelação de suas mazelas, violências e vaidades.
Jesus, no entanto, com seu “ensinamento” e seus gestos, quebra a estrutura da centralidade do poder narcisista; sua atitude é humanizadora e propõe o caminho da “descida compassiva” como a marca distintiva dos seus seguidores; Ele parte da realidade humana mais frágil e excluída, e ensina o segredo para se construir uma comunidade diferenciada: a acolhida e o serviço mútuo em lugar de e em vez de “hierarquias” rígidas e distantes que envenenam as relações inter-pessoais. Para Jesus, não é o poder que deve ocupar o centro, mas a criança, despojada de todo poder.
Jesus revela aos discípulos um “novo ângulo” ou um novo modo de “olhar as pessoas: não a partir do lugar do poder, mas a partir da perspectiva dos fracos e indefesos. Para isso é preciso uma “mudança de lugar”, um deslocamento para baixo, em direção aos pequenos. Quem “desce” encontra-se com Jesus. Quem acolhe um “pequeno” está acolhendo o “maior”, o próprio Jesus.
Tradicionalmente, a espiritualidade cristã que nos foi transmitida partia de “cima”. No entanto, o “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da própria realidade pessoal e dos outros. Este é o paradoxo da espiritualidade cristã: nós “subimos” para Deus precisamente quando “descemos” para a nossa condição humana.
O caminho para Deus passa pela descida em direção aos outros, pelo compromisso com os pequenos e últimos, pela compaixão para com os mais carentes... O Deus que Jesus nos revelou é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como representantes do divino.
O Deus de Jesus é o Deus que responde e corresponde aos anseios de respeito, dignidade e felicidade, que todos trazem inscritos no sangue de suas vidas e nos sentimentos mais autênticos e nobres. O Deus Misericordioso não impulsiona ninguém a desejar poderes, honras, títulos, por mais divinos que sejam. Ele é o Deus que só legitima a identificação e até a fusão com o destino das vítimas deste mundo.
Na pregação e na prática de Jesus nós nos deparamos com uma espiritualidade que vem de “baixo”, que brota do seu encontro com a condição humana, pobre e vulnerável. Ele, conscientemente, se compromete com os publicanos e pecadores, com os pobres e doentes, com as crianças e as mulheres... porque sente que eles estão abertos ao amor de Deus. Os “justos” (praticantes da lei e observantes das normas religiosas), pelo contrário, vivem centrados em si mesmos e são aqueles que entram em permanente conflito com Jesus.
A própria encarnação de Jesus Cristo já é prova de seu esvaziamento e de sua entrada na vida dos últimos e excluídos. Jesus nasce em um estábulo, não em um palácio; ele realiza sua missão não no templo de Jerusalém, mas nas periferias excluídas da Galiléia. Vivendo desta maneira Jesus nos traçou o único caminho para encontrar a Deus: unir-se, fundir-se e confundir-se com tudo o que é debilidade, dor, sofrimento e carência da humanidade.
Ele revela que o verdadeiro modo de encontrar a Deus se dá na medida em que cada pessoa acolhe e se faz solidária com a fragilidade do outro, necessitado de defesa e cuidado.
A fé madura, fé em Deus não se reduz à segurança e firmeza em umas determinadas verdades; mais importante que as verdades de nosso saber é a humanização de nossas atitudes.
“Descer” e “subir”, portanto, são imagens para descrever o processo de transformação realizado por Cristo no interior de cada um de nós. Se com Cristo quisermos subir ao Pai, temos primeiro de descer com Ele à terra, afundar os pés na nossa própria condição humana. Não podemos subir ao céu se não estivermos dispostos a descer com Cristo e ocupar o último “lugar”, no nível daqueles que não tem poder e nem ostenta títulos.
Nós “subimos” a Deus quando “descemos” à humanidade, através do serviço amoroso. Este é o caminho da liberdade, este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia. Ao fazer, junto com Jesus Cristo, o caminho da “descida”, o ser humano vai ao encontro de sua realidade e coloca-se diante de Deus para que Ele transforme em amor tudo quanto existe nele, para que ele seja totalmente perpassado pelo Espírito de Deus.
Texto bíblico: Mc. 9,30-37
Na oração: “Descer” em direção à nossa realidade e à dos outros, significa considerar a experiência da fragilidade e da pequenez como o lugar da verdadeira oração e como chance de chegarmos a uma nova relação pessoal com Deus.
“Considerar” aqueles que não tem “lugar” em nossas comunidades; colocar-se em seu lugar e sentir o que eles sentem.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
18.09.2012
“... mas, o que perder a sua vida por causa de mim e do evangelho, vai salvá-la” (Mc. 8,15)
24º Dom. Tempo Comum
Jesus é claro: apresenta-nos as consequências do seu seguimento.
Quem vive radicalmente o Evangelho, vai ser rejeitado, perseguido... Tudo o que acontece com o Mestre, acontecerá também com os seus discípulos.
Os Evangelhos anunciam que tudo o que Jesus faz – suas atitudes, seus gestos, suas palavras – revela uma nova visão das coisas, um novo ponto de partida, uma nova ordem, um novo projeto.
Jesus encarna-se num mundo fechado, dividido, conflituoso... Faz-se presente no mundo da dor: enfermos, pobres, pecadores... e a partir daí propõe um novo movimento de humanização.
Jesus passa a viver a partir de um sonho primordial: o Reino.
A riqueza original desse sonho primordial não se “encaixou” nos esquemas dos fariseus ou saduceus, essênios ou zelotes, nem se deixou instrumentalizar pela instituição do Templo ou sinagoga.
Jesus era LIVRE e essa LIBERDADE nos fascina até hoje.
Ele vive o tempo todo no “pique” dessa profunda experiência que via em Deus um Pai, nos companheiros via irmãos e amigos e nos acontecimentos, o sopro do Espírito.
Jesus compreendeu perfeitamente que a opressão mais forte, sofrida por seu povo, não era só a opressão política e econômica de Roma, mas a opressão religiosa dos dirigentes e líderes de Israel. Estes estavam dispostos a tudo para continuar exercendo um poder ao qual não estavam dispostos a renunciar.
De fato, havia uma estrutura social, política, econômica, ideológica, religiosa... resistente e fechada a qualquer plano que colocasse em perigo sua continuidade. Tal sistema responde com hostilidade porque detecta o perigo que Jesus e sua proposta de vida representam para ele.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.
Ele se deu conta de que avançar em seu projeto lhe custaria a vida. Em sua instrução ao grupo de seguidores, faz-lhes descobrir que o poder não terá outra saída que condená-lo à morte. Revela, portanto, o fato de “perder a vida” como consequência inevitável por viver a coerência até o extremo.
As circunstâncias mostravam com evidência que a hostilidade do poder para com Jesus se intensificava.
Por isso, começa a prevenir seus seguidores de que sua prática em favor da justiça implicava um enorme risco.
Pedro não pode entender a postura de Jesus. Em primeiro lugar, porque choca com toda a crença judaica e a própria “ideia” que tinham do Messias. Mas também, seguramente, porque não está disposto a assumir para si mesmo um caminho equivalente ao que o Mestre propõe.
Neste sentido, é sumamente significativo o contraste que Marcos apresenta, intencionalmente, entre o caminho de Jesus e o caminho dos discípulos: cada uma das três vezes em que Jesus lhes fala de seu caminho de entrega, eles manifestam uma clara resistência. O choque é grande: Jesus e seus discípulos caminham em direções diametralmente opostas: o serviço e a ambição.
Mas, para Jesus, trata-se de uma questão não negociável: seu caminho reflete o “pensamento de Deus”.
A vontade de Deus nunca passará pelo caminho do poder sobre os outros, senão pelo caminho do serviço. O que Deus quer é o bem das pessoas; somos chamados a viver o amor que se entrega.
E aqui vem a frase que fecha, como chave de ouro, toda a cena: “Quem quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”.
Uma consideração superficial destas palavras deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que preconizava a dor e a negação da própria vida e da própria identidade.
Mas Jesus não buscava a dor e nem negava a vida. Suas palavras não são uma exaltação do sofrimento, mas expressam uma grande sabedoria: buscam “despertar” a pessoa para que possa perceber a atitude acertada diante da vida.
O horizonte de toda pessoa é precisamente a vida e a plenitude. Isso é o que todos, sabendo ou não, buscamos. E o buscamos em tudo o que fazemos e em tudo o que deixamos de fazer. Como acertar?
Jesus oferece uma resposta carregada de sabedoria, na linha daquela que foi dada por todos os mestres e mestras espirituais: para caminhar na direção da vida, é necessário “desapegar-se” do eu.
“Renunciar a si mesmo” é não se reduzir ao eu superficial ou ego. Só quando nos desapegamos do eu, tomamos consciência de nossa identidade mais profunda, a vida que somos. Essa é a Vida de que fala o Evangelho, a mesma Vida que Jesus viveu, com a qual Ele estava identificado (“Eu sou a Vida”) e que buscava despertar em nós.
“Renunciar a si mesmo”: não se trata de negar o que somos, mas o que pretendemos ser e não somos. No mais profundo de cada um de nós habita uma pretensão básica de querer “ser deus” – “sereis como deuses”. É o pecado de raiz já dos nossos primeiros pais. É a tentação de querer ser outro, de não aceitar ser dependente, de não se aceitar como criatura, como humano (frágil e limitado).
“Renunciar a si mesmo” é não deixar que o impulso para a vaidade, a soberba, o poder... predomine; não deixar que o centro seja o “eu”, mas Deus. Isso implica em “descer”, humildemente, ao próprio húmus. Se não venço essa pretensão de “bastar-me a mim mesmo”, não posso seguir Jesus Cristo.
Aqui o “si mesmo” faz referência ao nosso falso “eu”, aquilo que, iludidos, acreditamos ser: o “eu” que busca poder, prestígio, riqueza... O desapego do falso eu é imprescindível para poder entrar no caminho que Jesus propõe.
Aquele que não é capaz de superar o “eu” e não deixar de preocupar-se de sua individualidade (centralidade em si mesmo), frustra toda sua existência; mas, aquele que, superando o egocentrismo, descobre seu verdadeiro ser “des-centrado” e atua em consequência, vivendo uma entrega aos outros, dará pleno sentido a toda sua vida e alcançará sua verdadeira plenitude humana.
Texto bíblico: Mc. 8,27-35
Na oração: nosso coração se encontra diante da revelação do “eu original”, porque está enraizado na identidade do próprio Jesus (“quem sou eu para vocês?”).
A contemplação de Cristo é também revelação do eu “escondido com Cristo em Deus” (Col. 3), ou seja, revelação da verdade do eu, onde descobrimos os traços de nossa própria fisionomia.
Não se pode responder a essa pergunta – “Quem é Jesus para mim” – se não nos perguntamos ao mesmo tempo: “Quem sou eu, diante do Senhor”? Sem identificação não haverá um encontro profundo com o Senhor. O encontro comigo mesmo me aproxima do encontro com o Senhor e o encontro com o Senhor revela minha própria identidade.
Com efeito, orar é aproximar-me da “verdade que me faz livre”; livre para ser “eu mesmo”, chegar a ser aquilo a que sou chamado a ser.
Por isso, a oração cristã é também descoberta do “eu”, da própria realidade pessoal, do mistério que a habita. É nessa experiência divina que a pessoa “descobre-se a si mesma”. Ela começa a descobrir o seu ser (único, original, sagrado...) quando “mergulha” no misterioso relacionamento com Deus e quando permite que o “mistério experimentado” se torne fonte de sua identidade.
Mais ainda, ela saberá melhor QUEM ela é, esquecendo-se de si mesma, aceitando perder-se, deixando que o Amor a liberte de seu pequeno ego.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
11.09.2012
“Imediatamente abriram-se-lhe os ouvidos e a língua se desprendeu” (Mc. 7,35)
23º Dom.Tempo Comum
Na religião judaico-cristã a palavra ocupa um lugar central. Para um judeu, poder escutar a Deus e poder orar a Ele fazia parte da sua identidade; ele repete todos os dias o “Shema Israel” (“escuta, Israel”), a oração de Deut. 6,4-9, que determina que o viver diário, em todos os seus momentos, esteja permeado desta escuta. Por isso, ser “surdo e mudo” significava estar afastado da essência da devoção, incapaz de realizá-la pelo ouvido e pela palavra; não escutar e nem falar significa não desenvolver a característica mais íntima do ser humano: o acesso à linguagem.
De fato, nós somos as palavras que escutamos e aquelas que falamos; a capacidade de escutar e de falar revela nossa verdadeira identidade. Considerar o mistério escondido naquela palavra que saiu de nossa boca e de nosso coração de forma afirmativa, redentora... bendita. Quando assim conseguimos comportar com nossas palavras, estamos contribuindo, literalmente, para a “edificação humana” do outro. Com isso, estamos falando de um ser mais saudável, equilibrado, integrado em suas dimensões (psíquica, social, corpórea, espiritual).
É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Como é importante para uma pessoa, travada na sua capacidade de comunicação, escutar palavras ordenadoras de emoções, de autoestima. Essas palavras são bem-aventuradas, pois se tornam capazes de fazer crescer, sustentar, enfim, edificar pessoas mais saudáveis no convívio social, humano-afetivo, espiritual.
Este é o pano de fundo para a consideração do relato da cura do surdo-mudo, que o Evangelho de hoje nos propõe. Nele encontramos a ação personalizadora de Jesus, que será feita de acordo com a linguagem de compreensão do enfermo. Com sua presença terapêutica, Jesus gera vida, destrava as pessoas para que vivam a partir da verdade mais profunda de si mesmas.
A ação começa com o movimento de algumas pessoas anônimas que conduzem um surdo-mudo (também anônimo) até Jesus. O que aparece claro são suas perceptíveis carências. A surdez lhe impede ser autônomo. Ele não se desenvolve por seus próprios meios. Seu grau de dependência é tal que nem sequer tem consciência para reconhecer a dimensão de seu problema. Outros tomam a iniciativa por ele. Sua situação é agravada pela incapacidade de falar. A surdez que anulava sua receptividade, unida à sua anormalidade na fala, lhe impediam uma relação normal com o mundo exterior. Ele vive fechado em si mesmo, sem poder comunicar-se com ninguém. Está aprisionado em seu isolamento, travado em sua existência. Portanto, Parece lógico, que alguém tivesse que atuar para conduzir o surdo-mudo até Jesus, para que fosse “tocado”; aqui aparece a força do contato.
Sabemos pouco da riqueza de nosso contato. O contato nos cura. É um caminho de comunicação maravilhoso. Na enfermidade, muitas pessoas não buscam mais que o contato. Um verdadeiro contato nos envia sempre para dentro. Não é somente o contato da pele, mas o que nos põe em marcha para nosso interior. O contato nos faz despertar. Existe a idade da palavra, a do ouvido, a do olhar..., mas neste momento Jesus se detém na idade do contato. O caminho do contato é o da mais profunda comunhão.
Jesus começa por usar uma linguagem não-verbal; é a linguagem mais primitiva, anterior à palavra: através dos gestos, o surdo-mudo vai sendo reconstruído em sua humanidade. Jesus, no início da cura, “o conduz à parte, longe da multidão”; uma condução não-verbal, um afastamento da multidão, para longe da massificação.
E lá, na intimidade do contato, o doente é cuidado na individualidade das suas dores.
- “Pôs-lhe os dedos nos ouvidos”; literalmente, “pôs o dedo na ferida”.
A mão é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.
- “Depois tocou-lhe a língua com saliva”; força terapêutica da saliva.
- “Levantando os olhos ao céu..” Jesus Cristo olha para o alto, em direção ao Pai. Com o olhar para o alto, encaminha-o para além de si. É preciso remetê-lo ao Pai, origem de toda vida.
- “Jesus suspirou”. Com o sopro, prolonga o gesto do Criador no 6º. Dia da Criação: lembra como Deus “fez tudo bem” no início. Recorda o sopro do Espírito, que transforma o “caos” existencial do surdo-mudo em “cosmos”, ou seja, a presença do sopro que passará pelas cordas vocais e pela língua, para ser transformado em palavras.
- “E disse-lhe: ‘Effatha’ (que quer dizer: ‘abre-te’)”. Palavra dirigida ao coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua identidade! destrava teu interior!”
Depois de tantos passos no não-verbal e primitivo, vem a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar. Insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único, com todos os órgão do corpo.
Uma vez libertado de sua limitação, o personagem se emancipou, recuperou sua autonomia e pode manifestar-se sem entraves. Agora nada o limita. Possui plena capacidade para integrar-se na convivência social. Desaparecem as causas que lhe impediam optar com liberdade. A possibilidade de uma nova vida se abriu para ele.
Contrariamente aos outros milagres, desta vez Jesus faz uma série de gestos; mais precisamente, eram ações que demonstravam relação e envolvimento: tocou o corpo do homem, olhou para o céu, exprimindo sua comunhão com Deus, e suspirou como sinal de participação profunda no acontecimento. A cura não é um ritual exterior, mas brotava de um encontro, de um gesto que demonstra comunhão entre a pessoa doente, Jesus e Deus.
Marcos, narrando o milagre da cura do surdo-mudo, nos leva, ao mesmo tempo, a intuir que acontece também outro milagre: em pleno território pagão, Jesus abre os ouvidos das multidões para que escutem a Palavra de Deus, desata o nó da sua língua de modo a se unir ao cântico de louvor que se eleva a Deus por todos aqueles que creem nele. De fato aconteceu que, aqueles que levaram o doente a Jesus, no final, também foram “curados”.
Em todo o trecho, o surdo-mudo não diz uma palavra, não toma nenhuma iniciativa, não exprime um pensamento ou um sentimento que tenho sido relatado pelo evangelista. De resto, a sua doença o tornava incapaz de se comunicar. Mas, depois do encontro com Jesus e da cura, aquele que estava distante de todos tornou-se pólo de atração, no sentido de que, por meio dele, a multidão reconheceu e louvou o Senhor. Sua doença, sua cura, sua vida, se tornaram sacramento, um ponto de encontro, um “lugar” no qual também os outros puderam e podem encontrar Jesus.
Texto bíblico: Mc. 7, 31-37
A missão de Jesus é a de devolver à pessoa a sua palavra. Não apenas a palavra aprendida, mas a palavra que exprime verdadeiramente o que ela pensa, que expressa seus profundos desejos, que revela sua real identidade.
Na oração:
“O que não consigo ouvir?”
- em mim - do meu caos de impulsos, afetos e desejos?
- do meu próximo - seu grito de dor, seu clamor, seu desamparo, sua alegria?
- de Deus – do Seu caminho, do Seu chamado, da Sua bênção?
E o que está mudo em mim?
– Que linguagem está presa, quê órgão fonador não se articula com o sopro do Espírito?
- Que palavras são emudecidas e alojadas no corpo, na forma de dores, doenças, tensões musculares, inibições
- Que afetos são sufocados na forma de mutismos, angústias, raivas, tristezas e depressões?
- Que palavras são inibidas e transformadas em condutas de agressão contra outros e contra mim?
- Que órgãos são esquecidos? Minhas entranhas ainda são consultadas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
05.09.2012
“Quando o Deus da história vier, olhará nossas mãos” (Menapece)
22º Dom. Tempo Comum
O relato do evangelho deste domingo se abre com a apresentação dos personagens. Jesus aparece como ponto de referencia frente a dois grupos de indivíduos (“os fariseus e alguns letrados”) representantes do poder religioso oficial, ou seja, grupos de piedosos que exercem uma pressão religiosa sobre o povo em sua pretensão de submetê-lo a uma existência marcada pelo rigorismo religioso.
Aqui, no embate com Jesus, eles não fazem nenhuma referência ao anterior evento da “multiplicação dos pães” e nada dizem sobre a refeição de Jesus com a multidão; eles não se preocupam com aqueles que não comem, mas observam a compostura daqueles que comem. Sua visão míope foge do essencial para permanecer no periférico. Desviam a atenção para o terreno de seus domínios, uma moral superficial, descompromissada. Assim, pois, centram sua atenção em alguns dos discípulos para captar uma irregularidade em sua forma de comer, pois eles comem com “mãos impuras”.
Os líderes religiosos tem “mãos limpas” porque não as usam para o serviço aos outros; são “mãos assépticas” porque não se “contaminam” no contato com as pessoas. Eles se mostram incapazes de ver as mãos como mediação para uma nova humanização, reduzindo-as e atrofiando-as devido a seus esquemas religiosos e morais. Suas mãos carregam censuras, traficam destruição, encarnam a falsidade... Suas mãos são temidas porque fecham o futuro, excluem e espalham o medo, pesam porque julgam...
O coração é o lugar onde o ser humano se revela. As mãos são expressão daquilo que está presente no coração; um coração cheio de ternura, bondade, compaixão... se expressa através das mãos ternas, bondosas, compassivas, que praticam a partilha... Um coração cheio de violência, arrogância, ambições, malícias... se expressa através de mãos violentas, maliciosas, fechadas... As mãos... o espelho da alma.
O ser humano vale pelo que vale seu coração, isto é, por aquilo que deseja, busca e ama desde o mais profundo de si mesmo. É no coração – no mais íntimo de seu ser – que o ser humano acolhe ou rejeita Deus e os outros. É o coração transformado que dirige a mão santificada, delicada. É o coração agradecido que transforma as mãos em instrumentos de graça.
Podemos fazer e dizer muitas coisas com nossas mãos. Admiramos as mãos dos artistas, as mãos curativas dos médicos, as mãos terapêuticas de quem transmite energia libertadora, as mãos de uma mãe que amassam o pão e acariciam, as mãos eloquentes dos mudos, as mãos calejadas do trabalhador, as mãos daqueles que abençoam, servem, partem e repartem...
As mãos estão sempre associadas à ação, como a cabeça à razão e o coração aos sentimentos. As mãos, portanto, adquirem uma infinidade de formas: mãos que levantam para abençoar, mãos que baixam para levantar o caído, mãos que se estendem para amparar o cansado. São como as mãos de Deus que criam, que guiam, que salvam... Quando estendemos os braços e as mãos e tocamos o outro espontaneamente descobrimos a compaixão e a riqueza que existe em todos nós.
As mãos são o instrumento mais universal de que o ser humano dispõe. Além de instrumento, as mãos são ainda meio de comunicação entre pessoas de línguas diferentes. Através das mãos comunicamos energia, nosso coração, nossos sentimentos... Benditas são as mãos que se abrem, que quebram resistências e preconceitos; benditas são as mãos carregadas de entusiasmo e que apontam para um horizonte. Somente uma mão aberta está em condições de fazer-se encontro, de apertar, de acolher, de cuidar; somente uma mão aberta se transforma em promessa de novo encontro.
Mas também, através das nossas mãos, podemos comunicar algo maior que nós e que não nos pertence. “Temos uma Mão na nossa mão”.
Encontramos esta expressão em diferentes tradições religiosas: “a Mão de Deus”. Algumas vezes podemos nos sentir guiados, como se tivéssemos uma Mão pousada em nosso ombro, em nossa cabeça, nas nossas costas, para nos fazer avançar, para nos manter de pé. Na nossa mão há a Mão da Vida; podemos trabalhar e cooperar com esta Mão. Nossas mãos são o prolongamento da Mão providente e cuidadosa de Deus.
Mãos abertas, estendidas, oferecidas
Olha tuas mãos. Toca-as com carinho: os dedos, a palma, o reverso. Quantas coisas podes fazer com as mãos.!!!
Mãos que compartilham, que acariciam, mãos unidas no trabalho solidário, esforço generoso. Também mãos abertas, necessitadas, que expressam confiança ao dirigir-se a Deus na oração. Ao orar elevamos nossas mãos ou as unimos. Estende tuas mãos ao Pai com confiança. Tu... chamado a ser “a mão amiga de Deus”.
Nossas mãos... uma maravilhosa linguagem. Expressão de nosso calor de felicidade, alegria, amor, ajuda. Temos mãos que saúdam ou aplaudem e felicitam o que é bom nos outros; mãos que perdoam ou se abrem para compartilhar. Expressamos um gesto de perdão e reconciliação com o irmão mediante um aperto de mãos.
Mãos estendidas: Tua vida... para dar a mão, levantar o caído, sustentar o fraco, curar o enfermo, guiar o cego, compartilhar com o pobre, libertar o prisioneiro. Onde há um necessitado... uma mão estendida. Dar a mão... uma mão amiga. Sem paternalismo que alimenta o ego de quem dá e humilha a quem recebe. Pensa em pessoas com quem tu podes ser mão estendida.
Mão unidas: Darás sentido à tua vida se constróis pontes de solidariedade e formas o círculo da fraternidade. A comunidade cristã... um conjunto de mãos unidas. Os cristãos curam feridas, enxugam lágrimas, repartem carícias, prestam serviços. Vives tu com as mãos unidas?
Mãos abertas: Chamado a oferecer tua mão aberta, amistosa, desarmada, pacífica. Não os punhos fechados. Mãos para acariciar. Mãos para proteger e cuidar, não para submeter.
Mãos abertas para compartilhar. Mãos que não retém o que o irmão necessita. Abrir a mão, abrir o coração, abrir as entranhas de misericórdia. Caminhas tu pela vida com tuas mãos abertas?
Tuas mãos... sacramento de Deus. Fazem presentes e visíveis as mãos de Deus. Tens no coração o Amor de Deus. A força que te leva a amar o pobre como Deus o ama. Serás a mão amiga de Deus, sua mão boa e carinhosa, sua mão forte e libertadora, sua mão criadora de vida, sua mão generosa que protege e cuida a vida.
Mãos para unir-se, criar, curar, compartilhar... como as de Jesus.
Quando apresentas tuas mãos para bendizer o Senhor, ou abençoar os irmãos, não te preocupes se estão vazias ou cheias; apresenta-as desgastadas. (cf. Revista Testimonio, n. 213)
Texto bíblico: Mc. 7,1-8.14-15.21-23
Dá-me, Senhor, mãos como as tuas:
Mãos ternas para acariciar epidermes e corações.
Mãos fortes para sustentar os que já vergam.
Mãos enérgicas para levantar os caídos e colocar de pé os paralíticos.
Mãos suaves para abrir os olhos dos cegos e dar luz aos que caminham tateando.
Mãos misericordiosas para curar toda dor e toda doença.
Mãos corajosas para desvelar a injustiça dos homens.
Mãos atrevidas para descobrir o que os corações ocultam.
Mãos acariciadoras para despertar fibras adormecidas na vida dos homens.
Mãos trabalhadoras para empregá-las onde faltam.
Mãos artesãs para modelar a tua imagem e semelhança. (Antonio González Paz)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
28.08.2012
“Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la” (Jo. 6,60)
21º Dom. do Tempo Comum
É hoje quase “lugar comum” afirmar que nos encontramos num tempo de crise, no mundo, na Igreja, nas instituições, na vida pessoal e familiar, no mundo do trabalho, da economia, da política, da educação...
Rejeitada por muitos como algo perturbador da ordem e destrutivo da “normalidade” da vida, a crise é um processo normal e faz parte da essência da vida e da história. Ele emerge de tempos em tempos para permitir a vida permanecer sempre vida, poder crescer e irradiar. O simples fato da crise é bom sintoma. É sinal de que se abriram novas possibilidades, de que fermenta um processo depurador e salutar.
O termo chinês para a palavra “crise” (“wei-ji”) fala de duas coisas: perigo e oportunidade. No grego, crise (“krisis”, krinein”) significa a decisão num juízo. De crise vem também a palavra “critério” que é a medida pela qual se pode discernir e distinguir o autêntico do inautêntico, o bom do mau. No sânscrito “kri” ou “kir” e significa “desembaraçar”, “purificar”, “limpar”. Crise designa, então, o processo de purificação do cerne, para trazer à tona o essencial e eliminar os elementos secundários que foram se acumulando no interior da vida, comprometendo-a e esvaziando-a de sentido.
Todo processo de purificação implica ruptura, divisão e descontinuidade. Por isso esse processo é também doloroso e assume aspectos dramáticos. Mas é nessa convulsão que se catalisam as forças e se purificam os valores positivos contidos na situação de crise. Toda situação de crise, para ser superada, exige uma decisão (a pessoa é convocada “não a opinar sobre algo, mas a decidir sobre algo”). Esta marca o caminho novo e uma direção diferente que é dada à vida. Sem essa decisão não há vida. Ideias, nós as temos, mas decisões, nós as vivemos. Por isso, uma situação de crise é muito rica; não constitui uma tragédia na vida, mas seu vigor e transformação. É oportunidade de crescimento. Não é perda do chão debaixo dos pés, mas desafio que esse chão vital lança para uma maturação maior. Na crise tire o “s”: crie!
Para os despreparados (imediatistas) a crise representa estresse e colapso. Para os atentos (contemplativos), significa um trampolim para o aprendizado e para o novo. A crise provoca uma decisão que abre um novo caminho de crescimento e rasga um horizonte de possibilidades que vão moldando um novo estilo de vida. Não havendo decisão, protela-se a crise, e as forças positivas nela contidas nunca chegam a se manifestar. Crise é o momento crítico da decisão, onde algo é deixado para trás e se abre um patamar superior que possibilita uma nova forma de vida.
O Evangelho de hoje nos ajuda a interpretar e viver a crise com profundidade mais evangélica. Segundo o evangelista João, Jesus resume assim a crise que está se criando em seu grupo: “As palavras que vos disse são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não creem” (v.63). Jesus introduz um espírito novo naqueles que o seguem; suas palavras comunicam vida; o programa que propõe pode gerar um movimento capaz de orientar o mundo para uma vida mais digna e plena.
Mas existem aqueles que resistem aceitar seu espírito e sua vida. O narrador diz que “muitos voltaram para trás e não andavam mais com Ele”. Na crise revela-se quem são os verdadeiros seguidores de Jesus. A opção decisiva sempre é essa: quem volta para trás e quem permanece com Ele, identificados com seu espírito e sua vida? Quem está a favor e quem está contra seu projeto? O grupo começa a diminuir. Mas Jesus não teme o fracasso e não pronuncia nenhum julgamento sobre eles. Só faz uma pergunta decisiva àqueles que permaneceram junto dele: “Não quereis também vós partir?” Seguimento é questão de decisão pessoal; é exercício de liberdade.
Esta é a pergunta que ressoa no interior de cada um de nós: Que queremos? Por quê permanecemos? É para seguir a Jesus, acolhendo seu espírito e vivendo seu estilo? É para trabalhar em seu projeto? A resposta de Pedro é exemplar: “Senhor, a quem iremos nós? Tu tens palavras de vida eterna”. Os que permanecem o farão por Jesus. Só por Jesus. Comprometem-se com Ele. O único motivo para permanecer em seu grupo é Ele. Ninguém mais.
Jesus põe seus seguidores em crise porque tem consciência de que há momentos na vida em que, para continuar, é preciso romper, entrar num processo de agitação, de instabilidade e radical questionamento. A crise é esse momento angustiante, mas profundamente criativo, que permite o evoluir da vida sobre outras bases e com outros valores.
A crise não é um mal que surge inesperadamente, interrompendo o curso normal da vida; é um momento de virada. Caímos em crise quando algo novo quer entrar em nossa vida e não podemos ou não queremos dar-lhe espaço e atenção. Crise na vida é chance de vida. A crise traz sempre incômodos, aflições e dores tremendas, mas também as promessas de uma nova vida, uma forma mais integral de viver, de amar, de sonhar, de lutar, de sofrer e de ser feliz.
A crise é portadora de vitalidade criadora; não é sintoma de uma catástrofe iminente, mas é o “momento crítico” em que a pessoa se questiona radicalmente a si mesma sobre o seu destino, sobre o mundo que a cerca, sobre a sua missão... A crise aparece como uma dimensão da transformação.
As crises tem sempre uma dimensão instrutiva, isto é, sempre uma oportunidade de aprendizagem, de evolução, de crescimento. Elas podem sinalizar mudanças positivas e dão início a profundas transformações, rompendo coisas incrustadas, atitudes acomodadas, visões estreitas...
O caminho torna-se mais claro, a vida mais agradável, o futuro mais empolgante.
Depois de qualquer crise, seja corporal, psíquica, moral, seja interior e religiosa, o ser humano sai purificado, liberando forças e criatividade para uma vida mais vigorosa e cheia de renovado sentido.
Nos momentos de crise vive-se com especial intensidade o “kairós” (momento de graça), onde o essencial surge com mais clarividência. Tudo o que é acidental, periférico, empalidece em sua consistência e validade. É chance de vida nova num outro nível e dentro de um horizonte mais aberto.
Se compreendermos que a crise é o nicho generoso onde se prepara o amanhã, então teremos a oportunidade de amadurecer e de dar um salto para dentro de um horizonte mais rico de vida, humana e divina. Nesse sentido, a crise é oportunidade para despertar nossa humanidade; ela nos humaniza.
Texto bíblico: Jo. 6,60-69
Na oração: fazer memória das crises na vida pessoal
– elas foram ocasião para uma mudança ou acomodação, movimento em direção do novo ou re-traimento? Medo ou ousadia? Criatividade ou “normose”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
“Maria levantou-se e dirigiu-se apressadamente...”
Quando Deus entra e atua na história das pessoas, move-as para irem “apressadamente” ao encontro dos outros, para servi-los nas suas necessidades, para comunicar a alegria pela salvação recebida, e para alegrar-se com os outros pelas graças que eles receberam.
Com a expressão “apressadamente” Lucas quer sublinhar a atitude interior de fé e de prontidão de Maria.
Sua “pressa” não nasce da ansiedade que não encontra repouso nem pode descansar no presente, mas é a expressão de um amor serviçal que busca ser eficaz. Sua “pressa” está dinamizada pelo fervor interior, pela alegria e, sobretudo, pela fé. Quem foi “agraciada” por Deus não fica só contemplando as maravilhas que Deus realizou nela, mas sai para proclamá-las. Quem tem consigo o Salvador não o pode guardar só para si.
Maria foi “assunta ao céu” porque “levantou-se apressadamente” em direção ao serviço; ela foi “assunta” porque assumiu tudo o que é humano, porque “desceu” e se comprometeu com a história dos pequenos e marginalizados. Por isso, Deus a engrandeceu plenamente.
Realiza-se em Maria a situação final prometida a toda humanidade: “ser um dia de Deus e para Deus”; Maria o é desde o início (imaculada) até o final (assunção), através de uma fidelidade servidora de toda sua vida.
Em Maria resplandece o projeto divino sobre a criatura humana: a dignidade do ser humano aparece plenamente iluminada neste destino supremo já realizado na Virgem Maria. Ela deixou-se envolver pelo Espírito – assumida e transformada – no seio da Trindade Vida.
A Assunção não é um privilégio excepcional de Maria, mas a imagem de nosso próprio destino.
Crer na Assunção alimenta a esperança; por isso Maria é o ícone da esperança. Como disse Pio XII ao proclamar o dogma da Assunção: “o essencial da mensagem é reavivar a esperança na própria ressurreição”, ou seja, em sermos assumidos inteiramente no seio do Mistério original de toda vida. Por isso, a festa da Assunção é nossa festa, pois fala de uma fidelidade duradoura, de um além que se faz sempre mais próximo e presente, de uma vida ainda a caminho da plenitude; enfim, antecipação do destino último de nossa vida.
Nesse sentido, o cântico de Maria é um resumo de todas as esperanças de Israel e, ao mesmo tempo, uma expressão condensada da fé, da esperança e do amor da Igreja, o novo Povo de Deus. Maria canta agora a realização das esperas e das esperanças cantadas, nas horas de júbilo e nas horas de pranto, pelo povo de Israel. A esperança se realiza no encontro, que impele a sair, a caminhar, a ir ao encontro, narrar aos outros o fogo que se acendeu por dentro. As promessas do Magnificat não são uma utopia nebulosa. Elas estão fundamentadas na esperança-certeza da fidelidade amorosa de Deus.
A esperança é caminho e meta, posse e dom, destino e encontro, antecipação e cumprimento, expectativa e busca, risco e certeza, ousadia e liberdade.
“O coração do cristão é inquieto, está sempre em busca, em espera: esta é a esperança...
porque a esperança é aquela que faz caminhar, faz abrir estradas...” (Massimo Cacciari)
O ser humano que espera não tem certeza, não fica seguro, não está satisfeito. Mas a esperança tem fundamento; não é uma ilusão e nem uma utopia; não é um sonho impossível e nem uma lembrança irrecuperável; não é só futuro, mas permanece, disfarçadamente, presente; não é uma morada, mas um sentimento sempre inédito. Não há esperança na solidão das próprias seguranças e das próprias expectativas.
A esperança evita tropeçar no fracasso, no desânimo, na apatia e no silencioso desespero. Ela se acende à noite, vence na impotência; é ousada na fragilidade. A esperança é brasa, é pés; o ser humano-esperança é o peregrino que caminha, é o artífice que tece o seu próprio existir. Esperança é o ser humano nômade. Desloca-se. Desdobra-se. Inventa-se.
Esperança é força prospectiva que suscita passos para a gênese da nova humanidade. Na noite ela se acende; na vulnerabilidade, ela vence; na finitude, ela impele a caminhar.
Poderíamos acrescentar que uma humanidade, incapaz de cultivar a esperança, não merece ser olhada, porque lhe faltaria a única razão pela qual vale a pena existir. Sem a esperança, a humanidade perde a iniciativa. Embota-se. A esperança é o canto que desperta coragem frente os corredores escuros da história.
A vida sem desafios não é real; mas a vida sem espera, sem desejo, sem paixão, sem esperança, não é vida. A esperança mora onde a deixamos entrar: onde lutamos, onde convivemos com o outro diferente de nós, onde a fragilidade e a transição podem desorientar, onde as trevas parecem mais fortes que a luz, onde a vida parece ser ameaçada pela morte, onde a violência pensa levar vantagem, onde o caminho é íngreme, onde a espera se confunde com a angústia...
Mas não basta ter esperança. É preciso ser esperança. O ser humano vive de esperança, acredita na esperança, mas, sobretudo é esperança. A esperança leva a querer algo mais. É “antecipação criadora”; ela tem “rosto novo”. É madrugada e não crepúsculo. Jamais “envelhece”. É o futuro que ainda pode ser convertido em história nova. É Assunção: vida plena antecipada.
Celebrar o mistério da Assunção de Maria é também um convite a viver nessa dinâmica do compromisso e não da resignação, da esperança solidária e não da “espera passiva”. Este mistério celebrado por toda a Igreja é um mistério profundamente enraizado no coração do ser humano, que quer viver sempre, permanecer, ser imortal. Por isso somos convidados a continuar nesse “deslocamento” contínuo a serviço da vida. Assunção é missão.
Texto bíblico: Lc. 1,39-56
Na oração: Quem ocupa o centro da cena, do começo ao fim, é a figura de Maria. Nela devem concentrar-se, portanto, nosso “olhar, escutar, observar”.
Nenhum outro texto nos revela de maneira tão densa e tão profunda a vida interior de Maria, os pensamentos e os sentimentos que invadem sua alma, a consciência de sua missão, sua fé e sua esperança, sua experiência de Deus, enfim.
Contra uma concepção cada vez mais “econômica” do mundo, contra o triunfo do possuir, do ter, da escravidão das coisas, o Magnificat exalta a alegria do partilhar, do perder para encontrar, do acolher, do admirar, da felicidade da gratuidade, da contemplação, da doação. O ser humano, e todo o seu ser, transforma-se então em louvor de Deus.
O Magnificat, é o canto das escolhas caprichosas de Deus, que tem um “fraco” pelos pobres, por todos os infelizes e os oprimidos; poder e riqueza não gozam de nenhum prestígio aos seus olhos.
* Rezar as “marcas salvíficas” de Deus na própria história pessoal. Não podemos esquecer o que Deus fez ao longo da história da salvação e o que fez particularmente por nós na história de nossa vida.
* Que esperanças carrego em meu interior?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
14.08.2012
“Eu sou o pão da vida” (Jo. 6,48)
19º Dom.Tempo Comum
Jesus, o “Pão da Vida”, tocou as “vidas feridas” com delicadeza e ternura e as transformou. Seus gestos terapêuticos foram o prolongamento da ação criativa de Deus; com palavras e ações Ele inaugurou no meio de nós o Reino de Vida do Pai. Não só optou pela vida e se comprometeu com a vida, mas fez de sua Vida uma entrega radical a favor da vida.
Em Jesus acontece algo totalmente novo; Ele traz uma nova maneira de viver e de comunicar vida que não cabe nos nossos esquemas. É justamente isso o que mais atrai em pessoa. Quem entra em comunhão de vida com Ele, conhece uma vida diferente, de qualidade nova, expansiva...
A vida é sempre uma novidade que rompe velhos barris; ela é um fenômeno que emerge de forma misteriosa; ela se impõe, simplesmente.
Tal realidade desperta fascinação, provoca admiração e veneração... porque a vida é sempre sagrada. Diante dela ficamos extasiados, boquiabertos, escancarados os olhos e afiados os ouvidos. Ela nos atrai por sua força interna. A vida é sempre emergência do novo e do surpreendente.
Portador de uma vida inesgotável, somos muito mais que o simples resultado de nossos esforços e lutas. Vivemos para mergulhar em algo diferente, novo e melhor.
Nossa vida não é um problema a resolver, mas uma experiência a acolher, uma aventura a amar e um mistério a celebrar. Afinal, somos discípulos permanentes na escola do Mestre da vida!
Nesse sentido, a experiência do Seguimento de Jesus é uma verdadeira “escola de vida”, cuja aprendizagem nos leva ao âmago do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele haurir a seiva da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus.
Nada mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...
A comunhão com Cristo é fonte de vida e vida em crescente amplitude. Quando nos dispomos a caminhar com Ele, sob a ação do Espírito, realiza-se em nós um processo de abertura e de superação, de crescimento e de reconstrução de nós mesmos...; tomamos consciência de uma dimensão profunda de nosso interior, que nos permite experimentar outra vida, que supera tudo o que vivemos até então.
A “vida eterna”, então, não é um prolongamento ao infinito de nossa vida biológica. É a dimensão inesgotável e decisiva de nossa existência. Ela torna-se “eterna” desde já.
Para o evangelista João, a “vida” é uma totalidade, ou seja, a vida presente, a vida atual, é uma vida que tem tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”, uma vida com tal força e tão sem limites, que nem a morte mesma terá poder sobre ela.
Precisamos adquirir uma consciência mais profunda da vida do espírito, perceber as pulsações desta vida eterna que está em nós, do mesmo modo que, prestando atenção, percebemos as batidas de nosso coração.
A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude. Vida plena prometida por Jesus: “Eu vim para que tenham a vida e vida em abundância” (Jo 10,10)
Jesus é alimento que gera vida nova no mundo; alimentar-nos d’Ele desperta nossa vida interior, fazendo-nos redescobrir nossa verdadeira riqueza; ao mesmo tempo, fazendo-se “pão partilhado”, ensina-nos a gerar vida, ou seja, nos move a fazer com que nossa própria vida seja “alimento disponível” para que outros também tenham vida.
A comunhão de vida com Cristo nos faz ter um “caso de amor com a vida”. Nem sempre sabemos viver: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”. Quando nos saciamos com o Pão que proporciona vigor inesgotável, nossa vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...
O encontro com a Vida que se faz Pão nos move a buscar o sentido de nossa própria existência; e quem encontra o sentido se torna dinâmico, persegue um horizonte, abre-se a uma causa mobilizadora. Para isso é necessário outro ritmo de vida, que nos permita vivê-la com mais sabor, com mais autenticidade.
A vida é vivida intensamente quando a força do “Pão da Vida” atua, impulsionando a abrir, a avançar, a progredir. Porque a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada pelo amor. É este dinamismo de amor que somos chamados a contemplar no mistério do Pão da Vida, do qual cada pessoa é uma pequena, mas preciosa imagem. O seguidor de Jesus deixa refletir esta imagem em sua vida concreta de cada dia quando vive esse dinamismo do “pão partilhado”, numa relação cordial, aberta e receptiva à originalidade do outro, entrando num verdadeiro dinamismo de vida. Um dinamismo de amor.
A adesão a Jesus não fica na exterioridade. Ele não é modelo exterior a ser imitado, e sim, é realidade interiorizada. Essa comunhão íntima muda o interior do discípulo, possibilita a sintonia com Jesus e faz viver a identificação com Ele.
O dinamismo do seguimento é gerar vida, fazer o discípulo viver a partir da verdade mais profunda de si mesmo; ou seja, viver a partir do coração, do “ser profundo”.
Fazendo-se alimento, Jesus nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade, desperta nossa vida, arrancando-a de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes.
E Jesus não somente vai conosco, mas nos precede, nos sustenta e, na liberdade de seu amor, nos impele a ampliar nossa vida a serviço. Toda peregrinação, em clima de admiração e assombro, se revela rica em descobertas e surpresas, e desperta o coração para dimensões maiores que a rotina de cada dia.
Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição.
Texto bíblico: Jo 6,41-51
Na oração: Para viver a partir do ser mais profundo, é preciso dedicar, cada dia, algum tempo de atenção ao próprio coração e aprender a regozijar-se da maravilhosa vida de Deus em cada um de nós.
Basta um repouso e o estar presente para fazer acalmar a agitação interior e aproximar-se da fonte da vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
07.08.2012
“Quem vem a mim, nunca mais terá fome e o que crê em mim nunca mais terá sede” (Jo. 6,35)
18 dom. tempo Comum
Depois da multiplicação dos pães, Jesus, ao perceber que o povo não tinha entendido nada do que acontecera, pois tentava fazê-lo rei, retirou-se a uma montanha, sozinho. A multidão fica satisfeita por ter se alimentado; ela segue Jesus por aquilo que Ele pode dar. No entanto, a identificação com Jesus e seu projeto passa longe. Seus interesses vão em sentido contrário à atitude de Jesus de movê-la à compaixão e à partilha. Jesus ensina como repartir, isto é, como as pessoas precisam ser umas com as outras.
Jesus empenha-se por uma nova humanização, onde as pessoas possam ser livres, mas elas preferem continuar dependendo de outro (rei). Enquanto as pessoas buscam alguém que se responsabilize por elas, Jesus ensina a responsabilidade mútua, a corresponsabilidade. A abundancia de alimento é graça de Deus, mas é igualmente empenho de cada pessoa e de todas juntas. Jesus lhes pede generosidade e amor, mas elas preferem receber grátis. Jesus quer associá-las à sua obra, mas elas querem descarregar em um chefe sua responsabilidade.
A solução para uma nova humanidade não é o dinheiro, o poder, o domínio ou um milagre externo, mas saber compartilhar tudo com todos. O problema não se soluciona comprando, o problema se soluciona compartilhando. A verdadeira salvação não está em que alguém solucione nossos problemas, nem sequer em ajudar a solucionar todos os problemas dos outros. A verdadeira liberdade está em superar o egoísmo e estar disposto e dividir com os outros o que cada um tem e o que cada um é.
“Não temos em nossas mãos a solução de todos os problemas do mundo, mas diante dos problemas do mundo temos nossas mãos” (Congresso de jovens latino-americanos).
No entanto, segundo o relato de João, a multidão continua buscando a Jesus. Há algo n’Ele que a atrai, mas ainda não sabe exatamente por quê o busca nem para quê. As pessoas começam a intuir que Jesus está lhes abrindo um novo horizonte, mas não sabem o quê fazer, nem por onde começar. “Do outro lado do mar” Jesus começa a conversar com elas. Há coisas que convém aclarar desde o princípio. O pão material é importante. Ele mesmo lhes ensinou a pedir a Deus “o pão de cada dia” para todos.
Mas o ser humano carrega “outras fomes” em seu interior. Jesus procura despertar nas pessoas uma fome diferente: Ele lhes fala de um pão que não sacia a fome de um dia, mas a fome e sede de vida plena. Ou seja, ser seu seguidor é associar-se à Sua Fome: aliviar o sofrimento humano. Trata-se de uma “fome humanizadora”: fome de comunhão, de cuidado, de compaixão..., fome de novas relações, de um mundo novo... Fome de vida! Jesus quer oferecer-lhes um alimento que pode saciar esta fome de vida.
Jesus salva e alimenta porque é pão. Ele é o alimento que gera vida nova no mundo, vida oferecida e compartilhada. Devemos unir a imagem de Jesus/pão com a imagem Jesus/grão de trigo que é triturado para ser alimento e fecundar a vida. Um alimento “subversivo” porque subverte a tradicional “ordem” das coisas. “Eu sou o pão da vida”. Antes de partir o pão, Jesus parte-se a si mesmo, faz-se alimento. Toda sua vida foi entrega. Sua vida inteira dá significado ao partir, compartilhar e repartir o pão da vida.
E é isso que, no nível mais profundo, somos todos. Todos somos Vida, todos somos “pão de vida”. Somos pão quando alimentamos o outro na esperança, no perdão, na acolhida, na compaixão, no compromisso... Sim, podemos multiplicar o pão da festa, da alegria, o pão da justiça, o pão da ajuda fraterna... Quanto pão para ser dividido!
“As refeições não se iniciam com a comida que se serve. Elas se iniciam com a fome. O(a) bom(boa) cozinheiro(a) é aquele(a) que sabe a arte de despertar a fome”. Experimentamos fome quando saímos de nós mesmos, quando nos consumimos no trabalho pelo Reino, quando nos empenhamos por abrir caminhos de humanização...
- Quais são minhas fomes existenciais?
- Em quê circunstâncias experimento ser “pão de vida”?
“O pão deve ser tratado com respeito, quase com devoção. É algo muito entranhável na vida de uma família. O pão é sinal de vida. É vida concentrada. Vida em forma de alimento.
O pão, como a vida, é dom, não é merecimento. Devemos comê-lo com um coração agradecido.
Com razão dizemos que o pão é sagrado. O sagrado é a vida que o pão alimenta, e a vida que com suor e lágrimas fez o pão. Mas, “sagrado” quer dizer entregue. O pão está para ser partido e compartilhado, para alimentar vidas. Jesus foi “reconhecido ao partir o pão”; foi reconhecido não porque estava no templo ou ensinava na sinagoga, mas porque partia o pão. O pão nas mãos de Jesus era pão para ser partido, repartido e compartilhado.
Discípulos de Jesus são aqueles que aprenderam a partir o pão. Reconhecemos os cristãos hoje quando partem o pão e não o armazenam. Compartilhar significa não “monopolizar”, não permitir que haja necessitados entre nós. O pão partido é a vida compartilhada: meios, tempo, qualidades. O cristão, além disso, compartilha seus ideais, seu entusiasmo, seu ânimo, sua fé, sua esperança.
Deus nos criou criadores. Ao multiplicar os pães, pede a colaboração de seus amigos. Também hoje Ele precisa de nossas mãos para multiplicar os grãos; precisa de nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.
O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo.
O pão sem coração gera divisões e conflitos. Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração!
Deus precisa de nosso coração para que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão, para que possamos comungar.
“Dá-nos o pão, o pão nosso de cada dia”. A oração tem sempre uma dinâmica comunitária, uma mística de fraternidade. Não podemos dizer “Pai nosso, dá-me meu pão”. Seria blasfemo. O pão é de todos os irmãos. Não se pode considerar algo tão necessário para a vida como próprio e exclusivo.
“Tu, Senhor, fizeste um dia chover pão do céu”
outro dia multiplicaste os pães, e outro dia Tu mesmo te fizeste pão.
São tantas nossas fomes. Dá-nos coração para repartir a herança de teu pão”.
(Revista Testimonio, n. 213)
Texto bíblico: Jo. 6,24-35
Na oração:
Não é possível reconhecer o Corpo do Senhor presente na Eucaristia se não se reconhece o Corpo do Senhor na comunidade onde alguns passam necessidades. Pois, se fechamos os olhos às divisões e às desigualdades mentimos ao dizer que Cristo está presente na Eucaristia.
Enquanto não nos mobilizamos a mudar nossa sociedade de maneira que mais pessoas aceitem a alegria de compartilhar o pão e a vida, faltará algo em nossa Eucaristia. Essa “ferida” o cristão deve sempre tê-la presente.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
01.08.2012
“Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os...” (Jo. 6,11)
17º dom. Tempo Comum
Do pão de trigo ou cevada para o pão do sentido de vida doada; do alimento de cada um para a circularidade do alimento partilhado, em pequenos grupos, sem templo, na gratuidade e frugalidade...
Este é o sentido do texto joanino, proposto para este domingo.
Longe do templo e das autoridades judaicas, seguido por uma multidão, Jesus sinaliza para uma Páscoa centrada na pessoa dele, aberta a um processo de partilha, comunhão e retorno de vida abundante para todos. O congraçamento de Israel, durante a festa da Páscoa, no Templo, é substituído pelo congraçamento em torno de Jesus, no lugar onde Ele estiver, com a multidão que o segue. Mas, enquanto a Páscoa no Templo favorece os controladores dele, a Páscoa em torno de Jesus favorece e engrandece a todos.
Naqueles vastos campos da Galileia, Jesus propõe a grande mesa da comunhão universal, a mesa “fora dos templos” que inclui a todos, sem distinção. O gesto da benção instaura o horizonte da partilha, em que as coisas são destinadas à necessidade de todos por meio da co-responsabilidade dos participantes no banquete da Criação, sobre cuja mesa Deus preparou pão em abundância para todos.
A comunhão bíblica se realiza entre os “distantes”, por meio de um gesto que não é de poder, mas de esvaziamento, não é de apropriação, mas de partilha, não é de fechamento, mas de abertura das mãos que acolhem, que distribuem...
A mesa da refeição se torna lugar de humanização do ser humano. Espaço de verdadeira reserva de humanidade. Muitos são aqueles que sabem abrir as mãos, partir o pão, saciar a fome do irmão. É nesse universo de mesa-refeição que o ser humano vai se autoconstruindo, autodefinindo como ser que é humano, mas também divino. Diviniza-se humanizando, humaniza-se divinizando.
Sentar-se à refeição com o outro é descobrir-se vivo, corpo pulsante, latente, carente.
Mas é também descobrir outro tipo de alimento, que só pode ser colhido na delicadeza da inter-relação, da inter-comum-união com o outro. “Eu não quero pão, eu quero fome” (Adélia Prado)
A mística da refeição, convida, convoca e se coloca na vida do ser humano como fator determinante de sociabilidade, de valores e equilíbrios sociais, enfim, de humanização. Nela e com ela aprendemos a acolher o outro como dom. Aprendemos a nos doar, a partilhar, a receber, a escutar e a falar, a contemplar o outro em sua singularidade. A mesa-refeição é também o lugar onde acolhemos a dor e as tristezas do outro, o lugar do suporte das relações, espaço que garante o sustento, que alimenta o corpo, o emocional, o psíquico, o espiritual e o social. Lugar fecundo, onde o imprevisível pode acontecer.
Seduzidos pela mística da mesa que nos santifica, religamos amizades, afetos negados, histórias esquecidas, fatos, compromissos...; a mesa congrega para celebrar as alianças restabelecidas; junto à mesa é inevitável a mudança de corações e vidas.
Modelada pelo ser humano, a mesa, ao mesmo tempo modela todo aquele que dela se aproxima; na perspectiva cristã, a mesa desperta em nós aquela sensibilidade e delicadeza de servidores, como Jesus teve, ao se prostrar com o avental, aos pés dos apóstolos para lavar-lhes os pés.
A mesa e a refeição foram o “areópago” do pão, dos afetos, dos desejos de relações livres, de compromisso, de justiça e de solidariedade vividos por Jesus durante sua peregrinação, passando de mesa em mesa, até se deixar também, numa mesa de refeição e de festa: a da sua Páscoa. Podemos dizer que a mesa tem um “quê” de mistério pascal, pois ela nos capacita para acolher o inesperado que vem: o “outro” em sua aflição, em sua fome, em sua dor. Então nela, o coração humano encontra repouso, alento, força e vigor para caminhar com sentido de viver.
Diferente de todos os outros evangelistas, os quais afirmam que a preocupação com a alimentação da multidão nasce dos discípulos, João diz que vem de Jesus. Ele se antecipa e questiona os discípulos. Enquanto a multidão se aproxima, Jesus já sabe o que ela busca e sabe também que resposta precisa dar. Na resposta de Filipe, representante dos discípulos, aparece a distância existente entre a novidade de Jesus e a prática da tradição.
Na Páscoa do Êxodo, as pessoas comem às pressas, em pé, pães sem fermento, cordeiro assado e ervas amargas, cingidos, para viajar imediatamente (Ex. 12,8-11). Nesta Páscoa, elas comem organizadas em grupos, sentadas na relva, tranquilamente, sem pressa, pães de cevada, o tanto que necessitam para ficarem saciadas, e ainda sobra muito, para o futuro.
Segundo João, enquanto Filipe justifica a impossibilidade de solução, André procura uma alternativa e se depara com cinco pães de cevada e dois peixinhos nas mãos de um menino. Filipe ocupa seu tempo e sua inteligência em buscar justificativas para o impasse e desculpas para não ser responsabilizado. André encara a realidade e se ocupa na busca de solução. Encontra um sinal. Há pão, é de cevada, não de trigo, é pouco, mas o menino, pessoa que está começando a vida agora, coloca à disposição.
Jesus é o primeiro responsável, mas quer partilhar com os seus. Isso exige a participação de todos. Ele toma os pães e dá graças. Nós, geralmente, só damos graças quando temos em abundância, porque, a nosso ver, é a abundância que significa graça. Jesus dá graças por cinco pães e dois peixinhos diante de cinco mil pessoas famintas. É a gratidão sobre o pouco que faz o muito. É pouco, mas é dom de Deus, e dom pode-se multiplicar, pois a graça partilhada tem alcance ilimitado.
Todos acompanham com atenção os gestos de Jesus: coração em ação de graças, olhos fixos, ao mesmo tempo, no pão enquanto o parte e na multidão ao seu redor. Primeiro dá graças à Fonte da vida. Segundo, contempla o pão, fruto da terra e do trabalho de muitos homens e mulheres, que deve ser partido e compartilhado. Terceiro, convida a repartir e... assegurar-se de que a distribuição é justa. Depois da ação de graças, o pão se multiplica, tem para todos, o quanto necessitam, e ainda sobra abundantemente. Quanto mais se partilha, mais se tem. A fome desse momento foi saciada, mas a vida continua. Jesus ensina como repartir, isto é, como as pessoas precisam ser umas com as outras. A abundância de alimento é graça de Deus, mas é igualmente empenho de cada pessoa e de todas juntas.
A Páscoa do pão sinaliza para a novidade do Reino inaugurado por Jesus. Em primeiro lugar, mostra que a vontade de Deus é abundancia de vida e isso se obtém com o pão necessário de cada dia. Em segundo lugar, evidencia que a garantia da abundancia está na partilha, e isso acontece com a participação de todos. Em terceiro lugar, ressalta que a partilha acontece quando há corresponsabilidade efetivamente solidária que leva a colocar, em comum, tudo o que cada um tem. Mas não termina aí; a Páscoa do pão sinaliza para a Páscoa da vida que se faz pão e do pão que permanece sempre.
Texto bíblico: Jo 6,1-15
Na oração: Descubra na sua mesa o seu pão; na sua jornada, o seu chão; no seu cotidiano, o inesperado que vem, o outro em sua fome, em busca de mãos abertas que saibam partilhar.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
27.07.2012
“Vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco” (Mc. 6,31)
É comum medir as pessoas pela sua capacidade de trabalhar, produzir. Por que não definir as pessoas pela sua capacidade de descansar? Só quem aprendeu a arte de descansar sabe trabalhar e relacionar-se com verdadeiro humanismo. “Diz-me como descansas e eu te direi como trabalhas e tratas os outros”.
O descanso humaniza o trabalho e o clima das relações que cultivamos com os outros. Descansar é, portanto, uma questão de justiça social, um imperativo de caridade fraterna. Muitas vezes os outros são obrigados a pagar a fatura do nosso cansaço, do ativismo em que nos envolvemos. Tornamo-nos “cansativos”.
Só quem vive reconciliado, em 1º lugar consigo mesmo, é que pode descansar como Deus manda.
O descanso não é uma fórmula mágica de relaxação dos músculos e nervos, uma receita automática de ritmo biológico. É sobretudo um modo construtivo de encarar a vida, um clima de paz interior que se cultiva, um coração disposto a amar em todas as estações, sem condições nem fronteiras. Não se trata de ociosidade egoísta, mas do cultivo da paz e da alegria, ao serviço dos outros.
Na sociedade contemporânea, o trabalho invadiu também o domínio do lazer e do tempo livre; estes devem ser, acima de tudo, “produtivos”. Para muitos, para tirar o máximo proveito do “tempo livre”, é preciso planejá-lo e organizá-lo. Férias e fins-de-semana são admitidos não como um fim, mas simplesmente porque aumentam a produtividade. O excesso de “stress” é inimigo do bom desempenho.
A própria palavra “entretenimento” indica o desejo de não parar. É a busca de algo que nos distraia para que não possamos estar totalmente presentes. A diversão nos mantém na superfície de nós mesmos, evitando o confronto com as grandes questões da vida (medo de confrontar-nos com as questões vitais de nossa existência; medo de deixar aflorar situações não resolvidas ; medo do contato com o que é essencial na vida...).
A pergunta que as pessoas fazem no descanso “o que vamos fazer hoje?”, já vem marcada pela ansiedade. E sonhamos com longevidade quando não sabemos o que fazer numa tarde de domingo. É altamente significativo que a Sagrada Escritura, logo no início do Gênesis, nos apresente Deus a descansar dos trabalhos da Criação (Gn. 2,2-3).
Repousar é uma invenção que tem a marca do próprio Deus Criador, uma ocupação digna de Deus, sumamente útil. O preceito do repouso sabático do povo de Israel é um ponto fundamental da aliança entre Deus e o povo eleito (Ex. 31,13). A Carta aos Hebreus sublinha que Deus vive no “descanso eterno”. A infinita solicitude de Deus por toda a humanidade é exercida com suma paz e serenidade, em clima de dinâmico descanso.
O descanso é fundamental para a afirmação de Deus como o Senhor de todos e de toda a criação. O sábado faz cessar os trabalhos cotidianos e conceder uma folga. É um dia de protesto contra as servidões do trabalho e o culto ao dinheiro. É necessário dar ao descanso a força de transformação e de profecia da meta última que nos espera, ou seja, o “repousar de nossos trabalhos” em companhia das obras realizadas com o Senhor.
Por que não encarar os tempos de descanso neste mundo como uma antecipação e um ensaio do descanso eterno, do repouso amoroso em Deus, que continuamente age para o nosso maior bem? Viver na presença de Deus é caminho certo para viver descansado.
“Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em Ti” (S. Agostinho)
Todo esforço precisa seu descanso, toda atividade pede uma parada. Não há tensão que não exija um relaxamento, nem atividade continuada que não peça uma recreação. Os cansaços acabam nos revelando que em nossa vida ativa estamos amputando certas dimensões do humano. Assim, o descanso, em seu sentido nobre, impede que nos convertamos em meros trabalhadores estressados; ela nos arranca de nossa existência maquinal.
É sintomático o fato de recorrermos frequentemente ao uso da linguagem da máquina para expressar o que buscamos com o descanso: “desconectar”, “tirar da tomada”, “recarregar a bateria”, “recuperar a energia”, “abastecer o motor”... Sutilmente, expressamos deste modo como nos percebemos em nossa realidade cotidiana e até que ponto estamos suportando níveis intoleráveis de saturação, de ativismo...
Devemos buscar, em cada circunstância, fazer do descanso uma ocasião de subversão de valores, de questionamento de nossa prática cotidiana, de enraizamento de nossa missão... enfim, de vivê-lo à maneira de Jesus Cristo.
Segundo o evangelho de hoje, as jornadas de Jesus nos evangelhos parecem ser muito esgotadoras: muitos enfermos lhe são apresentados para que os toque e os cure, são muitas as pessoas que se aproximam para escutá-lo, é cobrado em todos os lugares por onde passa, os conflitos com os fariseus... Jesus sentia os cansaços e as pressões, mas ao mesmo tempo sabia fazer “paradas” para recuperar as forças, para retomar o contato com o sentido de sua vida e de sua missão, para ser Ele mesmo.
Ele possuía uma lucidez que proporcionava uma visão profunda das coisas, no clima de uma paz sempre buscada. Para Jesus, o descanso, entre outras coisas, era um momento de restauração e reabilitação pessoal que lhe permitia mergulhar de novo no cotidiano com maior criatividade.
“Vinde sozinhos para um lugar deserto...” O descanso não é uma “des-conexão” , senão uma “conexão” com aquilo que é o impulso fundamental de nossa vida cotidiana. O descanso possibilita afastar-nos do rotineiro e nos faz caminhar ao deserto interior, onde podemos dirigir um olhar contemplativo sobre a vida cotidiana. Nele nos desprendemos do presente e de sua urgência tirana.
Por mais descansos que tenhamos, há cansaços que só se aliviam através do encontro consigo mesmo, e há descansos que só se conseguem quando nos reconciliamos com o que somos e vivemos. No deserto nos personalizamos, resgatamos nossa identidade; nele temos a chance de ver a realidade sem instrumentalizá-la, gratuitamente. E só no gratuito é que descansamos.
O descanso nos conserva humanos; ele ajuda a recuperar um ritmo de vida mais humanizante (recupera a pessoa e sua capacidade de estabelecer relações gratuitas com outras pessoas, com a natureza e seus ritmos...). Não basta simplesmente poder folgar; ter acesso ao verdadeiro descanso é recuperar o sentido da gratuidade das nossas atividades e que melhoram a vida e a convivência.
O descanso inspira, nos faz criativos, porque toca as profundezas de nós mesmos e das atividades rotineiras. “Viver descansadamente” é encontrar um descanso, uma paz interior, uma quietude, uma consolação, uma satisfação na vida e nas atividades, e que tem sua raiz na comunhão com Deus que trabalha e descansa. A vida do “contemplativo na ação” é uma vida ativa vivida “descansadamente”, ou seja, na presença de Deus, com o coração centrado n’Ele, fazendo somente Sua Vontade...
Texto bíblico: Mc. 6,30-34
Na oração:
“Descansar é uma arte. Viver descansadamente, uma arte ainda mais delicada” (J.A. Guerreiro)
- seu descanso: tempo de humanização ou mais um stress na sua agenda?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
15.07.2012
“Se você não mover os pés, não reconhecerá o ritmo da vida”
A palavra “caminho” concentra em si uma das mais profundas experiências do ser humano, revela uma das experiências mais primitivas na sua arte de viver. Viver é caminhar. Em nossas entranhas, fomos feitos com “fome de estrada”. Nascemos com essa inquietude: nossa vida é uma longa jornada. “Temos fome e sede de estrada, e ela está ardendo por dentro”.
Qual é o caminho da vida? É a própria vida, ou seja, o modo como se vive constitui o caminho da vida ou a vida como caminho; isso revela que cada ser humano é essencialmente “viator”, é um caminhante; ele não recebe a existência pronta; não possui ainda a vida em plenitude.
Mais importante que percorrer um caminho é “fazer caminho”. Percorrer um caminho é andar por sendas abertas por outros e já palmilhadas pela tradição. O risco é menor e a certeza mais consistente.
Abrir caminho é explorar o desconhecido, enfrentar perigos e correr riscos. Isto constitui o “meu caminho” e a “minha direção” na vida. Não se trata mais de um caminho como algo já feito e construído do qual fazemos uso; trata-se de um caminhar, ou seja, auscultar e seguir os apelos que emergem do coração da própria vida. Nosso caminho pessoal tem de ser desbravado com criatividade, ousadia e destemor. Fazemos o nosso caminho a partir de um centro que é nossa individualidade irrepetível, nossa personalidade. Em outros termos: nunca haverá um simples uso de um caminho feito por outros. Cada um tem de caminhar. Cada um tem de ser caminho.
“Não tenho caminho novo. O que tenho de novo é o jeito de caminhar” (Thiago de Mello).
A Sagrada Escritura é atravessada pela revelação de um Deus que também empreendeu um caminho em direção à humanidade. O ser peregrino, por parte do ser humano, corresponde ao ser peregrino por parte de Deus. O caminho se converte, então, em caminho para um encontro mútuo, um encontro de dois peregrinos.
Também o cristianismo sempre foi entendido como Caminho e Seguimento de Jesus Cristo. As diferentes espiritualidades são compreendidas como caminhos dentro do único Caminho que é J. Cristo. Os Evangelhos, portanto, não ensinam chegadas, só partidas. Esse é o desafio: “entrar” no caminho de Jesus é viver em terra de andanças. É a pura alegria de caminhar e nesse caminhar a vida desabrocha como verdadeiramente humana. Nesse caminhar descobre-se Deus e com Ele todo o sentido do universo.
Guimarães Rosa dizia que a coisa não estava nem na partida e nem na chegada, mas na travessia. A experiência do seguimento de Jesus é “experiência de travessia”, onde cada um constrói seu caminho diferente, original, não-normal... como Cristo.
No seguimento de Jesus não há caminho, mas caminhos; não há traçado comum, mas trajetórias diferentes, ainda que confluentes. São caminhos de cristificação.
Jesus, o Homem dos Caminhos, chama para uma Vida nova. Chama na vida e para a vida e põe as pessoas em movimento, a caminho. A “pegada” que Ele deixa ao passar é sua própria Vida partilhada.
Jesus é o homem que se definiu. Ele tem um sonho, um projeto. E surge diante das pessoas com força pessoal capaz de sacudilas e colocá-las em movimento. Ele “passa” e sua presença as atrai arrancando-as da acomodação. Faz-se do chamado um caminho, quando se partilha a vida com quem chamou. Responder ao chamado feito por Jesus significa tornar esse chamado um caminho de entrega e de serviço.
O Evangelho de hoje (15º domingo do Tempo Comum) confirma que a missão requer andanças. A forma de realizar a viagem identifica o discípulo como representante do Reino. A disponibilidade para colocar-se em marcha deve ser total, imediata e sem distrações. Não há nada imprescindível para o trajeto senão a vontade de executar o percurso; as autênticas necessidades estão do outro lado do caminho, de maneira que Jesus nos mobiliza na atitude do despojamento como estratégia que evita o imobilismo e a lentidão do deslocamento.
“Nada para o caminho” favorece a fixação unicamente no propósito fundamental da marcha. Há uma exceção: “um cajado somente”. O cajado exclui, neste contexto, qualquer significado associado a mando, violência, poder, direção. A necessidade do cajado adquire sentido por sua relação ao caminho e por sua condição de símbolo do caminhante. O cajado identifica o discípulo em sua missão itinerante e repele a sedução do sedentarismo.
Os convites de Deus são absolutos e constantes. Se estamos apegados ao que temos, jamais seremos capazes de “fazer estrada com Deus” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece.
Pioneiras são as pessoas que vão a lugares em que ninguém esteve antes: “gente de fronteira”.
“Peregrino, peregrino, que não sabes o caminho: aonde vais? Sou peregrino de hoje, não me importa onde vou; amanhã? Nunca talvez. Admirável peregrino, todos seguem teu caminho” (Manuel Machado).
Na estrada do peregrino, há o despojamento, a pobreza, por vezes a fome e a sede, os caprichos das estações, a incerteza dos dias de amanhã. Há a liberdade do espírito, horizontes infinitos, sem limites nem constrangimentos, os ímpetos de adoração, de oblação, de ação de graças. Há o imprevisto, o acontecimento inesperado, favorável ou adverso, que é o melhor e mais seguro dos sinais de Deus, que comanda o ritmo da marcha, as paradas, as estadias, as partidas, as mudanças de rumo ou itinerário. Há o encontro com “fiéis e infiéis”, companheiros que só por algum tempo “seguem caminho”, ou companheiros que se mantém fiéis, amigos que ajudam, inimigos que espreitam, gatunos que roubam, pobres que compartilham o mesmo pão.
Quando compartilhados, os caminhos transformam os caminhantes. As pessoas aprendem a se desfazer do supérfluo, a acelerar ou retardar o passo, a partilhar dramas, a ouvir e a falar, a experimentar a humildade de pedir acolhida... Enfim, achegar-se ao próprio coração.
Finalmente, a Estrada aproxima o peregrino cada dia, a cada instante, da meta ainda escondida, mas certa. Ao voltar-se para trás, ele se dá conta de que o itinerário foi realmente maravilhoso, que a experiência o transformou, que está mais “puro”, mais “livre”, mais “autêntico”... numa palavra, que Deus, que está no têrmo, já palmilhava a Estrada com Ele.
Textos bíblicos: Mc. 6,7-13
Na oração: Jesus das estradas poeirentas
“Dá-me percorrer contigo, Senhor, tua terra de andanças. Dá-me seguir-te a Ti somente.
Tu passaste deixando tuas “pegadas” no pó da estrada, e sem perguntar “por que” muitos te seguem. Vás sem nada, peregrino, caminhando qual romeiro; e vás chamando seguidores, que te seguem sem nada levar. Quem se atreve a pisar descalço tuas pegadas, sempre em marcha? A cidade não é teu caminho, é dura para as tuas sandálias. Gostas de deixar na terra a marca de tuas pegadas.
Senhor dos Caminhos, que tiras as pessoas da segurança, das suas casas, de seus bens... e as atrai para seguir teu passo, feito atalho estreito, um convite para ir onde quer que vás.
Quero ser caminhante, de coração pobre e livre, feito tenda aberta em teu chamado. Amém!”
- Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a buscar dentro de nós mesmos a razão da nossa existência: falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...
- No “mapa espiritual” de nosso interior ainda existe uma “terra desconhecida”, que proporciona interesse à vida, suscita curiosidade, nos põe a caminho... Grandes surpresas interiores estão à nossa espera, e a capacidade de continuar procurando é que dá sentido ao esforço e vigor à vida.
- A nossa vida é um êxodo, um sair constante de uma realidade para entrar em uma outra realidade nova.
O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
11.07.2012
“Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares” (Mc. 6,4)
Jesus Cristo continua a nos surpreender enquanto referência inspiradora da grande ousadia humana. Ele fez brilhar a “novidade” de Deus nas vilas e cidades da Palestina. Desde seu cotidiano na vida oculta até sua corajosa atividade pública, Ele nos ajuda a reler o Evangelho com olhar novo e coração abrasado. No encontro com as pessoas, com os conflitos, com os momentos de alegria e com os riscos de sua missão, Ele mostra vigor e coragem de ir além.
Sua postura de mestre e sua atuação desencadeiam no seu povo uma crise, ou seja, rompe com a “normalidade doentia” das pessoas e se revela imprevisível e desconcertante. Na realidade, o ser humano tende a instalar-se, acomodando-se facilmente ao conhecido e se deixando levar pela rotina que evita sobressaltos; isso lhe confere uma certa sensação de segurança e tranquilidade: “para quê e por quê mudar...?” E isso ocorre também com suas ideias, crenças, cosmovisões...
Habituado a ver a realidade a partir de uma determinada perspectiva, custa-lhe abrir-se a outras percepções, novas ou desconhecidas. A crise que Jesus introduz entre os seus visa redimir o ser humano, isto é, tirá-lo de seu horizonte limitado e estreito para elevá-lo a um horizonte amplo, próprio de Deus.
A crise irrompe quando os dois horizontes se entrechocam. Jesus proclamou uma mensagem que constituía uma crise radical para a situação social, religiosa, política e humana da época. Proclama o Reino de Deus.
No Evangelho de hoje, Jesus provocou, por suas atitudes e palavras, um cisma nos seus conterrâneos, isto é, produziu uma crise que levou a uma ruptura-decisão pró ou contra Ele. Jesus é realmente a crise do mundo. Ele veio para provocar uma derradeira decisão das pessoas pró ou contra Deus, agora manifestado em sua pessoa, em seus gestos e em suas palavras.
Ele não foi simplesmente a doce e mansa figura de Nazaré; foi alguém que tomou decisões fortes teve palavras duras e não fugiu a polêmicas.
O relato de hoje é surpreendente. Jesus foi rejeitado precisamente pelos seus parentes e familiares. É a primeira vez que Ele experimenta uma rejeição coletiva, não dos dirigentes religiosos, mas de sua comunidade familiar, com quem convivera tanto tempo. Jesus se sente “desprezado”: os seus não o aceitam como portador da mensagem profética de Deus. Por isso, fecham-se em sua ideias preconcebidas a respeito do seu vizinho Jesus e resistem a abrir-se à novidade revolucionária de sua mensagem e ao mistério que se revela em sua pessoa. Porque estavam acostumados a ouvir sempre o mesmo, rejeitam-no por ensinar “coisas novas”.
Mas Jesus não se deixa domesticar e nem se acomoda às expectativas de seu povo. Aos olhos de Jesus nada é mais perigoso para o espírito humano do que vidas satisfeitas, que não investem seu tempo alimentando sonhos e esperanças; mentes sem inquietações, sem o impulso das buscas; corações quietos, acomodados, ajustados, medrosos, covardes, petrificados, sensatamente contentes com aquilo que são e têm.
Há uma “normalidade doentia” que reprime a nobreza potencial no humano. Para Kierkegaard, “ser um homem normal é ser doente”. Há uma saúde fictícia, caracterizada pela ausência de um sentido maior, pela atração ao conformismo coletivo, pelo medo de expor-se, de arriscar-se a ser... pela incapacidade de assombrar-se diante dos acontecimentos e encontros cotidianos. “Tudo torna-se tão normal... e sem sal”; nada afeta, nada causa admiração ou espanto.
Vida morna, sem sabor, sem criatividade; incapacidade de transfigurar a existência cotidiana. Aliado ao conformismo e à segurança aparece o medo da mudança. A pessoa fecha-se no conhecido por medo do desconhecido. Marcada pela “normose”, ela fica presa no interior de uma pequena toca.
Para quem não está disposto a ousar transparecer, a prisão da toca pode ser mais atraente do que o desconhecido proporcionado pela liberdade. “Em uma cabeça com medos não há espaço para sonhos”.
O medo das trilhas criativas da originalidade gera hábitos fechados, ideias fixas, conservadorismo, rotina sem sentido, ações insensatas (sem sentido, mecânica, automática, sem novidade...); sabe “fazer” mas não sabe “criar”; faz o que os outros mandam e faz bem, mas sem paixão, sem emoção, sem inspiração...; é perfeccionista, para satisfazer as expectativas dos outros e não ser criticado... Por não viver a partir do interior, a pessoa deixa de ter horizontes, de sonhar, de desejar...; tem medo de fazer a “travessia” pois não tem direção, não tem projeto. Daí o desânimo existencial.
O desafio é este: ousar ir além ou se conformar, evoluir ou estagnar, ser original ou mero repetidor...
Existe em nós um desejo de plenitude e, ao mesmo tempo, o medo de arriscar, a pulsão de vida e a pulsão de morte. A normose está relacionada com a pulsão de morte. É a estagnação ou morte do desejo, impedindo o fluxo da vida.
Somos convocados a existir, a trazer uma novidade, um canto novo, uma dança nova... Não nascemos para morrer, nascemos para ser. O ser humano é um ser do caminho; cada um se tornará um ser plenamente humano à medida que investir as reservas de criatividade presentes no próprio interior.
Se a pessoa for capaz de escutar o desejo profundo que a habita e atravessar os medos paralisantes, alcançará uma identidade pessoal, ou seja, a capacidade de ser ela mesma. Isto significa romper com os padrões que atendem às expectativas dos outros, transgredindo com o legalismo e o moralismo impostos a partir de fora.
Os “não-normóticos” são aqueles que fazem a experiência da “outra margem”, vislumbram o outro lado, vão em busca das surpresas, das novas descobertas, tocam as raízes mais profundas do próprio ser.
É preciso sair dos trilhos conhecidos e viciados da normose para tomar as desconhecidas e criativas trilhas evolutivas, nas quais o ser humano enfrentará seus medos e florescerá com vigor e ternura; urge fazer o êxodo da estreiteza de nosso ser à largueza do coração.
É uma grande aventura tornar-se humano, sujeito da própria existência, ser dotado de um semblante único e assumir a direção dos próprios passos, realizando assim, a aspiração profunda de seu coração. O novo sempre vem e sempre nos surpreende. E o risco é a essência de uma vida espiritual integrada. O risco fortalece, revitaliza, faz fluir a adrenalina através da corrente sanguínea de nossa vida, faz com que de novo mereça a pena viver a vida.
Como são humanamente repletos de vida aqueles que ainda se encantam com as buscas! Sua vida é penosa, sem dúvida, mas repleta de razões, fervor, criatividade, entusiasmo e vitalidade. O ser humano é um eterno enamorado de esperanças, um ousado, um contestador de tudo.
Ousar também tem a ver com “transgredir”. Nós cristãos seguimos Aquele que é considerado o maior “transgressor” da história: Jesus Cristo.
Como o próprio Jesus, precisamos cultivar a arte de transgredir a inércia, o “pensamento único”, a normalidade petrificada. Há sempre um “mais além” com que podemos sonhar. Transgredir é transcender, é abrir estradas fechadas, é alargar horizontes estreitos, é soltar os desejos algemados.
Transgredir é inventar alternativas. E ousar é transgredir em favor da humanidade.
Texto bíblico: Mc. 6,1-6
Na oração:
Dar nomes às normoses presentes na sua vida.
“Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?” (foi criativo, inventivo...)
- O que asfixia, tira a criatividade e o ânimo nas atividades assumidas no dia-a-dia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
03.07.2012
“Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que tu ligares na terra...” (Mt. 16,19)
O texto nos ajuda a ler nossa vida. Afirma-se nossa identidade; e a identidade de uma pessoa é dada por aquilo que é sólido, consistente... no seu interior, que não se desfaz com as adversidades do mundo no qual vivemos (crises, fracassos...).
Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. A própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem, para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis golpes da luta pela vida. É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser.
A oração é a chave interior que faz a pessoa chegar até o próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de si mesma, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde a pessoa mergulha no silêncio, à escuta de todo o seu ser.
Temos em nossas mãos as chaves da vida. O que fazemos com elas: podemos abrir ou fechar, ligar ou desligar, atar ou desatar.... Ter a chave da vida: abrir ou fechar as portas do futuro, das relações, dos sonhos, da missão... Dar direção à vida. Atar e desatar os nós da vida.... Aqui está o grande desafio: abrir-se ou fechar-se. Abrir-se à vida, ao novo, ao outro, ao desafiante ou diferente... ou fechar-se...
Deus confiou e colocou em nossas mãos a chave da vida. Ele não impõe, não obriga. Corre o risco de criar-nos livres. Aqui está a grandeza do ser humano: optar por uma vida aberta ou fechada, ser nó ou desatar, ligar ou desligar, expandir ou retrair... Sempre há o perigo de construir, dentro de nós, um condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem, segredos são esquecidos... e, com isso, mergulhamos na mais profunda solidão.
Pior ainda é quando confundimos o “poder das chaves” com a “chave do poder”. Quem tem a chave tem o poder. “Ter poder”: esta expressão ecoa forte no coração humano. O poder deslumbra, ofusca e pode facilmente se tornar o centro da identidade de uma pessoa. O poder é objeto de desejo de extraordinária magnitude e fascínio para o ser humano. Seu brilho encanta e seduz; sua proposta é extremamente atraente; para muitos, ele é a suprema ambição. Não há ser humano que não tenha sido tentado pelo canto desta sereia.
O coração humano sofre ao ver-se dominado por este desejo de poder que intoxica suas aspirações mais profundas de comunhão e solidariedade. A vida se torna uma arena de disputas. Talvez não exista relação mais ambivalente que aquela existente entre a pessoa e o poder. Os relacionamentos são balizados, tanto no espaço institucional como nos encontros interpessoais, pela disputa do poder; o exercício do poder se expressa nas atitudes de dominar, manipular, subjugar e definir tudo segundo os próprios interesses.
A perversidade do coração humano encontra no exercício do poder o campo mais propício para a revelação de suas mazelas, autoritarismos, vaidades... Em nome do poder gera-se a morte, a divisão, a solidão.
Nenhum exercício do poder é evangélico. Não há nada mais contrário à mensagem de Jesus que o poder. Jesus não transfere “poder” a Pedro; reforça nele a liderança para o cuidado e o serviço aos outros. Nenhum ser humano é mais que outro, nem está acima do outro. “Não chameis a ninguém de pai, não chameis a ninguém chefe, não chameis a ninguém senhor, porque todos vós sois irmãos”. A única autoridade que admite é o serviço. Jesus não exerceu poder porque o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano (seja poder político, religioso, ou qualquer outra expressão de poder).
Jesus despoja-se do poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”. Sua autoridade é caminho para o serviço e a promoção da vida. Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que domina ou a liderança que se impõe. Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir.
Quem tem “poder”, ao contrário, o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, decide pelo outro... A palavra “autoridade” vem do verbo latino “augere”, que significa literalmente: aumentar, acrescentar, fazer crescer, dar vigor, robustecer, sustentar, elevar, levantar o outro, colocá-lo de pé, impulsioná-lo para frente... É a qualidade, a virtude e a força que serve para apoiar, para alentar, para ajudar as pessoas a serem elas mesmas, para fazê-las crescer, desenvolvendo suas próprias potencialidades.
“Autoridade” significa recuperar a autoria, devolver a autonomia àquele que está impedido de optar e de fazer seu caminho. Nesse sentido, a autoridade nunca é perigosa para a pessoa, jamais é imposição ou atentado contra sua legítima autonomia ou liberdade. A autoridade é essencialmente amor.
Também o exercício da autoridade deve ser medido pela palavra e pela obra de Jesus Cristo. E não pode ser de outra maneira, já que, se a origem da autoridade na Igreja é divina, também deveria ser “divina” o modo de exercê-la. Se toda autoridade provém de Cristo, deveria ser exercida à maneira como Cristo a exerceu, e isto vale tanto para aqueles que detém uma autoridade instituída como para aqueles que, devido às suas qualidades e carismas, exercem, de fato, autoridade de serviço nas comunidades cristãs.
Neste “como” se exerce e deve ser exercida a autoridade na Igreja está o desafio que as comunidades cristãs devem assumir. O Evangelho de hoje é claro quanto à maneira como se deve exercer a autoridade: a partir do serviço. Aquele que serve não domina, convertendo-se no centro, mas anima e integra o diferente. Aquele que serve, despoja-se de seus interesses privados e investe sua vida em benefício de todos.
Isto significa que todos aqueles que exercem a autoridade hão de voltar sempre ao manancial de onde brota o autêntico ser da Igreja, que é a palavra e a ação de Jesus. Não deve existir autoridade na Igreja que esteja por cima da ação do Espírito; ela não deve buscar outra coisa a não ser a vinculação de todos os membros da Igreja no amor e no serviço mútuo. Uma autoridade que se desvincula do “carisma de autoridade” do Espírito tende sempre a converter a instituição em um fim, esquecendo que só pode ser justificada na medida em que serve à obra do Espírito.
A autoridade deve ser exercida no marco da visão de Igreja que o Vaticano II nos deixou, ou seja, potenciar a comunhão. É urgente que o exercício da autoridade na Igreja vá assumindo os traços característicos de uma Igreja de comunhão, se queremos ser fiéis ao “modo de proceder” de Jesus.
Texto bíblico: Mt. 16,13-19
Na oração: Muitos caminhos conduzem à própria interioridade. A oração é a chave de acesso; ela é esse silencioso exercício de deixar que Deus me habite para que eu possa abrir as portas do coração e janelas da mente àqueles com quem me encontro.
Onde o Deus de Jesus tem liberdade de atuar, ali desaparece todo resquício de poder que desumaniza.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
26.06.2012
“João é o seu nome” (Lc. 1,63)
Esta frase é uma mensagem da gratuidade e bondade de Deus. João é um nome muito especial. Nele são guardadas muitas e importantes lembranças. De fato, o nome “Yohanan” significa “Deus se mostrou misericordioso”. João é um dom gratuito de Deus, pois está além dos cálculos humanos; por isso, pertence plenamente a Deus. Nem sempre Deus elege o tradicional, o velho costume, o caminho trilhado. Agora nasce um tempo novo: o Espírito vai por caminhos novos, que nem sempre são fáceis de conhecer.
É Deus quem toma a iniciativa e chama pelo nome. O “nome” encerra toda a verdade da pessoa e, ao mesmo tempo, todo o mistério da sua relação direta com Deus. Na Bíblia, o nome é algo dinâmico, é um programa de vida. A troca de nome implica uma missão que deve ser realizada pela pessoa (Gen, 17,5; Jo. 1,42). Um nome novo: uma aventura que começa; uma história a ser construída. O nome é ponto de partida e de chegada na relação com Deus.
Quando Deus nos chama à vida, Ele não revela logo tudo o que quer: apenas pronuncia o nome. A Palavra de Deus pronunciada sobre cada um de nós revela a nossa verdadeira e plena identidade. É preciso crescer na consciência de que o próprio nome tem uma história e manifesta uma identidade única, irrepetível, original. O nome próprio está relacionado com nossa realidade pessoal, responsável, criativa e livre. Essa identidade vai sendo elaborada ao longo de nossa história pessoal com os avanços e recuos, vitórias e fracassos, as alegrias e os sofrimentos... que vão pontilhando nossa existência e formando esse ser único que somos nós.
Cada um de nós descobre ser chamado em nossa vida. O fato de sentir, em nossos desejos, que estamos insatisfeitos, cultivar aspirações sempre novas, procurar entender quem somos, o que devemos fazer, o que nos torna realmente felizes..., no fundo é um contínuo chamado pelo nome.
Deus pede a cada mergulhar no “fluxo da vida”, evitando deixar que uma só das Suas palavras, do Seu chamado, possa cair no vazio. A dinâmica da relação com Deus passa através da minha história, das minhas alegrias, dos meus sofri-mentos, e das minhas perguntas: “Quem sou eu?”, “O que quereis de mim?”. Não posso permanecer indiferente. É preciso ter coragem de perguntar: “Quem me chama?” e “a quê me chama?”; pedir ajuda para conseguir entender, reconhecer, descobrir o próprio nome. Deus, no momento em que me chama pelo nome, me revela a mim mesmo. Assim, meu nome se torna a minha própria vida, o meu patrimônio existencial, a minha realidade.
A palavra “nome”, na linguagem bíblica, significa aquilo que torna a pessoa única. O nome é um símbolo que exprime a individualidade de cada um. No nome está toda a pessoa. O nome é a pessoa. Interessar-se por conhecer o nome é interessar-se pela pessoa; é o primeiro passo para o encontro pessoal; é pelo nome que nos identificamos. Os orientais, por exemplo, não dizem o seu nome a qualquer um. Só aos amigos, aos seus mais íntimos. Conhecer o nome de alguém, para eles, é conhecer a pessoa toda. Fazer saber o seu nome é prova de amizade.
Cada um de nós tem um nome, que é próprio, não comum. É de uma pessoa. Ele expressa o nosso ser, indica alguma coisa a realizar, uma vocação, um apêlo a responder.. Somos chamados. É isso que significa ter um nome. Nós realizaremos nossa vocação, sendo nós mesmos, com nosso modo de ser, nossas possibilidades, nossa originalidade. Ninguém a realizará por nós. Ser fiel ao nome é ser fiel à própria vocação.
Um nome, quando ouvido pela primeira vez, é apenas um “nome”. Mas, na medida em que se convive com a pessoa, o nome se torna a essência da pessoa, revela algo de essencial. No nome se espelha a experiência de uma força e de uma vontade. Pronunciado o nome, evoca-se a profundidade, o ser.
O nome é referência reveladora da verdade da pessoa. É a porta de entrada de cada história particular. Nos nossos encontros, no primeiro dia, carregamos todos um crachá com o nome. Nós chegamos e procuramos a pessoa pelo nome escrito no crachá, até encontrá-la. Na hora em que a encontramos, nós não olhamos mais o crachá, mas levantamos a cabeça e olhamos o rosto. E o nome que, antes, era só um nome, torna-se agora a janela de um rosto, a revelação de uma pessoa. Na medida em que se aprofunda a convivência com a pessoa, maiores serão o significado e a densidade do nome dela.
Quando um nome é pronunciado, ou invocado, a “energia potencial” existente é transformada em “energia vital”. Basta dizer o nome e uma realidade pessoal se coloca diante de todos. Há nomes que geram recordações, saudades, reavivam sentimentos, atualizam propósitos, despertam compromissos. Esta é a razão quando se diz que alguém “tem nome”, ou seja, uma pessoa “de nome”. Por outro lado, “sujar o nome” significa prejudicar o caminho de alguém, com maledicências e mentiras. Zelar pelo próprio nome é abrir caminhos para encontros que efetivem a experiência de pertença e de sólida referência a Deus. Honrar o próprio nome é tornar-se servidor, pela conduta, da experiência da fé.
É preciso cair na conta de que tenho um nome, sou pessoa única e com características muito particulares. Eu tenho uma dignidade imensa: sou imagem e semelhança de Deus. Com essas características eu devo me colocar a serviço dos outros. Meu nome secreto, Deus o conhece!... “Eu darei... um nome novo, que ninguém conhece senão aquele que o recebe” (Apc. 2,17).
Deus sabe o meu nome: “Eu te gravei na palma de minha mão” (Is. 49,16).
Deus nunca pode olhar Sua mão sem ver o meu nome. E o meu nome quer dizer: “EU mesmo”. Deus garante a minha identidade: posso ser eu mesmo.
Deus investiu-se a Si mesmo em cada um de nós. Colocou-se no coração de cada um de nós. Ter recebido um nome de Deus significa tomar um lugar na história, uma missão a cumprir.
Texto bíblico: Lc. 1,57-66
Retorna ao preciso momento em que Deus-Pai te criou e escuta, o nome que Ele pronunciou sobre ti. Como te chamou neste momento?
Agora, sabendo o que Deus-Pai pensa de ti, poderias descobrir o teu nome? A tua identidade? Quais os teus “sinais digitais divinos”?
Que resposta darias de ti mesmo, agora, se um repórter te entrevistasse e te perguntasse: “Quem és tu?”
O que colocarias na tua carteira de identidade que te diferenciasse de todas as outras pessoas?
Quais seriam os teus sinais digitais mais originais?
Ser “João” é ser graça amorosa de Deus na vida e na história de tantas pessoas.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
19.06.2012
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