“”Anunciava-lhes a Palavra por meio de muitas parábolas...” (Mc. 4,33)
Retomamos o tempo litúrgico chamado “Tempo comum”. Cada tempo, cada dia, cada mês... com sua originalidade, novidade e surpresa, chamando-nos a fazer a travessia para descobrir o sentido da existência escondido na apressada rotina do cotidiano. Vivemos no tempo e desejamos a eternidade.
Para compreender o tempo de cada coisa e dar respostas ao que a vida pede e espera de nós, a liturgia nos faz mergulhar na luz da Palavra. A Palavra se faz tempo e se aproxima de nós, criando pontes, horizon-tes, chegando a lugares jamais imaginados ou tocados por nós. É no encontro com a Palavra revelada que brotam palavras criativas, carregadas de esperança e de sentido. Por que será que o Criador usou da Palavra para dar início à Criação? Quê mistério e força contém a palavra para merecer tanta exclusividade diante da Encarnação do Filho de Deus? (“E a Palavra se fez carne...” – Jo, 1,14).
“Nós somos palavras”. Temos respirado e respiramos palavras desde que nascemos. Basta abrir a boca que as palavras jorram. Povos de todos os tempos e lugares sempre chamaram a atenção para o vínculo que existe entre as palavras e a vida. Conhecemos expressões comuns que demonstram a força e o peso da palavra: “as tuas palavras me fizeram bem”, “me fizeram pensar”, “me feriram”, “me ajudaram a ver as coisas de maneira diferente”, “eu esperava essas palavras”, “eu precisava daquela palavra”, “nunca me esqueci das tuas palavras”, “agradeço pelo que você me disse”, “bastou-me aquela palavra”, “a tua palavra foi diferente”...
Muitas vezes, o presente mais precioso que podemos dar a uma pessoa é o de uma “palavra diferente”.
O futuro de uma amizade rica e enriquecedora depende daquela palavra.
As palavras promovem a circulação dos pensamentos e sentimentos com os quais as pessoas revelam a si mesmas, se expõem e se propõem ao encontro, dando a cada uma a possibilidade de semear em outros aquilo em que ela crê e ama. Um “falar-semear” que é o sentido belo do viver.
A amizade, o amor e todos os sentimentos fortes, tem necessidade de palavras. Esta é a nossa vida. Somos feitos para a comunhão, para unir as nossas vidas. É graças à força das palavras que derrotamos o silêncio angustiante da solidão, derretemos o gelo da indiferença, aprendemos a partilhar o ser e o ter. De modo particular os poetas, os amantes, os místicos e os filósofos perceberam, desde sempre, a força e a sedução da palavra.
Não possuímos nada que tenha, ao mesmo tempo, o poder e a leveza das palavras. As palavras podem mudar a vida, para o bem ou para o mal. Há palavras que ferem e há palavras que curam. Há uma palavra que constrói e uma que destrói uma palavra que comunica calor e luz, outra que semeia frieza, uma que infunde confiança, outra que o arrasa...
As palavras nos tocam e nos modelam; às vezes, elas nos tocam como brisa suave, às vezes como punhais, mas sempre nos deixando marcas profundas de estímulos ou de desânimo: sentimentos de alegria ou tristeza, de paz ou guerra, de tranquilidade ou inquietação, de fé ou descrença, de amor ou ódio... Sinceras ou falsas, pensadas ou espontâneas... são um de nossos maiores tesouros.
Há uma palavra pela qual tudo começa e recomeça, outra pela qual tudo termina, deixando o silêncio atrás de si. Depois de certas palavras, não resta mais nada a dizer. Todos conhecemos pessoas destruídas pelas palavras, como também pessoas reconstruídas, recriadas pelo toque das palavras. A palavra tem uma força ressurreicional. Todo encontro com o nosso semelhante revela a nossa relação com as palavras, as boas e as más, as que unem e as que dividem, as que consolam e as que amedrontam, as que curam e as que matam. “Morte e vida estão em poder da língua” (Prov. 18,21).
As palavras perdem força e criatividade quando não nascem do silêncio. O mundo está repleto de “papos” vazios, confissões fáceis, palavras ocas, cumprimentos sem sentido, louvores desbotados e confidências tediosas. Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio Fala-se muito para dizer bem pouco. Jornais, revistas, tevê, outdoors, celular, redes sociais... há demasiado palavrório. Carecemos de poesia.
“Sim, senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que contam, as que sobem e baixam... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as...
Amo tanto as palavras... As inesperadas... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem... Vocábulos amados...
Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho...
Persigo algumas palavras. São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema...
Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as...
Deixo-as, como estalactites em meu poema, como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda... Tudo está na palavra” (Pablo Neruda)
No evangelho de hoje, Marcos afirma que “Jesus anunciava a palavra usando muitas parábolas...); Lucas completa: “as pessoas ficavam admiradas com as palavras cheias de encanto que saíam da boca de Jesus”. Com exemplos tomados da experiência dos camponeses, Jesus desperta nas pessoas a esperança e o sentido da própria existência: o decisivo é semear a Palavra que abre novo futuro e que anima. “Palavra viva” que carrega dentro de si uma força transformadora que já não depende mais do semeador.
Tal situação nos ajuda a considerar o mistério escondido naquela palavra que sai de nossa boca e de nosso coração de forma afirmativa, redentora... bendita. Quando assim conseguimos comportar com nossas palavras, estamos contribuindo, literalmente, para a “edificação humana” do outro.
É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Principalmente nos primeiros anos de vida. Como é importante para um adulto, um dia criança, ter escutado palavras ordenadoras de emoções, de autoestima! Essas palavras são bem-aventuradas, pois se tornam capazes de fazer crescer, sustentar, enfim, edificar pessoas mais saudáveis no convívio social, humano-afetivo, espiritual.
Formados e purificados pela própria Palavra no forno do silêncio, estaremos prontos para proferirmos palavras benditas, palavras que possuem um magnetismo especial, que libertam, acalentam, invocam emoções. Certas palavras nos acompanham durante muito tempo. Todos nos lembramos de palavras proferidas por pessoas especiais em momentos de dificuldade, que nos deram luz e força.
Portanto, na oração, cave palavras nas minas do seu silêncio, palavras carregadas de sentido e de ânimo; deixe que o Espírito lhe diga a “palavra” misteriosa, a “palavra diferente” reveladora de sua verdadeira identidade. Palavra divinizada que favorece o encontro, a proximidade e a acolhida mútua.
Para muitos místicos, as “palavras reveladas” são música. Eles as usam como quem toca um instrumento, porque elas são belas, pelo prazer que elas são e despertam no leitor-orante. Fernando Pessoa diz que a poesia é uma rede de palavras por cujas fendas se ouve uma melodia que faz chorar. Todo dizer poético aspira por um silêncio de palavras, para que a música seja ouvida. Podemos falar, então, do prazer do texto. O profeta Ezequiel “comeu” a Palavra e afirma: “eu comi e pareceu doce como o mel para o meu paladar”.
Como polpa de uma fruta madura na boca, basta provar o sabor da Palavra, antes mesmo de conhecer o seu misterioso sentido. É o Espírito que nos diz a “palavra” misteriosa. Porque não sabemos o que dizer, na oração deixamos o Espírito gemer em nós com suspiros profundos.
Texto bíblico: Mc. 4,26-34
Na oração:
Percorrer as palavras proferidas, normalmente, ao longo do dia: são palavras que elevam? curam? animam? Palavras marcadas pela esperança? Palavras carregadas de sentido? Palavras criativas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
15.06.2012
“ISTO É O MEU CORPO”
“A festa de Corpus Christi quer nos fazer recordar que CORPO é cálice, onde se bebe o vinho da alegria e da salvação, inserido no CORPO místico e cósmico de Cristo. Só haverá futuro digno quando todos os CORPOS viverem em comunhão, saciados da fome de pão e de beleza. (Frei Betto)
“Isto é o meu corpo” (Mc. 14,22), nos diz Jesus. Ele poderia ter dito: “Esta é minha vida, esta é minha história, eu mesmo...”. Mas diz: “Isto é meu corpo”; e, contido nele, sua maneira de estar na vida e de situar-se nela, seu modo de olhar, de sentir, de estar presente...
O único recurso de que Jesus dispõe antes de ser preso é seu próprio corpo. Não tem outra riqueza nem outro dom que oferecer. Esse corpo era sua vida, feita doação.
Como o corpo da mulher, capaz de conter e alimentar com seu sangue à criatura que carrega dentro de si, o Corpo de Jesus é um corpo aberto e vulnerado, quebrado e repartido. Constantemente doado.
No encontro com este Corpo podemos nos reconhecer e perdoar mutuamente, criar comunidade, multiplicar o amor e recolhê-lo para que nada se perca.
Como viveu Jesus em sua corporalidade a relação com Deus e com os outros e como nós somos convidados a viver?
Aqui precisamos encontrar a justa proximidade para nos relacionar com o corpo e estabelecer um vínculo sadio com ele. Afinal, nossas maneiras de relacionar-nos estão configuradas por ele. Não há experiência de amor, e por isso não há experiência de Deus e dos outros que não ocorra em nosso corpo.
O nosso corpo nos pede espaço, tempo, atenção, alimento e, sobretudo, nos pede descanso e bem-estar, inspiração e contemplação... O corpo não é só a unidade de nossos membros, mas a presença de nossa pessoa; por ele estamos e somos.
É com razão que se pode falar da sabedoria do corpo. O corpo não sabe mentir. Se desejamos conhecer nossa verdade num momento determinado, o caminho correto não é dirigir-nos à nossa cabeça em busca de explicações, mas perguntar a nosso corpo: “como você se sente?”
Diante de nossa tendência a “fugir” para o passado ou para o futuro, nosso corpo nos traz sempre ao presente. Diante de atitudes de nostalgia ou de ansiedade, a atenção ao corpo nos abre o caminho para viver a profundidade do momento, do aqui e agora, o único que temos realmente ao nosso alcance.
O corpo é o grande aliado na tarefa de ser pessoa, de conhecer-nos e de viver-nos de um modo adequado.
Uma boa concepção do corpo supõe evitar a parcialização, a polarização e a dicotomia e buscar a harmonia e a integração.
Para ter uma visão e intuição completa do corpo é necessário contemplá-lo em sua totalidade e em sua originalidade: é “meu” corpo; conheço-o e reconheço-o; sei descrevê-lo; não é um estranho para mim. Com, em e pelo corpo, vivo minha história, caminho pela vida e tenho minha aventura de crescimento e de maturação, de amor e de conhecimento, de encontrar-me com os outros e comigo mesmo, com meus desejos e minhas fobias, minhas alegrias e minhas dores, minhas esperanças e meus desesperos, minhas desilusões e minhas vitórias... Tudo isso está escrito em minha “carne”.
Este corpo me limita e me define. Cada corpo é original e irrepetível; o meu também.
Ele me situa no espaço e no tempo, me separa e me une aos outros; conhece o que é bom e belo e também o que é desagradável e mau. Meu ser profundo, meu ser essencial se manifesta, se abre para fora através de meu corpo. Os gestos, o olhar, o tom de voz são autenticamente a transparência do coração. O corpo é o espelho do meu interior.Não há dúvida que quando nos encontramos com uma pessoa rica em bondade, entrega generosa aos outros, simplicidade e humildade, de coração grande e capaz de perdoar, nos damos conta que seu rosto é luminoso, sereno, cheio de uma beleza única, interior; irradia alegria, serenidade, harmonia, paz...
O corpo é o companheiro inseparável de nosso caminho. É preciso começar por sentí-lo, percebê-lo, escutá-lo. Mas é preciso ir mais longe: podemos afirmar que o corpo se transforma em caixa de ressonância da “voz de Deus” que nos previne contra caminhos equivocados e nos orienta para uma vida natural e plena.
O corpo é “lugar” teológico, lugar da manifestação de Deus; neste sentido é morada do divino, habitação do Espírito enquanto participa, pensa, sente, deseja, decide.
Quem não escuta nem percebe seu corpo não pode compreender o sentido da vida, do amor, das relações... pois cairá no narcisismo de seu próprio ego.
Não é possível viver feliz sem relações amistosas e próximas com o corpo, para poder entendê-lo e expressar-se adequadamente com ele. Para conhecer-se é necessário acolher o corpo, querer o corpo, observar o corpo, olhar para dentro do corpo com atitude reverente.
Minha própria casa é meu corpo; o templo onde Deus se revela a mim. Só eu posso habitar e possuir meu corpo. Eu me identifico com meu corpo, sem o qual não posso viver. Deus anima meu corpo; mas não pode habitar em mim a graça de Deus sem a colaboração e a abertura de meu corpo.
Eu sou meu corpo animado, com vida e com sentido. Eu decido com meu corpo e graças a ele.
Nosso corpo constitui nossa presença no mundo; a acolhida do próprio corpo nos projeta para uma relação sadia com o corpo do outro. Segundo Mt. 25,31-43, é o cuidado do corpo do outro que determina nossa relação com Deus (Mt. 25,31-46). O corpo do ferido, do faminto, do preso... tornam-se “territórios sagrados” onde crescemos e nos humanizamos; são os “lugares” nos quais Deus se faz “totalmente, humanamente, concreto para nós”.
O corpo é um documento histórico: há corpo burguês e corpo proletário, corpo de cidade e corpo de roça; há corpos explorados e corpos que são só força de trabalho; corpos que são modelos anatômicos; os “corpos empobrecidos” gritam a Deus por justiça, por alimento, por saúde e por novas relações entre os humanos e o cosmos, gritam a Deus por viver.
O corpo desrespeitado, expropriado e dominado de muitas pessoas, clama a liberdade, a paz, a vida.
O corpo é lugar de êxtase e de opressão, de amor e de ódio, lugar do Reino, lugar de ressurreição.
O corpo é espaço de salvação, de justiça, de solidariedade, de acolhida, é lugar da experiência de Deus, da celebração, da festa, da entrega...
Texto bíblico: 1 Cor. 6,15-20 Mc. 14,12-16.22-26
Na oração: Você vive a relação com seu corpo como objeto de suspeita ou como lugar de encontro?
Sinta que você é um corpo de argila, mas um corpo que carrega o “Sopro” do Espírito.
Procure saboreá-lo internamente. E deixe atuar em você a força da inspiração e da expiração para que todo o seu corpo seja iluminado e plenificado.
“Tomai, Senhor, e recebei”, toda minha corporalidade, com suas pulsões, seus limites e sua energia profunda. Que não fique nada em mim onde Tu não entres. Nenhum quarto escuro nem fechado que não seja invadido por Ti”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
04.06.2012
“A Santíssima Trindade é a melhor comunidade” (CEBs Brasil)
“Eu sou o Pai que cria,
O Filho que se une a todo o criado,
O Espírito que dignifica tudo.
O Misericordioso que espera o filho extraviado
O Manso que carrega o jugo pesado
Vosso Consolo, quando desesperais.
Sou o Semeador que espalha a semente
Sou o Grão que morre sepultado
Sou o Alento de Vida que tudo renova.
EU SOU TRINITÁRIO:
um Deus COMUNIDADE
um Deus PARTICIPAÇÃO
um Deus INTERRELAÇÃO
no SEIO do qual cabe TUDO”.
Afirma-se que o dogma da Trindade é o mais importante de nossa fé católica, pois estamos diante do maior Mistério que os olhos não viram, os ouvidos não escutaram, nem a mente consegue compreender... Nada do que podemos definir, pensar ou dizer sobre a Trindade é adequado a seu Ser mais íntimo.
A Trindade não é uma simples verdade para crer, mas a base de nossa experiência cristã. O dogma trini-tário quer expressar o mistério da Vida mesma de Deus que nos é comunicada.O mais urgente neste momento para o cristianismo, não é explicar melhor o dogma da Trindade, e menos ainda, uma nova doutrina sobre Deus Trino. Seria, em definitiva, a busca de um encontro vivo com Deus. Não se trata de demonstrar a existência da luz, mas de abrir os olhos para ver.
Tudo o que “sabemos” da Trindade pode ser um estorvo para viver sua presença vivificadora em nós. Calar sobre Deus, é sempre mais exato que falar. Dizem os orientais: “Se tua palavra não é melhor que o silêncio, cala-te”. O decisivo é viver o Mistério da Trindade a partir da adoração e da partilha fraterna.Grandes teólogos fizeram profundos estudos sobre a Trindade, tratando de pensar conceitualmente o mis-tério de Deus. No entanto, eles mesmos dizem que, para “saber” de Deus, o importante não é “refletir” muito, mas “saber” algo do Amor.
O mistério de Deus Uno e Trino é fruto da experiência de revelação progressiva na história da Salvação. “Deus é UM, mas não está jamais só”. Deus não é um ser isolado, distante da Criação, solitário. É um Deus comunitário, família, sociedade, fraternidade, etc... Por isso, o cume de toda a revelação bíblica é esta: “Deus é Amor”, ou seja, Deus não é uma realidade fria e impessoal, um ser triste, solitário e narcisista. E o Amor nunca é solidão, isolamento, mas comunhão, proximidade, diálogo, aliança...
O Deus revelado por Jesus é Amor e aproximar-nos do Deus Amor é descobrir a Trindade. Em Deus o Amor não é uma qualidade como em nós, mas sua essência. Se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de ser Deus. O movimento que parte do Pai, passa pelo Filho e se consuma no Espírito é um movimento de Amor sem fim.
O dogma da Trindade, portanto, nos liberta do Deus Poder e nos lança nos braços do Deus Amor. O Deus “todo-poderoso” é o contrário do Deus Trino. Deus é Amor e só amor. Não podemos imaginá-lo como poder impetrável, fechado em si mesmo. Em seu ser mais íntimo, Deus é vida compartilhada, diálogo, entrega mútua, abraço, comunhão de pessoas. O amor trinitário de Deus é amor que se expande e se faz presente em todas as criaturas.
Esta é a essência do Evangelho. A melhor notícia que um ser humano podia receber é que Deus não o afasta de seu Amor. A Trindade nos ensina que só vivemos, se com-vivemos. Nossa vida deve ser um espelho que em todo momento reflete o mistério da Trindade.
Somente na medida em que formos capazes de amor, poderemos conhecer o Deus Comunidade.
“Só corações solidários adoram um Deus Trinitário”.
Como homem e como mulher trazemos esta força interior que nos faz “sair de nós mesmos” e criar laços, construir fraternidade, fortalecer a comunhão. Fomos feitos para o encontro e a comunicação.
-o ser humano não é feito para viver só; ele é chamado a viver em comunhão com todas as pessoas;
-ele necessita com-viver, viver-com-os-outros;
-é essencial descobrir o sentido e a vivência da relação com os outros, da fraternidade...
- o sentido da vida em comum é um dom de Deus, que nos foi dado a todos.
Deus nos fez amor para o mútuo encontro, para a doação, para a comunhão... Fomos criados “à imagem e semelhança” do Deus Trindade, comunhão de Pessoas (Pai-Filho-Espírito Santo). Quanto mais unidos somos, por causa do amor que circula entre nós, mais nos parecemos com o Deus Trindade. “Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu Amor em nós é perfeito” (1Jo. 4,12)
Deus colocou em nossos corações impulsos naturais que nos levam em direção ao convívio, à coopera-ção, à acolhida, à solidariedade... A fraternidade, a vida em comum se mede pelo amor, por atos e gestos de doação, por vivências de comunhão, por experiências de partilha do mesmo ser, da mesma vida, da entrega mútua gratuita...
O amor é olhar o outro com olhos tão limpos, bondosos, desinteressados, tão profundos... que só desejo que o outro seja o que é... Alegro-me de vê-lo assim, tal como é...
Aquí está a grandeza do ser humano, criado à imagem e semelhança do Deus Trindade. E é fácil intuir isso: sempre que sentimos o dinamismo de amar e ser amados, sempre que sabemos acolher e buscamos ser acolhidos, quando compartilhamos uma amizade que nos faz crescer, quando sabemos dar e receber vida..., estamos saboreando o “amor trinitário” de Deus. Esse amor que brota em nós tem n’Ele sua fonte.
Por isso, quem vive o amor a partir da Trindade, aprende a amar a quem não lhe pode corresponder, sabe doar sem esperar recompensa, é capaz de compadecer-se dos mais pobres e excluídos, pode entregar sua vida para construir um mundo mais amável e digno de Deus.
Nesse sentido, o melhor caminho para aproximar-nos do mistério do Deus Trindade não são os tratados teológicos que falam dele, mas as experiências amorosas que compartilhamos na vida. Só encontramos Deus com o coração.
Quem é incapaz de dar e receber amor, quem não sabe compartilhar nem dialogar, quem só escuta a si mesmo, quem resiste relacionar-se com os outros, quem só busca seu próprio interesse, quem só deseja o poder, a competição e o triunfo, não pode experimentar nada da Trindade amorosa.
Textos bíblicos: Rom. 8,14-17 Mt. 28,16-20
Na oração:
Deus é amor, mas esse amor não corresponde à nossa idéia do amor.
Deus é o que ama, o amado, e o amor. Os três ao mesmo tempo.
Incompreensível para nós, porque em nós são realidades diferentes.
Em nós sempre haverá um sujeito que ama, um objeto amado e o amor mesmo.
A criação é a mais pura manifestação desse Deus.
Em toda criatura fica refletida Sua maneira de ser.
Em todo ser criado está o amante, o amado e o amor.
O ser humano tem a capacidade de entrar conscientemente nessa dinâmica. (Marcos Rodrigues)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
01.06.2012
“O Espírito Santo é o bom humor de Deus” (D. Pedro Casaldáliga)
O relato da aparição do Ressuscitado aparece unido ao dom da paz, da missão, do Espírito e do perdão. João, que não relata o episódio de Pentecostes, já havia situado o dom do Espírito no momento mesmo da morte de Jesus que, “inclinando a cabeça, entregou o espírito”. O que agora faz é confirmá-lo como dom do Ressuscitado.
A imagem de “soprar sobre eles” contém uma riqueza profunda: significa compartilhar o que é mais “vital” de uma pessoa, sua própria “respiração”, seu mesmo espírito, todo seu dinamismo; trata-se de uma imagem que nos faz sentir a respiração comum que compartilhamos com Ele e com todos os seres.
As angústias mais radicais do ser humano são reunidas e transformadas pelo sopro do Espírito: um sopro vital que possibilita a vitória da esperança contra o desespero, da comunhão contra a solidão, da vida contra a morte. A voz sopra onde quer, a Palavra vem do alto, o Espírito chega impetuoso rompendo o silêncio da morte. O Vento traz a vida, mas não se sabe de onde vem e nem para onde vai.
De fato, “Espírito” parece ser um dos nomes mais adequados para referir-se a Deus, enquanto Dinamismo de Vida e de Amor que faz com que tudo exista. Desde o começo do tempo e desde antes, está acostumado a abrigar sua criação e habitá-la, a fecundar, remover e renovar tudo quanto existe.Segundo o livro do Gênesis, no início da Criação a multiplicidade dos elementos – “águas” – representava o caos. Ali o Espírito “pairava”, criando uma integração harmoniosa – “cosmos”. Ele é também Ela e todos os gêneros: é feminino em hebraico (ruah), neutro em grego (pneuma) e masculino em latim (spiritus).
O Espírito é dinamismo, vida, relação, comunhão divina. É alento, vento, água. É unguento, é consolo, é companhia. Espírito é invenção, é fonte de criatividade, de autêntica novidade. É fonte de novas possibilidades no mundo, energia inaugural de novas auroras. É a energia materna de Deus que aquece o coração da Criação, e que tudo sustenta.
Na bíblia hebraica, o Espírito apresenta forma feminina: é “a Ruah”, a brisa, o “esvoaçar” de Deus sobre as águas, sopro impetuoso que gera vida, ar que impulsiona, alento ou respiração que mantém a vitalidade dinâmica do ser humano. Hálito, sopro, vento, respiração, força, calor... com nome feminino que fala de maternidade e de ternura, de vitalidade e carícia.
Há um antigo ícone medieval, uma pintura muito interessante que se encontra em uma Igreja de Urschalling, na Alemanha, que representa a Trindade, onde o Espírito, entre as figuras masculinas do Pai e do Filho, é representado com um rosto e um corpo de mulher. A Ruah, em hebraico, é sopro que possibilita a existência, o solo de tudo o que vive, é um termo feminino: “a Espírito”.
Nos relatos da Criação, a Ruah de Deus gera harmonia no caos, dando a cada criatura seu lugar, o espaço que precisa para desenvolver suas possibilidade. Nessa relação adequada, cada erva, cada montanha, cada ser que vive, tem seu lugar e seu sentido.
Hoje somos conscientes e podemos agradecer essa presença da Ruah como presença feminima naquelas e naqueles que se empenham pela paz e pela justiça, em sua cumplicidade com os ciclos que favorecem a vida, na contribuição do ecofeminismo para a integridade da Criação.
Desatar a dimensão feminina que mulheres e homens trazemos dentro de nós é sinal do movimento da Ruah. Acolher em nós seu potencial de ternura, de cuidado e de resistência frente a todas aquelas situações e forças que desintegram a vida; fazer da colaboração, da interdependência, do diálogo e da abertura às diferentes culturas e às diferentes tradições espirituais maneiras novas e necessárias de situar-nos no mundo.
O ser humano vive tencionado entre dois pólos, entre luz e escuridão, entre céu e terra, entre fragmentação e unidade, entre espírito e instinto, entre solidão e vida comum, entre medo e desejo, entre amor e ódio, razão e sentimento... Essa é a terra propícia onde atua o Espírito. Onde há mais carência, vulnerabilidade, pobreza... há mais criativas possibilidades. Nenhuma situação pode afastar-nos de Sua visita; pelo contrário, maior desamparo, maior proximidade; maior sofrimento, maior unção.
Toda terra baldia é boa para o Espírito. Ele é o buscador incansável de fragilidades e de conflitos. No não-amor, na não-existência, na não-possibilidade, vem com um “sim” ousado e forte que re-cria de novo nossa história, estabelecendo o “cosmos” (harmonia e beleza) em nosso “caos” existencial.
Viver uma “vida segundo o Espírito” é deixar-nos recriar, deixar-nos mover, transformar, alargar.
Soltar as asas nos momentos mais petrificados e pesados de nossa vida é sinal de sua silenciosa Presença. De imediato, nos sentimos livres do peso que fomos arrastando durante tanto tempo e, por uns instantes, nos atreveremos a “viver no Vento”.
Eduardo Galeano tem uma bonita história sobre o vôo do Albatroz que poderia ser uma parábola sobre a vida conduzida pelo Espírito:
“Vive no vento. Voa sempre, voando dorme. O vento não o cansa nem o desgasta. Aos sessenta anos, continua dando voltas e mais voltas ao redor do mundo.
O vento lhe anuncia de onde virá a tempestade e lhe diz onde está a costa. Ele nunca se perde, nem esquece o lugar onde nasceu; mas a terra não lhe pertence, tampouco o mar. Suas patas curtas mal conseguem caminhar, e flutuando se enfastia.
Quando o vento o abandona, espera. Às vezes o vento demora, mas sempre volta: busca-o, chama-o, e o conduz. E ele se deixa conduzir, se deixa voar, com suas asas enormes planando no ar”..
Falar do Espírito e celebrar Pentecostes é, portanto, celebrar a festa, a vida. Ele é o Sopro último, o Dinamismo vital que pulsa em todas as expressões de vida que podemos ver e que nelas se manifesta. Não há nada onde não possamos percebê-lo, nada que não nos fale d’Ele. Ele é o “ambiente de realização do ser humano”, porque n’Ele a vida adquire profundidade, consistência..., dando-nos firmeza à vontade, equilíbrio aos sentimentos e iluminação à mente.
Não é estranho que, com o Espírito, Jesus envia seus discípulos em missão: é o mesmo Espírito – seu sopro – aquele que quer manifestar-se em nós e quer que nos deixemos conduzir por Ele, como aconteceu com Jesus.
Textos bíblicos: Atos 2,1-11 Jo. 20,19-23
Creia no Espírito Santo, pois “sem o Espírito Santo, Deus está distante, Cristo permanece no passado, o Evangelho é letra morta, a Igreja é uma simples organização, a autoridade é tirania, a missão é propaganda, a liturgia é arcaismo, e a vida cristã é uma moral de escravos.
Mas no Espírito, e numa sinergia indissociável, o cosmos é enobrecido pela iluminação do Reino, o ser humano luta contra o egoísmo, o Cristo ressuscitado se faz presente, o Evangelho é uma força vivifica-dora, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memori-al e antecipação, e a ação humana é divinizante”. (Patriarca Ignacio de Antioquia, em Upsala, 1968).
Em nome do Pai, do Filho e da Santa Ruah. Amém.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
22.05.2012
ASCENSÃO: “olhar o divino para descobrir o humano”
“contemplar o céu para comprometer-se com o mundo”
“A maior consolação que descobrira era contemplar o céu e as estrelas. Fazia-o muitas vezes e por muito tempo, porque com isto sentia em si um grande desejo para servir a Nosso Senhor” (S. Inácio)
“Ressurreição”, “Ascensão”, “sentar-se à direita de Deus”, “envio do Espírito”, são todas realidades pascais. Em todas elas queremos expressar a mesma verdade: o final “deste Homem” Jesus, não foi a morte, mas a Vida. O mistério pascal é tão rico que não podemos abarcá-lo com uma única imagem; por isso temos que desdobrá-lo para ir aprofundando calmamente e expressá-lo no nosso modo de viver o seguimento de Jesus.
Os três dias para a Ressurreição, os quarenta dias para a Ascensão, os cinquenta dias para a vinda do Espírito, não são tempos cronológicos, mas teológicos. Eles nos revelam a maneira de ser de Deus, não o tempo em que Ele atua.
A Ascensão nos faz refletir sobre um aspecto do mistério pascal. Trata-se de descobrir que a posse da Vida por parte de Jesus é total. Participa da mesma Vida de Deus e, portanto, está no mais alto do “céu”. Nem Mateus, nem Marcos, nem João, nem Paulo, mas somente Lucas, no final de seu Evangelho e, mais detalhadamente, no começo dos “Atos dos Apóstolos”, narra a Ascensão como um fenômeno constatável pelos sentidos.
Lucas, em seu Evangelho, põe todas as aparições e a Ascensão no mesmo dia. No entanto, nos Atos dos Apóstolos, ele fala de quarenta dias de permanência de Jesus com seus discípulos, provavelmente como um modo de indicar que eles haviam recebido a formação necessária para levar adiante a missão (“quarenta dias” com o mestre era o tempo que o discípulo precisava para alcançar uma preparação adequada).
Ao mistério da Ascensão corresponde o mistério da Kénosis (esvaziamento) do Verbo; o Deus que se despojou de sua glória e majestade e se fez homem, agora é elevado aos céus e com Ele toda a humanidade redimida e divinizada. Em Cristo, a humanidade inteira já se encontra envolvida por Deus; em Cristo, céu e terra se encontram. Celebrando a glorificação de Cristo, tomamos consciência de nossa própria vocação à glória. Ao celebrarmos a entrada de Jesus na glória, não celebramos uma despedida, mas um novo modo de presença; celebramos que Ele é, realmente, o Emanuel, o Deus-conosco para sempre.
No Evangelho de hoje, a despedida de Jesus é descrita com singeleza; não produz tristeza, mas alegre confiança, enquanto os discípulos se preparam na oração para assumir a missão. Ao partir para o Pai, Jesus não nos abandona, pois realizou uma comunhão definitiva com a humanidade, garantindo a ela um destino de plenitude. Ele subiu ao céu para abrir-nos o caminho, mas agora é o Espírito aquele que nos move e nos conduz ao Pai. Cabe a nós, agora, esforçar-nos em fazer o nosso êxodo, sob a ação do mesmo Espírito e confiantes na fidelidade de Deus.
A Ascensão de Cristo ao céu nos torna encarregados da missão à qual Ele, em sua glória, preside. Nós é que devemos reinventá-la a cada momento.
Portanto, a Ascensão de Jesus marca o início de nossa missão, ou seja, um novo modo de presença no mundo. Viver com os olhos voltados para o Senhor glorioso não nos dispensa de estar com os dois pés no chão, afundados na terra da história. Na dinâmica do Tempo Litúrgico, após uma longa e criativa caminhada com Jesus, a liturgia nos faz “desaparecer em Deus” , como o Cristo da Ascensão “desapareceu em Deus”. Não há mais nada a não ser Deus. A Ascensão é abertura para o cotidiano, para a realidade do serviço. É preciso partir e viver o chamado do Mestre ao longo da experiência.
Na Ascensão, enquanto Jesus “sobe” ao Pai, nós “descemos” à realidade para transformá-la, tornando presente o Reino. Quando amamos, cuidamos, servimos... nos elevamos. O que nos eleva está em nosso interior. E nos elevamos à medida que descemos em direção à humanidade. Essa Ascensão não pode ser feita às custas dos outros, senão servindo e cuidando de todos. Como Jesus, a única maneira de alcançar a meta é descendo até o mais fundo. Aquele que mais desceu, é o que mais alto subiu.
A Ascensão é o lugar onde vai acontecer uma mudança profunda na vida de cada seguidor de Jesus: partimos para a missão; deixamos a Terra Santa, como os Apóstolos, e até o fim da vida seremos os peregrinos de Cristo. Somos arrancados de tal experiência para adentrar-se em um caminho de seguimento de horizontes desconhecidos, mas centrados no compromisso apostólico da missão na e da Igreja.
“Passamos” da particularidade de um lugar para a universalidade da missão. O desejo de seguir e servir a Cristo abarca o mundo todo. Nossa meta, como a de Jesus, é ascender até o mais alto, o Pai. Mas tendo em conta que nosso ponto de partida é também, como no caso de Jesus, o mesmo Deus. Muitas vezes preferimos seguir um Jesus no “céu”. Descobri-lo dentro de si mesmo, nos outros e no mundo é demasiado exigente e comprometedor. Muito mais cômodo é continuar olhando para o céu... e não sentir-se implicado naquilo que está acontecendo ao nosso redor.
A festa da Ascensão nos revela que vivemos o “tempo do Espírito”, tempo de criatividade, de ousadia, de novidade... O Espírito não proporciona aos seguidores de Jesus “receitas eternas”. Por isso, não podemos ficar olhando para cima. O Espírito nos dá luz e inspiração para voltar a cabeça para a realidade, buscando caminhos sempre novos para prosseguir hoje a missão de Jesus. Torna-se necessário descruzar os braços, deixar de olhar passivamente para o céu e, com os pés plantados no chão, prosseguir a obra iniciada por Jesus.
O mistério da Ascensão nos sensibiliza e nos capacita para aproximar-nos do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade. A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é. Ascensão nos convida a olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que existem no mundo; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e por isso gerado de misericórdia; um olhar que compromete solidariamente.
Enfim, a celebração do mistério da Ascensão nos impulsiona, ao mesmo tempo, para Deus e para o mundo. Paixão por Deus e paixão pelo mundo. Podemos assim estar sempre enraizados firmemente em Deus e, ao mesmo tempo, imersos no coração do mundo. O cristão é tão familiar com Deus que admira e se encanta com a variedade e a multiplicidade do mundo, e não teme o mundo com toda sua complexidade. Ao mesmo tempo, é tão familiar com o mundo que sente o Espírito de Deus que trabalha em todos os lugares e da maneira mais inesperada. “Fora do mundo não há salvação” (E. Eschillebeeckx).
Textos bíblicos: Mc. 16,15-20 Atos 1,1-11 Ef. 1,17-23
Na oração: Que nossa ascensão seja: romper as cadeias de injustiça e morte; derrubar toda parede e muro; ir pela vida como samaritano; mostrar os caminhos ascendentes; oferecer razões de esperança; despertar o instinto criativo; interpretar os sinais dos tempos; pôr o coração nas estrelas...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
15.05.2012
“Amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo. 15,12)
O evangelista João põe na boca de Jesus um longo discurso de despedida, no qual recolhe aquilo que será a marca distintiva dos seus seguidores, para serem fiéis à Sua pessoa e ao Seu projeto. A nova comunidade não se caracterizará por pertencer a uma determinada religião, nem por doutrinas, nem ritos, nem normas morais... mas por viver no amor com que Jesus nos ama, o Amor que tem sua fonte no Pai. Amar como Ele é transformar-se n’Ele.
Ser cristão, em primeiro lugar, é uma questão de amor.
O mandamento do amor não é apresentado como uma lei que torna nossa vida dura e pesada, mas uma resposta ao que Deus é em cada um de nós, e que em Jesus se manifestou de maneira contundente. Nosso amor será “um amor que responde a seu amor”. O amor que Jesus nos pede tem de surgir a partir de dentro; trata-se de manifestar o que é Deus no mais profundo de nosso ser.
Quando amamos não é preciso dizer que Deus está em nosso coração porque, de uma maneira melhor, estamos no coração de Deus, participamos do próprio dom de seu amor. Encontramo-nos, assim, envolvidos pelo amor de Deus.
Esse amor, ativo e primeiro, suscita em nós a gratidão que nos leva a corresponder com um amor-serviço; o amor sempre se faz serviço, assim como todo serviço é inspirado e sustentado pelo amor. Trata-se da mística do “serviço por puro amor”. Por isso, esse amor é fonte de alegria, ou seja, um estado permanente de plenitude e bem-estar. Sem amor não é possível dar passos em direção a um cristianismo mais aberto, cordial, alegre, simples e amável, onde possamos viver como “amigos” de Jesus.
A palavra amor, na língua grega, tem vários sentidos bem diferentes (“pornéia”, “pathé”, “Eros” “phylia” “kháris” “ágape”). Não há oposição entre elas e nenhuma delas exclui as outras, mas só o “ágape” expressa o amor sem mistura de interesse pessoal. Seria um puro dom de si mesmo, só possível em Deus. Ágape é o amor divino. Esse amor é o mais raro, o mais precioso, o mais milagroso. Estas são algumas características do ágape cristão: é um amor espontâneo e gratuito, sem motivo, sem interesse, até mesmo sem justificação, oblativo, expansivo... o puro amor.
Ao empregar a palavra “ágape”, João está fazendo referência ao amor que é Deus, ao grau mais elevado do dom de si mesmo. Deus não é um Ser que ama, é o Amor. N’Ele, o Amor é sua essência; se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de existir. Não podemos esperar de Deus “amostras pontuais de amor”, porque não pode deixar de demonstrar o amor um só instante.
O Amor que é Deus, temos que descobri-lo dentro de nós, como uma realidade que está unida intimamente ao nosso ser. Por isso, só há um mandamento: manifestar esse amor que é Deus, em nossas relações com os outros. Indecifrável como a obra de arte, o Amor nem se define nem se enquadra: é cada vez outro, novo, surpreendente, desconcertante..., embora tão antigo.
S. João nos diz que “Deus é Amor (Ágape) e aquele que habita no Amor, habita em Deus e Deus habita nele” (1Jo. 4,16). Portanto, é proposto ao ser humano uma experiência. Ele é chamado para exercitar sua capacidade de gratuidade e graça. Em um mundo onde tudo se paga, onde nada é gratuito, ele é chamado a ser presença gratuita, a viver a graça e a gratidão.
O amor que Deus tem por nós é absolutamente desinteressado, ativo e criativo, gratuito e livre. Ama o sem valor, aqueles que não tem valor em si mesmo. O seu Amor é que valoriza o outro. A criatura não é amada porque tem valor por si mesma, mas tem valor porque é amada por Deus, que lhe comunica generosamente a sua própria riqueza. Nisso consiste a Criação: Deus, num transbordamento do seu amor intra-trinitário, deu o ser ao que não era nada.
O amor (ágape) impregna o ser humano. “Afeta a totalidade humana; roça a sensibilidade, aloja-se na medula dos ossos, pulsa nos batimentos cardíacos, arfa na respiração, circula pelo sangue, aquele o pensamento, rola pelos braços, agita as mãos, baila na consciência, escorre no olhar, sonoriza-se na palavra, recolhe-se no silêncio, peregrina nos passos, oculta-se no inconsciente, murmura na oração...” (Juvenal Arduini). O Amor é onipresença. “É um estado de ser” (R. May).O amor é a habitação do ser humano. “O amor jamais acabará” (S. Paulo).
Somos capazes de Ágape, de amar aquele que não nos ama e não devemos nos privar dessa liberdade. O seguimento de Jesus nos convida a esta liberdade que se encontra na palavra “Ágape”, o amor da superabundância, o amor de gratuidade, o amor que transborda, que nada pede em troca. Amar sem ter nada de particular para amar. Amar não a partir de sua carência, mas amar a partir de sua plenitude. Amar não somente a partir de sua sede, mas amar a partir de sua fonte, de sua fonte que corre.
O amor é fazer o vazio dentro de si mesmo, para que haja lugar para o outro. O amor tem um rosto. Assim como Deus, que se “esvaziou de sua divindade”, o ágape se esvazia de si mesmo para dar mais lugar, para não invadir, para deixar ao outro um pouco mais de espaço, de liberdade... “Amar é encontrar sua riqueza fora de si” (Alain).
Para o poeta Rilke, o amor é constituído por “duas humanidades que se inclinam uma diante da outra”. Amor como dom gratuito de si mesmo. Não é motivado pelo valor do outro, isto é, pela recompensa que meus gestos de amizade podem trazer-me. Com efeito, neste caso, não se ama o outro porque ele é bom (como na amizade verdadeira), mas para que seja bom, já que o amor quer o bem do amado.
Não é porque as pessoas são amáveis que devemos amá-las; é na medida em que as amamos que são (para nós) amáveis. A caridade é esse amor que não espera ser merecido, esse amor primeiro, gratuito, espontâneo, de fato, que é a verdade do amor e seu horizonte. Uma liberdade de amar o outro em sua diferença, de amar o divino no outro, de amar o outro como a mim mesmo, reconhecendo-me nele.
O amor é um estremecimento, um frêmito que desperta em nós o que existe de mais nobre, puro e humano. Tal como a flor de Lótus, o amor mais nobre tem suas raízes na lama, na argila de cada um de nós; é o divino germinando nos meandros do humano. O amor é a realidade que nos faz mais humanos. Tal como a água de um rio escavando seu leito profundo, o amor é a força que nos escava, que alarga e aumenta nossa capacidade de irmos para além de nós mesmos. Uma das maiores razões para o amor ser uma experiência de expansão se deve à sensação de imortalidade e eternidade que nos proporciona.
O amor carrega em si a marca da eternidade. Quem ama vê o tempo se ampliar e a vida ganhar mais sentido. Alguns dizem que há lugares de nós mesmos que só passam a existir após o sofrimento ter penetrado ali. Há lugares em nosso interior que não existem enquanto o amor não tiver penetrado. O amor nos torna flexíveis, atentos à inspirações do Espírito; é um estado de escuta, o desenvolvimento de uma grande atenção em relação a tudo o que vive e respira. É a natureza humana verdadeira, quando não está entulhada pela ilusão e pelo ego. Amar é desfazer-nos de tudo aquilo que acreditamos ser, para que somente fique em nós o que é Deus.
Para aprender a amar é preciso sair de nossos hábitos, sair do conhecido; aprender a amar é sempre uma aventura. Se entrarmos nessa aventura, nossa vida será virada pelo avesso e completamente questionada. “O amor é o que diz sim, em nós”, sim à vida, sim ao compromisso, sim à compaixão... É preciso encontrar dentro de nós este estado de sim ao que é. Dizemos que Cristo só tem sim dentro de si mesmo. É necessário que descubramos em nosso interior, o sim mais profundo.
Quando o amor nos habita, tudo se torna sagrado; nossos olhos se tornam contemplativos, ou seja, o olhar que libera o que há de melhor em nós e no outro. Transformamo-nos naquilo que olhamos e tornamo-nos aquilo que amamos. O amor é uma irradiação do nosso ser.
Texto bíblico: Jo. 15,9-17
Na oração: Faça uma leitura das “marcas” do Amor de Deus em sua vida; crie um clima de ação de graças.
“Eu sou a videira e vós os ramos” (Jo. 15,5)
Se há algo que caracteriza nosso tempo é a nova consciência de ser rede-comunhão-interconexão-unidade. Todos já sabemos que tudo está interconectado: a globalidade é interação. Lentamente vai-se tomando consciência de que formamos parte de um todo. Há em nós uma necessidade básica de viver conectados com os outros, de entrar em relação com o mundo.
Este tempo pede de nós “uma espiritualidade da conexão”, da busca da experiência da Unidade, de estender pontes entre culturas, raças, sexos, crenças religiosas, ideologias, de romper fronteiras, de estreitar laços, de criar espaços acolhedores... Precisamos sair de nossos pequenos círculos para criar vínculos com tantas pessoas, grupos, organizações sociais e movimentos que buscam outra globalização, a globalização da solidariedade, da interconexão responsável, da comunhão universal.
“Conectar computadores é um trabalho. Conectar pessoas é uma arte” (Eckart Wintzen)
O desafio que se apresenta diante de nossos olhos é o de sermos fiéis à realidade para poder descobrir nela a novidade de Deus, uma experiência “mística” que nos faça tocar o mais profundo de tudo, e como consequência, denunciar o que obstrui e mata este dom novo de Deus.
Também através dos “chips”, “bytes” e “satélites” de nosso universo eletrônico o Espírito se infiltra. Através dos circuitos eletrônicos nos aproximamos da solidariedade universal, da busca da transcendência, da defesa do meio ambiente, da luta em favor da vida, do compromisso com a justiça...
Nessa direção, a oração cristã é um grande corretivo, é um convite a sentir-nos com os outros, a conectar-nos com todos e a viver em comunidade. Nela dizemos que nossa origem e nosso destino é comum (viemos de Deus e voltamos para Deus) e pedimos juntos o acontecer do Reino.
A imagem da videira e dos ramos, no Evangelho de hoje, nos revela a teia das relações, das interdependências e da comunhão de todos com a Fonte originária de tudo. Pertencemos a uma comunidade cósmica de vida tal como foi criada e sustentada por Deus. Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio Criador; somos alimentados pela mesma seiva divina, que tudo sustenta com sua mão providente.
Isto significa que há uma unidade fundamental que perpassa todas as partes do universo, na forma de uma “rede”. Nós, seres humanos, também fazemos parte desta vasta rede de inter-relações, conectados a todos os elementos da natureza, desde a menor célula até a ecologia global. Sentimo-nos impulsionados pela seiva do Espírito que alimenta as energias do universo e a nossa própria energia vital e espiritual. Conectar-se com a videira possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio nas relações; viver em profunda fusão com a videira desperta as energias criativas, todas as grandes motivações adormecidas, toda bondade aí presente.
Sem a seiva divina que nos atravessa nunca poderemos dar o verdadeiro fruto.
No entanto, percebemos, no contexto atual, que o ser humano tem perdido o contato e a comunhão com o cosmos e com os seus semelhantes, recusando receber a seiva que a todos alimenta; ele está conectado com tudo e com todos e, no entanto, tal conexão não lhe nutre, nem lhe oferece sentido à sua existência. A compulsão dos meios eletrônicos o ameaça de superficialidade, de individualismo e de isolamento. Isto tem provocado nele toda espécie de mal-estar, de doenças, de conflito e divisão, de insegurança, de ansiedade, de solidão, de aridez existencial... É aguda a consciência de uma fragmentação do eu interior.
A verdadeira nobreza do ser humano consiste nisto: há nele “algo” de interior, decorrente de sua profunda conexão com a Videira, de onde recebe a seiva que o nutre e o faz entrar em relação com tudo e com todos; há nele uma força latente, como uma energia fundamental, que o impulsiona a viver, que o ajuda a crescer e a melhorar continuamente, aumenta a sua capacidade de resistência, estimula-o a alcançar aquilo que é o sentido de sua própria existência: a verdade, a liberdade, o bem, o amor...
Com a presença desta força interior, a pessoa se sente guiada pelo seu dinamismo, que lhe proporciona saúde física, lucidez mental e limpidez afetiva. É esta força que comanda os melhores momentos da vida humana como um princípio ativo, dinâmico, criativo... Tais forças primordiais, vitais, presentes nas diferentes etapas do crescimento, são essenciais ao ser humano, graças às quais ele se orienta diante das solicitações da vida pessoal e das múltiplas escolhas, constrói a sua vida pessoal, reforça as relações comunitárias e sustenta o seu compromisso solidário no caminho em direção à plenitude do seu ser.
Quando esta “força vital” permanece bloqueada, o ser humano perde a direção, seca a criatividade e o gosto por viver, não faz progredir a sua potencialidade e demite-se da própria vida.
É decisivo religar-se à Fonte e aproveitar, para o desenvolvimento integral da personalidade, os abundantes nutrientes e recursos presentes nas profundezas do coração humano. São forças construtivas e autônomas, livres de influências externas, que devem ser colocadas a serviço da construção de uma personalidade sadia, equilibrada e mais rica. Com isso, todo seu interior se alarga e se dilata. A seiva de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida. Descobri-la, abrir-nos a ela, fazer-nos transparentes a ela e vivê-la cada dia constituem a plenitude de nossa realização.
É seiva divina, presente no eu mais profundo, que nos arranca de nosso fechamento e nos faz ir para além de nós mesmos; ela nos abre a uma Realidade maior que nos transcende; é ela que nos faz perceber que temos no coração um espaço que está feito à medida de Deus. Precisamos viver mais nas raízes de nosso ser; precisamos aprender a viver de uma maneira mais profunda e autêntica, a partir do núcleo mais íntimo de nosso ser, a partir de nosso ser essencial.
E viver a partir de nosso ser essencial é nossa autêntica realização e plenitude. É chegar a integrar e harmonizar todos os níveis de nossa pessoa: corpo, mente, afetividade, coração... com a fonte de nossa vida. Intuímos um poço tão precioso dentro de nós, uma fonte tão profunda... Muitas vezes, passamos a vida buscando água em poços alheios, e não descobrimos nosso manancial.
Trata-se de descer em profundidade, de achar o nosso centro, aquele ponto de gravidade por onde passa o eixo do nosso equilíbrio pessoal. A oração nos ajuda a encontrá-lo e a ampliá-lo.
É nesse conjunto de recursos e dinamismos vitais que a Graça (seiva) de Deus trabalha; Ela pode ser considerada como uma presença dinâmica, um estimulante das energias latentes do eu. A presença da seiva é um reforço, um suporte, um energético do eu, uma ativadora das capacidades do eu; ela não constrange, não violenta, mas ajuda, esclarece, mobiliza as energias presentes, facilita largamente a missão de cada um.
Mais ainda, o Espírito habita nosso ser profundo, sustenta nossas energias sadias, aumenta nossas forças, compromete-nos a crescer de forma autônoma. Ele age como um “princípio dinâmico” e como um “energético ativo”, que reforça as atividades criativas do eu. Temos de viver a partir do Espírito, transformando e vitalizando nossos gestos, pensamentos, compromissos, encontros.
Na oração:
Eu canto por ser ramo, unido à Videira. Sou ramo que se alarga, ampliando a minha vida. Eu deixo vida feita folha verde e cachos de uvas. Sou ramo e jorro minha vida feito vinho saboroso. Sou ramo desde a origem. Sou ramo ligado à Videira. Sou ramo alimentado pelo vigor incontido da seiva.
Alguém vive em mim no silêncio. Alguém que conhece o bem, a verdade, a liberdade. Levo a Videira em minhas entranhas como um canto de libertação. Meu “interior” conhece a Videira. Conhece a Vida.
Sua Vida é minha vida. Seu viver é meu viver. Para mim, a vida é sua Vida. Sou ramo. Meu interior conhece a seiva da Videira. É algo como o espírito que me anima.
É algo que me “marca”, que me dá identidade. Se a Videira não me tivesse dado sua vida através de sua seiva, hoje eu não seria ramo.
Sou ramo e deixo a seiva transbordar em mim. A Videira se fez minha liberdade e minha força. A Videira me deu um nome: ramo. Sou peregrino no “silêncio”.
Sou ramo e o serei para sempre. Ramo sem fronteiras. Ramo sem cálculos. Ramo transbordante.
Sou para a aventura, sou para o desconhecido, sou para o novo, sou para o amanhã...
Sou fecundo como a Videira. Eu sei que em minha Vida há raízes eternas. Eu sei que vivo desde a origem. Eu sei que me alargarei enquanto chegue a vida da Videira.
Sou ramo e quero gritar bem alto. Sou ramo e vivo. Amo minha vida e não quero abafá-la. Amo minha vida e não quero morrer sufocado, desconectado da Videira. Grito a ti Videira, Fonte de minha vida!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.05.2012
Como Bom Pastor, Jesus transborda ternura sobre nossa humanidade ferida.
Todo 4º. domingo de Páscoa é o do Bom Pastor. Embora o Evangelho de hoje não fale de “aparições” do Ressuscitado, não nos afastamos do tema pascal, pois Jesus afirma expressamente: “Eu dou a minha vida pelas ovelhas”. A “Vida” é o verdadeiro tema pascal.
Jesus de Nazaré “passou fazendo o bem”, não de qualquer modo. Aquele homem que movia multidões por toda a Galileia, por sua pregação e milagres, não era um revolucionário violento. E, no entanto, nem por isso, deixa de ser inquietante e perigoso. Como Bom Pastor, aproxima-se e cuida, de forma preferencial, dos mais fracos, pequenos, necessitados..., deixando-se “tocar” e “tocando” as situações humanas mais desgarradas, mais quebradas, mais dolorosas, mais sofredoras e marginalizadas....; os pobres, os ignorantes, os pecadores, os excluídos, descobrem n’Ele uma bondade e uma ternura inesperadas. Sua presença constitui um encontro extraordinário, tornando visível a ternura misericordiosa de Deus Pai. É o tempo da ternura de Deus pela humanidade; em Jesus “apareceu a bondade e a ternura de nosso Deus” (Tit. 2,11).
Recuperar o sentido da ternura exige de nós contemplar a vivência da ternura de Jesus de Nazaré, e não só como um mero modelo ético de atuação, senão em sua profunda intimidade e filiação referida a um Pai materno cujas entranhas se estremecem e sente ternura por seus filhos e filhas.
Só contemplando a Jesus, poderemos descobrir que nosso Deus é um Deus de ternura.
Recuperar a imagem esquecida do “Deus de ternura” supõe enraizar-se no coração do Bom Pastor, imagem que nos revela a capacidade do ser humano de abraçar empaticamente a situação de fragilidade e dor do outro com uma compaixão feita vida em gestos revitalizadores e humanizadores, cheios de ternura.
Só quem experimentou a ternura de Deus, revelado em Jesus, se sabe possuidor de uma “segunda pele” que certamente o faz mais vulnerável, mas ao mesmo tempo mais humano, ou ao menos, mais apto para penetrar no secreto de uma humanidade capaz de sentimento e estremecimento até os limites não imaginados. Nele pulsa o coração de Deus que se sintoniza com a pulsação do coração do mundo.
Com razão afirmava Abrahán Heschel, que “o grau de sensibilidade diante do sofrimento humano indica o grau de humanidade que temos atingido”. E é a ternura aquela que desperta em nós essa sensibilidade e mede, por isso, o grau de humanidade alcançado.
A ternura é o afeto que devotamos às pessoas e o cuidado que aplicamos às situações existenciais marcadas pela fragilidade . É uma proximidade que se revela como intuição, vê fundo e estabelece comunhão.
A ternura brota quando a pessoa se descentra de si mesma, sai na direção do outro, sente o outro como outro, participa da sua existência, deixa-se tocar pela sua história de vida.
Esse sentimento é um modo de ser existencial que afeta todas as dimensões da pessoa.
A expressão por excelência da ternura é o carinho, onde se acentua a proximidade física e o respeito ao outro. O carinho em certas situações é a melhor forma de comunicação não-verbal.
Ele revela cuidado solícito, manifesta sensibilidade através do contato físico, expressa-se como gesto sensível que quer acolher a pessoa como tal.
A ternura é fenômeno íntimo e comunicacional, é forma de viver e de conviver, circula entre as pessoas e luta por nova sociedade, é valor original que se irradia pela vasta verdade. A ternura acolhe os abandonados, mas não se cansa de amar.
Forte é a ternura que permanece resistente.
A ternura revela lucidez, firmeza e tenacidade. Não se deve confundir ternura com emocionalismo.
A ternura possui fibra e sustenta causas justas. A ternura mantém fidelidade às pessoas e assume posições sérias. A verdadeira ternura é destemida, não se amedronta e sustenta a verdade, é corajosa, não compactua com a violência, a crueldade, a exclusão. A ternura pode e deve conviver com o extremo empenho por uma causa: “hay que endurecer pero sin perder la ternura jamás” (Che Guevara).
A ternura emerge do próprio ato de existir no mundo com os outros. A ternura mantém a reciprocidade com o diálogo, a afetividade, a compreensão, a amizade, o respeito, o direito, a solidariedade; ela é aberta, não se fecha, ajuda o mundo a ser humano, e não selvagem, alegre, e não triste, pacífico, e não belicoso, justo, e não ensanguentado, limpo e não sujo. Assim, a ternura ética preserva a humanidade, ventilada pelo sopro da dignidade. A ternura leva a pessoa a sentir-se gente.
A ternura vital é sinônimo de cuidado essencial. O exercício da ternura é fundamental para desenvolver atos de cuidado.
O cuidado faz o ser humano aberto, sensível, solidário, cordial e conectado com tudo e com todos no universo. Sem o cuidado o humano se faria inumano.
O cuidado vive do amor primal, da ternura, da carícia, da compaixão, da convivialidade, da medida justa em todas as coisas. Sem o cuidado, o ser humano definha e morre.
O cuidado abre-nos caminho para viver, com mais intensidade, nossa humanidade. E viver “humanamente” significa viver em vulnerabilidade.
A arte do cuidado confere a cada um a capacidade de exercer a paternidade-maternidade espiritual; cuidar é sentir o outro, é verdadeiramente escutar, é ter um olhar desarmado, eliminando todo preconceito. Cuidar é dar atenção com ternura, isto é, descentrar-se de si mesmo e sair em direção do outro, participando de sua existência; é esvaziamento de si mesmo para deixar o mistério da fragilidade do outro, que também traz em si, encontrar abrigo no coração.
Cuidar é entrar em sintonia com... Disso emerge a dimensão de alteridade, de respeito, de sacralidade...
Quem não aceita a própria vulnerabilidade e interdependência não desenvolve atitudes de cuidado. Quem não aceita ser cuidado, também não está disposto a cuidar dos outros. Somos educados para ser-mos “super-homens” ou “super-mulheres”; aprendemos a não admitir e a não aceitar o limite, a vulne-rabilidade, o fracasso... O ser humano é finito, portanto vulnerável. Ele não se basta a si mesmo; necessita de relações com o seu meio, com os seus semelhantes e com o Transcendente, dando sentido à sua existência.
Texto bíblico: Jo. 10,11-18
Na oração: quem já foi afetado por um olhar de uma pessoa pobre ou sofredora, e deixou que este olhar penetrasse no fundo do seu coração, sabe que não sai “ileso” desta experiência; algo mudou dentro de si: a ternura é despertada e o cuidado é mobilizado.
O modo-de-ser-ternura e cuidado do Bom Pastor se prolonga em nós, seus seguidores.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.04.2012
A páscoa está passando por nós. Em mim, ela perpassa todo meu ser e existir. Este mistério grandioso nos escapa. Não podemos abarcá-lo em nossa pequenez e por vezes experimentamos lampejos dessa luz que aquece nosso coração impregnando-o do perfume da esperança e da confiança de que somos ardentemente amados por Deus.
Uma alegria me invadiu e mandou embora toda preocupação, toda dúvida, todo medo... Por alguns dias sei que vou me sentir assim e é importante viver essa alegria, deixar-se inundar por ela e registrar, escrever esse milagre que acontece nos corações que se abrem à graça, mas também naqueles que nem se dão conta do clarão que os ilumina. A memória é frágil e pode esquecer... Já o coração, como disse a Adélia, quando o coração experimenta não esquecemos jamais, por isso temos a capacidade de recordar.
Precisamos recordar sempre esse grande amor que foi derramado em nós, para que nos momentos de dificuldade, de angústia e tristeza, que certamente virão, possamos encontrar a paz de Jesus e revelá-la aos irmãos. É aí que esse amor se faz mais necessário. Afinal “viver é perigoso”, ainda mais neste mundo em que vivemos tão injusto e desumano, tudo tão volátil, passageiro, descartável... Onde poderemos colocar nossa confiança? Só em Deus, sempre em Deus. Essa é a certeza imutável que muda nossa forma de viver: somos amados e cuidados por Deus. Isso nos dá serenidade diante dos problemas e possibilidade de ouvirmos a sabedoria do Espírito Santo que não cessa de soprar sobre nós a verdade que nos liberta: Jesus ressuscitou verdadeiramente. Aleluia!
Lilian Carvalho
24.04.2012
Todos sabemos por experiência que as convicções e determinações mais fortes de nossa vida, nossas inclinações e afetos mais enraizados, ou, pelo contrário, os maus sentimentos que às vezes carregamos em nossa intimidade mais secreta, tudo isso não brotou em nós por coisas que ouvimos ou aprendemos, senão por experiências muito fortes que nos marcaram.
O mesmo acontece com a fé em Deus. Ou seja, a fé no Deus vivo não se faz vida em nós como resultado de alguns argumentos ou teorias, mas, sobretudo por aquilo que vemos e sentimos, por aquilo que apalpamos com nossas próprias mãos, por tudo aquilo que, ao senti-Lo, se faz vida em nós. Deus entra pelos sentidos e O encontramos na vida.
Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva. Quando alguém se deixa invadir pelo humano, quando uma pessoa se humaniza de verdade e é sensível à dor do mundo, então é porque Deus entrou-lhe pelos sentidos, então é quando de verdade ela se encontra com o “Deus desconcertante”, o Deus que Jesus de Nazaré nos revelou.
É exatamente por isso que Deus quis se fazer presente e comunicar-se conosco mediante Jesus, um homem de carne e osso, o qual não só se pode ouvir, para aprender suas ideias, senão que se pode ver e tocar, apalpar e experimentar, sentir e gostar, o que é e o que representa a bondade de Deus, a proximidade de Deus, a delicadeza e a ternura de Deus. É por isso que a primeira carta de João começa dizendo: “o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e o que apalpamos com nossas mãos acerca da Palavra da vida” (1Jo. 1,1).
O autor desta carta começa seu escrito repassando os sentidos. Ou seja, chegamos a Deus pelos sentidos.
Assim o alcançamos e nos relacionamos com Ele. É um Deus que se comunica a nós no mais humano que há em nós. E bem sabemos que a vida é, não só espírito, ideias e conhecimentos, mas também sentidos e sensibilidade, ou seja, o que apalpamos, o que sentimos, isso é o que nos entra em nosso ser inteiro e se faz vida em nós.
O relato do Evangelho de hoje trata justamente da realidade dos sentidos com mais claridade.
Está claro que os discípulos de Jesus não só ouviram sua “doutrina”, senão que, juntamente com isso, viram, tocaram e sentiram de perto sua “maneira de viver”. Quando nós percebemos ambas as coisas, não só a doutrina, mas também sua vida, seu estilo, seus costumes, sua maneira de relacionar-se com as pessoas, então é quando se faz possível a fé. Porque então é quando o Ressuscitado se faz vida em nós.
Esta é a experiência de Ressurreição. Por isso, é decisivo “ressuscitar os sentidos”; em outros termos, é decisivo cristificar os sentidos.
“Ressuscitar os sentidos” significa harmonizá-los com a presença do Espírito, torná-los silenciosos, despojados diante d’Aquele que é.
Quando falamos de “sentidos espirituais” estamos fazendo referência aos sentidos ressuscitados, habitados, animados pelo Espírito de Deus. Os sentidos não são destruídos, mas transfigurados; eles se tornam “sentidos divinos”, pois tornam o ser humano cada vez mais “capaz de Deus”.
É preciso “ressuscitar os sentidos” para que encontrem seu lugar insubstituível na experiência de fé. E só podemos descobrir o “lugar” dos sentidos através do encontro com a “sensibilidade de Jesus”.
O mestre de Nazaré desenvolveu a sensibilidade no seu sentido mais belo. Educar nossa sensibilidade “ao estilo de Jesus” implica empapar-nos de sua forma de ser e de sentir, de vibrar com tudo aquilo que lhe fazia vibrar, de rejeitar tudo aquilo que Ele rejeitava, e assim reagir frente à realidade e às pessoas do mesmo modo que Ele reagia.
Ele conseguia ver encanto numa pobre viúva e percebia as emoções represadas numa prostituta. As dores e as necessidades dos outros mexiam com as raízes de seu ser. Na realidade, trata-se de querer ter sempre – na expressão de S. Paulo – os “mesmos sentimentos de Cristo Jesus”. Buscando e desejando a identificação com Jesus, nossos sentidos aprendem d’Ele a ter ternura, visão, escuta, sabor...
“Despertar a sensibilidade” ao estilo de Jesus não se limita somente a ver, ouvir, gostar e tocar .
Nascemos com olhos, mas não com o olhar; temos, sim, ouvidos, mas não sabemos escutar; podemos cheirar e gostar as coisas, mas nem sempre somos capazes de desfrutar e saborear a vida. Tocamos e abraçamos os outros, mas não nos comprometemos.
Uma opção de seguimento evangélico que não conte com a “ressurreição dos sentidos” está destinada ao fracasso, pois, sem uma identificação com a sensibilidade de Jesus nossos sentidos passeiam vazios e sem bússola pelo mundo, como que afundados na noite.
Estamos vivendo uma cultura profundamente desconectada do sensitivo. Os sentidos estão ficando atrofiados e nos lançamos desesperadamente em busca de compensações virtuais. Nossos medos estão impossibilitando os sentidos ocuparem o lugar que lhe corresponde em nossos comportamentos e atitudes.
Talvez hoje, mais do que nunca, precisamos de uma ascese que purifique nossos sentidos de tantos estímulos que invadem nossa intimidade, nos intoxicam, nos aprisionam e deturpam nossa sensibilidade, impedindo-nos de perceber como “Deus faz novas todas as coisas” (Apoc. 21,5).
Precisamos fazer um jejum de imagens e sons que nos invadem com cobiças impostas de satisfações imediatas, para que no vazio humilde da alma e do corpo, possamos ser surpreendidos pela presença transparente e reveladora do Ressuscitado.
Nesse processo de purificação poderá renascer em nós uma nova sensibilidade para “buscar e encontrar”, com mais nitidez, a proximidade do Ressuscitado, tanto na beleza como na dureza do mundo.
Na oração: diante do Ressuscitado “repassar” os cinco sentidos:
Atrofiamos nosso olfato pelo temor a um mau odor. Desprezamos com indiferença os odores de nosso entorno, das pessoas, dos objetos...se não vem com a garantia de um perfume etiquetado. Buscamos espaços descontaminados, assépticos..., pois o odor da pobreza, da exclusão... nos inquieta e nos causa medo.
Em estreita relação com o olfato, nossa respiração, fonte vital de energia, se faz cada vez mais doentia. Praticar uma respiração profunda e tranquila está se transformando em um luxo.
O “viver com sabor” transformou-se numa loteria onde poucos tem possibilidade de acessá-la. Ficamos cada vez mais impossibilitados de “gostar” a fruta pelo sabor, para passar à alimentação ingerida mais pelos olhos. São os invólucros de nossos alimentos que nos alimentam. O sabor não conta para os experts em manipulação genética. O “saborear as coisas” pertence ao passado.
Nossos ouvidos, assaltados pela música virtual e por ruídos estridentes, se desconcertam ao descobrir o silêncio. Perdemos a sintonia dos sons naturais. É exagerado pedir que distingamos o cantar de um pássaro. A contemplação auditiva não registrada em CD nos parece uma perda de tempo.
A visão que, sem dúvida, é o sentido por excelência e o mais estimulado, é, ao mesmo tempo, o mais manipulado e violentado pelo excesso de imagens virtuais. Nosso campo de visão é cada vez mais reduzido, unicamente ampliado pelas telas digitais. Vemos tudo e não olhamos nada.
A urgência em “ver” tudo tira a atenção e o tempo necessário para poder “olhar pausadamente” e captar o “mistério” das coisas e das pessoas.
Portanto, um olhar desprovido de sentimento, de imaginação, de profundidade, de horizontes... Daí o olhar reprimido, desviado, insensível, frio, duro, ríspido... olhar supérfluo e imediatista, olhar narcisista, olhar morno, sem vibração, sem brilho, sem assombro... Nesse olhar não há lugar para a admiração e o assombro, nem para a acolhida e a presença do outro.
O tato supõe proximidade, imediatez... Tocar ou nos sentir tocados é, em determinadas circunstâncias, a linguagem mais inteligível do amor. No entanto, nosso mundo está cheio de alambrados, muros, valas e fronteiras; usamos de artimanhas para “ver de longe”. Com isso nos defendemos dos que são de outra raça, cor, religião, sexo, classe social... e nos fechamos no preconceito e na rigidez dos relacionamentos.
Precisamos de um autêntico transplante de pele.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.04.2012
A fé no Ressuscitado não nasce da constatação de poder ver o sepulcro vazio. Os exegetas estão de acordo que nem as aparições nem o sepulcro vazio foram a origem da primitiva fé. A fé interpreta o sepulcro vazio: no sepulcro não há nada, é vão ir ao sepulcro. As mulheres vão ao sepulcro buscando um cadáver, mas Jesus não é um cadáver: “Por quê buscais entre os mortos aquele que está vivo?”, “não está aqui”.
Ao refletir sobre os relatos das Aparições padecemos de um míope e estéril realismo: quê viram? Quê aconteceu? Como Ele apareceu?... Interessa-nos muito mais a curiosidade do investigador. Lemos os Evangelhos mais como jornalistas do que como pessoas de fé. Nosso desejo era ter estado ali e ver tudo com nossos próprios olhos.
Mas, se tivéssemos estado ali, teríamos acreditado no Crucificado? Esta é a pergunta decisiva. Esta é a finalidade do relato de João, especialmente do conjunto Paixão/Ressurreição: “que creiais no Crucificado”. Aquele que não sente sua fé interpelada, posta em perigo, pelo crucificado e pelos crucificados do mundo, não tem uma fé bem enraizada.
Os relatos das Aparições nos advertem de que não se trata de uma crônica de acontecimentos. O que João quer nos comunicar são vivências internas dos discípulos reunidos; o que ele quer nos transmitir está mais além daquilo que entra pelos sentidos ou podemos imaginar.
Destacamos algumas das expressões do relato de João para formular a fé no Crucificado/Ressuscitado. Este relato se revela como uma catequese muito rica em conteúdo. Por uma parte, vincula a ressurreição com a paz, o dom do Espírito, o perdão, a fé, a missão... Por outra, parece querer responder aos cristãos da “segunda geração”, que já não haviam conhecido o Jesus histórico, nem haviam participado daquela primeira experiência “fundante”. É a eles, representados na figura de Tomé, que lhes é dito: “Bem-aventurados aqueles que creram sem terem visto”.
* “O primeiro dia da semana”: começa uma nova Criação e com ela, uma nova Aliança. Em Jesus se completa a criação do ser humano, levando a humanidade à sua plenitude.
O local fechado, como consequência do medo, delimita o espaço da comunidade em meio a um mundo hostil. A mensagem de Maria Madalena fazendo-os saber que Jesus vivia, não os havia libertado do medo.
Jesus sai ao encontro dos discípulos inesperadamente; sua presença se efetua diretamente. Ele é quem toma sempre a iniciativa e aparece no centro da comunidade, porque, agora, Ele é para eles a única referência e fator de unidade. A presença que experimentam não é uma invenção nem surge de um desejo ou expectativa dos discípulos. A nenhum deles teria passado pela cabeça que Jesus pudesse aparecer, uma vez que tinham testemunhado seu fracasso e sua morte.
A experiência se impõe a partir de fora, a partir de uma instância superior. Jesus se faz presente na vida real. A nova maneira de Jesus estar presente não tem nada a ver com o templo ou com os ritos religiosos; nem sequer os discípulos estão orando quando Jesus se faz presente.
O movimento cristão não começou seu caminho como uma nova religião, mas como uma forma de vida. Todos os relatos das Aparições revelam aos primeiros cristãos que é nos afazeres cotidianos que o Cristo se faz presente. Se não O encontramos nas situações da vida real, não O encontraremos em nenhuma parte. A ressurreição é um acontecimento já presente; somos já ressuscitados, ou seja, a Vida ilimitada que se manifesta no ritmo normal da vida.
* “A paz esteja convosco”: Jesus os saúda; o calor da saudação elimina o medo e as incertezas; é o gesto que conecta o que está acontecendo com o Jesus que viveu e comeu com eles.
A presença de Jesus se impõe como figura próxima e amistosa, que manifesta seu interesse por eles e que busca conduzi-los à sua plenitude de vida. A primeira saudação pretendia afastar-lhes o medo; a segunda saudação procura dar-lhes forças para a missão. Trata-se de uma paz para o presente e para o futuro.
* “Mostrou-lhes as mãos e o lado”: Jesus é reconhecível, é o mesmo, é o crucificado, é seu corpo chagado. Trata-se de crer no crucificado. Mais uma vez, os sinais são inseparáveis da morte e da entrega a uma causa: o Reino. Não é a passagem a uma condição superior à do ser humano, mas a mesma condição humana levada a seu cume, assumindo sua história anterior.
As chagas, sinal de seu amor extremo, evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz. Já não há lugar para o medo da morte. Ninguém poderá tirar de Jesus a verdadeira Vida, nem tirá-la dos seus discípulos. A permanência dos sinais de sua morte indica a permanência de amor; elas são as cicatrizes de um compromisso com a vida. Além disso, elas garantem a identificação do Ressuscitado com o Jesus Crucificado.
* “Soprou sobre eles”: É o mesmo gesto do Criador ao fazer do homem de barro um “ser vivente”. Tudo isso é obra do Espírito. Deus atuou em Jesus, atua em nós e atua no mundo. A obra da Criação continua. No sétimo dia, Deus não descansa, o Salvador não descansa até que todos sejam filhos e filhas. Jesus é nova Criação; nós também. Somos criadores com Deus, à sua imagem e semelhança.
* “Meu Senhor e meu Deus”: A resposta de Tomé é tão extrema quanto sua incredulidade. Ao chamar-lhe "Senhor”, reconhece o amor de Jesus e o aceita dando-lhe sua adesão. Ao dizer “meu” expressa sua proximidade, como Madalena. Não precisou tocar as chagas, mas precisou tomar consciência de que o Ressuscitado é infinitamente mais que aquilo que nossos sentidos podem captar. E ao reconhecê-Lo, modifica-se também a percepção de nossa própria identidade e nos mergulhamos no assombro, na admiração e no louvor.
Tomé tem agora a mesma experiência dos outros: “ver a Jesus em pessoa”, que não é uma mera afirmação de visão sensorial; significa a experiência de Jesus que o transformou. Essa incrível transformação se faz visível no grupo dos seguidores de Jesus, que passam de um grupo medroso em dispersão a uma comunidade corajosa que dá testemunho de sua fé em Jesus.
A reprovação de Jesus se refere à negativa de crer no testemunho da comunidade. Tomé queria ter um contato com Jesus como o que tinha antes de sua morte. Mas a adesão não se dá ao Jesus do passado, mas ao Jesus presente, que é ao mesmo tempo o mesmo e diferente.
O dinamismo da comunidade torna possível a experiência de Jesus vivo, ressuscitado.
* “Bem-aventurados os que creram sem terem visto!”: O Ressuscitado convida a “crer” porque, quando se crê, se “vê”. A fé possibilita um olhar contemplativo: vê o que todo mundo vê, mas de maneira diferente. Vê sinais do Ressuscitado em tudo o que existe e compreende que tudo tem um sentido, imperceptível à luz dos sentidos externos.
“O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas olhando para a direita e para a esquerda, e de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento é aquilo que nunca antes eu tinha visto, e eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo...” (Fernando Pessoa)
Nossa cultura contemporânea nos modela para a especialização e o especialista fechado é aquele que perdeu o olhar aberto, simples e natural, o olhar assombrado diante de cada aspecto da realidade. É alguém com a nuca rígida, o pescoço duro que perdeu os movimentos e a flexibilidade de olhar para os lados, para cima, para baixo e para trás.
É alguém com uma viseira que restringe a amplitude do olhar. Neste olhar estreito e minimizado, o inusitado nos escapa. Perdemos o deslumbramento, o espanto essencial. Padecemos no túmulo do conhecido e rotineiro; já não renascemos para a “eterna novidade do mundo”.
No caminho viciado e repetitivo, a acomodação assassina o movimento do olhar ousado; a criança divina que nos habita perde seu “pasmo essencial”.
Ter um olhar contemplativo significa “olhar” para a realidade através de todos os seus lados, ângulos e recantos. Os olhos estão ligados ao coração – olhos abertos, olhos claros e luminosos, olhos compassivos e acolhedores. Um olhar profundamente sensibilizado possibilita o encontro de pessoa a pessoa, de coração a coração. Só o coração que abre o depósito de seus sentimentos disporá de um belo trampolim para contemplar o “mistério” escondido na realidade. “Quando o coração está cheio, os olhos transbordam”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
15.04.2012
Tua vida se via destruída mas tu alcançavas a plenitude.
Aparecias crucificado como um escravo mas chegavas a toda liberdade.
Havias sido reduzido ao silêncio mas eras a palavra maior do amor.
A morte exibia sua vitória mas a derrotavas para todos.
O Reino parecia esvair-se contigo mas o edificavas com entrega absoluta.
Acreditavam os chefes que te haviam tirado tudo mas tu te entregavas para a vida de todos.
Morrias como um abandonado pelo Pai mas Ele te acolhia em um abraço sem distâncias.
Desaparecias para sempre no sepulcro mas inauguravas uma presença universal.
Não é apenas aparência de fracasso a morte do que se entrega a teu desígnio?
Não somos mais radicalmente livres quando nos abandonamos em teu projeto?
Não está mais próxima nossa plenitude quando vamos sendo despojados em teu mistério?
Não é a alegria tua última palavra em meio às cruzes dos justos?
Benjamin González Buelta sj
UMA VIDA CONSUMADA FAZ FECUNDA A MORTE
“A tragédia não é quando um homem morre; a tragédia é aquilo que morredentro de um homem enquanto ele ainda está vivo” (Albert Schweitzer)
O sentido da vida: não há pergunta que se faça com maior angústia, e parece que todos são por ela assombrados de vez em quando: “vale a pena viver?”Ninguém tem uma razão pela qual viver se não tem ao mesmo tempo uma razão pela qual morrer. O ser humano tem necessidade de uma causa, de canalizar todas as suas forças, seus desejos, energias, im-pulsos vitais e recursos internos e externos em direção a um objetivo no qual acredita apaixonadamente. E a ele dedicar-se com tudo que é e possui. Com intensa paixão.
A vida tem fome e sede de significado. A questão do “sentido da vida” ou a “vida com sentido” é fundamental na existência humana.- Por quê vivemos? Para quê vivemos? Quanto vale uma vida e o quê vale na vida?- Quem quer ficar ancorado? Quem não aspira preencher a própria vida de relatos, encontros, paixões, gestos, lições, projetos, idéias e sentimentos?Sabemos que, para viver uma vida verdadeiramente humana, precisamos de sentido. Segundo Nietzsche, “aquele que tem um porquê pelo qual viver pode tolerar praticamente qualquer como”. Ao perder o sentido de sua origem e do seu fim, o ser humano perde o sentido da própria vida.
Por trás do ritmo acelerado e stressante dos nossos tempos, esconde-se um enfraquecimento do sentido da existência. A crise pós-moderna que vivemos revela este traço sinistro: as pessoas não percebem mais razões e causas pelas quais se entregar, pelas quais dar a vida. E assim não encontram igualmente motiva-ções para viver intensamente. Segundo S. Inácio, uma pessoa vale pela causa à qual se entrega.Muitas vezes, nossas fomes viscerais, nossos desejos que nos devoram as entranhas, nossos sonhos que nos inquietam... não encontram canais amplos para jorrar. E então se atrofiam, permanecendo reféns de uma triste mediocridade. Surge então a “normose” que mina as forças, atrofia os sonhos e mata a criatividade. E o pior de tudo: anestesia a paixão. Se não há paixão naquilo que fazemos, tudo vira rotina cansativa, não há empenho e nem compromisso possível. “Viver a fundo” é não passar pela superfície da vida, é não perder a capa-cidade de amar, de vibrar, de buscar... Aqueles que são movidos pela paixão apostam que o ser humano tem potencial criador e foi feito para voar alto, para tentar, mil e uma vezes, alcançar cumes distantes.“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, es-quivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade” ( C. Drummond de Andrade)
A vida humana é fecunda, é potencial humano, é explosão de criatividade... Assim como na semente há vida latente espe-rando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilidades, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem.Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos vivem, porque incapazes de re-inventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transpa-recer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira vida se libere. O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana.Vivemos uma das grandes mentiras de nossa cultura, ou seja, a morte já não está presente no cenário cotidiano, já não existe. A morte é distante e virtual, que não afeta à nossa própria sensibilidade. Vivemos como se tivéssemos que ser imortais. Sempre é assunto dos outros, mas nunca pode ser assunto “meu”. Quando ela está perto, as pessoas se afastam dela, ou então, ela é afastada para locais específicos. É o fracasso radical de uma cultura fundada sobre o êxito e o sucesso e, quando sente-se a presença da morte, tudo fica desestabilizado.
Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma experiência que nos faz despertar para uma vida mais intensa.Ela nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente, acumulando o mínimo de arrependimen-to possível. Paul Theroux disse que a morte é tão dolorosa de se contemplar que nos faz “amar a vida e valorizá-la com tal paixão que ela poderia ser a causa verdadeira de toda felicidade e de toda arte”.A experiência da morte pode servir como uma experiência reveladora, um catalisador extremamente útil para grandes mudanças na vida. “A morte, menos temida, dá mais vida”.Pensadores mais antigos nos lembram da interdependência entre vida e morte.Eles nos ensinaram que aprender a viver bem é aprender a morrer bem, e que, reciprocamente, aprender a morrer bem é aprender a viver bem. Quanto mais mal vivida é a vida, maior é a angústia da morte; quanto mais se fracassa em viver plenamente, mais se teme a morte.S. Agostinho escreveu que “é apenas perante a morte que o caráter de um homem nasce”.Muitos monges medievais mantinham uma caveira humana em suas celas para concentrar os pensamen-tos na mortalidade e para servir de lição à condução da vida. Montaigne sugeriu que a mesa de trabalho de um escritor deve oferecer uma boa visão do cemitério para estimular o pensamento.
E a morte não é o fim da vida, mas sua plenitude, quando esta é vivida com sentido.A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão...Desperdiçar a vida é estragar a existência. É trágico que a pessoa jogue fora a vida. Quem conhece o valor da vida não pode degradá-la.E a morte é processo permanente de esvaziamento do ego para viver a entrega aos outros. Este esva-ziamento não significa a anulação da “pessoa”, mas sua potenciação. Na medida em que os aspectos que a limitam diminuem, aumenta o que há de plenitude.O essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”.A vida aumenta quando compartilha e se debilita quando permanece no isolamento e na comodidade.De fato, aqueles que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros.O Evangelho de hoje nos ajuda a descobrir que o cuidado doentio da própria vida atenta contra a qualidade humana e cristã dessa mesma vida. Aqui descobrimos outra lei profunda da realidade: alcança-se a maturidade da vida à medida que ela é entregue para dar vida a outros.
Texto bíblico: Jo. 12,20-33
Na oração: Somos grãos de trigo na grande seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com sentido. Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos para que os outros vivam.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Terceira semana da Quaresma: Espaço para a autenticidade
Gosto, mas gosto muito, que a primeira palavra de Jesus no Evangelho de João seja uma pergunta (e seja aquela pergunta): “Que procurais?” (Jo 1,38). Consola-me ir percebendo que o que sustenta a arquitetura dos encontros e dos desencontros que os Evangelhos relatam é uma espécie de coreografia de perguntas, um intenso tráfico interrogativo, construído a maior parte do tempo a tatear, sem saber bem, com muitas dúvidas, muitos disparos ao lado, muita incapacidade até de comunicar. Isso é uma âncora, por muito que nos custe, pois uma vida só assente em respostas é uma vida diminuída, à maneira de uma primavera que não chegou a ser.
Não sei como vai rebentar em nós a primavera, como se vai acender este reflorir que a natureza insinua, este renascer que o gesto pascal de Jesus espantosamente (res)suscita na nossa humanidade. Sei apenas que nas perguntas, mesmo naquelas que são difíceis e nos estremecem, reencontramos a vida exposta e aberta, certamente mais frágil, mas a única que nos permite tocar as margens de uma existência autêntica.
Todos somos habitados por perguntas e elas cartografam zonas silenciosas, territórios de fronteira do nosso ser. Estes dias reencontrei a pergunta de Pilatos (ainda no Evangelho de João): “O que é a verdade?” (Jo18,38). E dei comigo a aproximar esta pergunta de uma das frases emblemáticas de Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,2). Sem querer relativizar a natureza densamente dogmática do enunciado, dei comigo, porém, a revisitá-lo em chave existencial. E era como se Jesus, mestre da vida que incessantemente se reformula em nós, nos desafiasse a uma apropriação. Sim, a uma apropriação.
É necessário que perante a multidão dos caminhos percorridos e a percorrer cada um de nós diga: “eu sou o caminho que percorro”. É decisivo que as verdades que acordamos não sejam uma sobreposição, mas uma expressão profunda do que somos: “eu sou a verdade”. É urgente que a vida não seja só a acumulação do tempo e do seu cavalgar sonâmbulo, mas que cada um, pelo menos uma vez, possa dizer plenamente: “eu sou a vida”. Acho que é disto que o mistério pascal fala.
José Tolentino Mendonça
in: site do secretariado nacional da pastoral da cultura de portugal
Jesus, na sua vida pública, nos revela que Deus não é propriedade de nenhuma religião ou sacerdócio e que ninguém pode reduzi-Lo a uma verdade única, porque Ele se mostra no amor mútuo e na entrega da própria vida. Ao mesmo tempo, Jesus denuncia o “deus” manipulado pelos representantes religiosos e que justificava os seus poderes sobre as consciências das pessoas.
Os fariseus e sacerdotes queriam um Deus e um céu que não se contaminassem com os deserdados desta terra; queriam um Templo como lugar de pureza e de perfeição, legitimado por uma ordem que se constrói sobre o sofrimento e a exclusão. Eles não queriam um Templo que fosse a casa dos impuros, dos abatidos e excluídos, dos encurvados e oprimidos, dos leprosos, cegos e coxos...
O Templo, como não pode ser o lar dos filhos e filhas afligidos da casa de Israel, será destruído.
O lugar da Presença que alimentava as esperanças de Israel se converteu em cova de bandidos; o Templo passou a ser gerido pelos traficantes da dor, aqueles que fazem sofrer em nome de Deus. Tal denúncia desestabilizou o sistema religioso sobre o qual a instituição sacerdotal se sustentava.
Esta foi a principal fonte de conflitos de Jesus com os fariseus e sacerdotes que, em nome de Deus, exerciam o poder e a dominação sobre as pessoas e sobre o mais íntimo que há em cada um: sua cons-ciência e sua liberdade para tomar decisões na vida e expressar sua fé em Deus.
O conflito de Jesus foi o conflito com o poder, mas o poder levado até sua raiz última: o “poder religi-oso”. Por isso, Jesus compreendeu que, para mudar o comportamento dos dirigentes do Templo, a pri-meira coisa a fazer era desmontar o “ídolo” que legitimava o poder autoritário daqueles que oprimiam o povo indefeso. No fundo, o que preocupava Jesus era o problema de “Deus”; e Deus não era como os dirigentes imaginavam e que estava de acordo com seus critérios e sua posição social.
Jesus desmontou o “seu deus” e atirou por terra “seus podres poderes”. Este é o círculo infernal que Jesus quis romper.
Templo de Jerusalém! Não ficará pedra sobre pedra. Jesus não quer que se negocie com a dor dos mais pobres e excluídos, os preferi-dos do Pai. Jesus não quer sangue, nem in-censo; quer compaixão, ternura, quer justiça, quer que o ser humano viva, e viva intensamente.
O Deus que Jesus nos revelou é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como representantes do divino.
O Deus de Jesus é o Deus que responde e corresponde aos anseios de respeito, dignidade e felicidade, que todos trazem inscritos no sangue de suas vidas e nos sentimentos mais autênticos e nobres.
O Deus Misericordioso não impulsiona ninguém a desejar poderes, por mais divinos que sejam. Ele é o Deus que só legitima a identificação e até a fusão com o destino das vítimas deste mundo.
Este confronto de Jesus com os poderes religiosos ficou evidente na cena da “expulsão dos vendilhões do Templo”. Este é o momento mais tenso da atuação de Jesus: com seu gesto Ele atinge o centro do poder religioso, encarnado no Templo; Ele arremessa diretamente contra o Templo, pois este não dá frutos e nunca dará.
O Templo já não é mais a morada de Deus, pois Ele foi desalojado pelo poder sacerdotal. O Templo, o sacerdócio, a lei, não deram frutos libertadores para o ser humano Estão aí, secos e estéreis, e não servem para a realização humana; por isso, Jesus expulsa seus representantes
Jesus colocou o ser humano acima da Lei e diz “não” a uma aliança fundada no culto externo ou ritual.
Rompe com todo o ritualismo e legalismo anterior e nos oferece uma alternativa encarnada na vida. Não se trata mais de uma imposição baseada na Lei, mas algo que todos podemos experimentar.
Não se realiza no Templo, mas fora do Templo, em nossas casas abertas, em nossas ruas e estradas, onde todos têm acesso e a partilha criativa possibilita que todos tenham vida.
Jesus, literalmente, “virou as mesas”, e a nova mesa que Ele propõe está fora do Templo, aberta a todos. O “ser humano” é agora o centro desse culto, que consiste na entrega aos outros. Não é mais a Lei que impera, mas o amor; não é condenação, mas a acolhida e a compaixão. O templo é a própria pessoa que está acima da lei e do culto. A relação com Deus não necessita intermediários e a relação entre as pessoas é horizontal. “Outro Deus é possível”.
Há um traço na personalidade de Jesus que os Evangelhos destacam: Ele era um “transgressor”.
Rompeu com a família, afastou-se da vida normal que todos levavam, rompeu com as tradições de seu povo, violou a lei do sábado, não respeitou as hierarquias, a ordem estabelecida, revelou-se livre perante o Templo, o culto... Sua transgressão decorria da percepção de situações extremamente injustas vigentes na sociedade e das quais as primeiras vítimas eram os excluídos. Jesus optou por ficar do lado das vítimas.
Jesus ousou transgredir. E transgrediu fronteiras que pareciam intocáveis. Transgrediu o sábado e considerou a vida como prioridade. “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc. 2,27). Transgrediu a Lei de Moisés e não permitiu que a mulher adúltera fosse apedrejada (Jo. 8,3-11). Transgrediu a prioridade do “sacrifício”.“Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício” (Mt. 9,13).
Jesus transgrediu fronteiras judaicas e mostrou que o projeto de Deus ultrapassa limites geográficos.
Aquele “dia de entrada no Templo” foi uma autêntica manifestação de desafio; Jesus transgrediu ousadamente ao “expulsar os vendedores e cambistas” instalados no Templo. E essa foi a “sua hora”: desmascarar a manipulação e extorsão com as quais o poder religioso tinha oprimido o povo.
Quando os chefes religiosos perguntam a Jesus com que autoridade desafia o poder estabelecido, Ele responde: “Destruí este Templo e em três dias o reedificarei”. E o evangelista acrescenta: “Ele se referia à própria pessoa”.
O sujeito do culto não é mais o poder, mas a pessoa mesma.
O templo e a lei devem ficar submetidos e devem estar a serviço do ser humano; portanto, este não pode ser objeto de nenhuma manipulação.
Jesus diz que o autêntico templo de Deus é a pessoa e que esse templo não há quem o destrua. Ele revela que o ser humano é o grande valor querido por Deus, e que o sábado, a lei e o Templo são meios para facilitar a humanização; é a vida humana está revestida de sacralidade e não os altares, os templos e os costumes antigos.
Texto bíblico: Jo. 2,13-25
Na oração: As portas do “novo Templo”, que é Jesus, estão abertas para todos; ninguém está excluído.
Podem entrar nele os pecadores, os impuros, os excluídos, os marginalizados da religião... O Deus que habita em Jesus é de todos e para todos.
Somos também o “novo templo”, morada do Espírito, presença que alarga nosso interior para que todos possam ali ter acesso.
Quem são os “frequentadores” do seu “templo interior”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.03.2012
Dizem que no Brasil tudo só começa depois do carnaval. Embora o carnaval tenha acontecido mais cedo neste ano, as pessoas reclamam que o tempo está correndo demais. A verdade é que o dia continua tendo 24 horas. O que há é um descompasso entre o tempo interior e o exterior.
Já diziam os mais antigos: tempo é questão de preferência. O que dá sentido ao tempo vivido é justamente a atenção que damos ao nosso mundo interior. A maior parte das pessoas vive como se a vida interior não precisasse de tempo, esquecem que a vida de dentro se revela na de fora. Outras buscam meios mirabolantes de acessar a vida interior, nem percebem que tudo que nos é essencial Deus provê de forma abundante e gratuita: o ar, a água, o amor e o silêncio. A vida interior precisa de tempo para morar no silêncio. É aí que o sentido do tempo muda nossa história. Silêncio é mistério, é lugar de entrega e encontro. Silêncio é deitar no colo de Deus e deixar-se afagar. Como disse Pe. Libânio: “Deus-Pai é silêncio, Jesus é a palavra e o encontro é o Espírito Santo”. Escolher uma porção do seu tempo para se deixar ficar no silêncio é preferir entrar no compasso da vida plena que Deus nos dá a ficar no descompasso de uma vida sem sentido.
Para nós, cristãos, o tempo é precioso demais para passar sem ser percebido ou saboreado. “Deixa a vida me levar” não é opção de vida de cristão. Desejamos é ser conduzidos pelo Espírito Santo e, para isso, precisamos saborear a vida internamente para apreendermos tudo o que o Senhor quer nos revelar.
A quaresma é um tempo privilegiado para buscarmos, no deserto do nosso coração, a água viva que dá sentido à nossa vida. Deus marcou nosso tempo, separou o dia e a noite, reservou como tempo festivo os momentos de encontro. Tudo mais é espera do encontro. Mas é nessa espera que vamos colocando o verdadeiro sentido das coisas no lugar. No encontro se revelam os vários senhores que invadiram nosso coração e estão a tentar nos governar. Na espera voltamos o olhar para Aquele que é o nosso único Senhor, Jesus Cristo, e vamos arrumando novamente a casa do coração, com a ajuda do Espírito Santo.
Que possamos nos deixar demorar mais no deserto nessa quaresma, que nossos pés se esgotem nas areias áridas até que estejamos prontos para reconhecer que só em Deus podemos fixar nossas raízes.
Lilian Carvalho
08.03.2012
A EXPERIÊNCIA DO TABOR DES-VELA NOSSA IMAGEM VERDADEIRA
“Transfigurar-se é ascender a ladeira íngreme do Tabor até mergulhar a cabeça na nuvem do não-saber. É um aspirar sem querer, acreditar sem ver, esperar sem ter, dar-se sem possuir. É reduzir todos os pontos cardeais do ego ao seu núcleo central: o amor” (Frei Betto).
Todos os grandes personagens bíblicos fizeram sua experiência de Montanha (lugar de intimidade com Deus; de escuta e discernimento; lugar onde receberam uma “missão” e foram abençoados). Do alto da Montanha esta bênção vai se espalhando e atingindo a todos; experiência pessoal de alcance universal.Também Jesus, o homem dos “vales” (lugar do compromisso, serviço...) sabia reservar momentos de Montanha (comunhão e escuta do Pai); ali Ele busca sentido e força para a sua missão.
No Monte Tabor Ele deixa “trans-parecer” seu coração; diante do olhar assombrado dos discípulos Ele “des-vela” aquilo que a visão superficial não capta: Ele é todo compaixão, bondade, acolhida, amor...Jesus de Nazaré foi o homem que não pôs obstáculos ao Mistério para que se expressasse n’Ele; Ele foi pura transparência da Fonte originante, revelação do Rosto do Pai.
Como seguidores de Jesus, devemos saber criar em nossas vidas, espaço e momentos de Montanha (plenitude, silêncio, interioridade, escuta, discernimento); isso possibilita uma prática eficaz, um compromisso duradouro, uma decisão enraizada, uma presença transformadora nos “vale da vida”.Subir à Montanha nos possibilita ler os horizontes e perceber se estamos caminhando na direção certa; isso implica tomar distância do ritmo diário, descobrir novos caminhos e novas decisões...
A Montanha nos faz perceber (a partir do alto) certos aspectos do vale que passam desapercebidos.Permanecer no vale, sem ter momentos de Montanha, é fechar-se, cair na rotina, não perceber novos horizontes, não abrir a cabeça e o coração, não ampliar a visão das coisas, da realidade, da história...Nossa ação no vale deve ser fruto do discernimento acolhido na Montanha. A Montanha nos devolve ao vale com outra visão, outro dinamismo; a Montanha ilumina, dá sentido e sabor à nossa vida no vale.O vale é o lugar do compromisso, do trabalho, da construção... mas iluminado pela experiência da Montanha. Todo gesto no vale tem plenitude, tem ressonâncias... a partir da Montanha.A Montanha também nos revela que Deus está “trabalhando” no vale e nos impulsiona a “trabalhar” com Ele na mesma direção.
A Montanha não é lugar só do encontro íntimo com o Senhor, mas também lugar do encontro com o melhor de nós mesmos, nosso ser essencial; no silêncio do monte poderemos perceber quem somos nós. Por isso a transfiguração é também descoberta do “eu”, da própria realidade pessoal, do Mistério que habita em nós. É nessa manifestação divina que “descobrimos a nós mesmos”. Começamos a descobrir o nosso ser (único, original, sagrado...) quando “mergulhamos” no misterioso relacionamento com Deus e quando permitimos que o “mistério experimentado” se torne fonte de nossa identidade.Nossa vocação é “trans-figurar-nos”, superar nossa própria figura, ir além de nossa aparência para captar nossa originalidade e riqueza interior, nosso “eu original”.
Essa é a nossa verdadeira identidade; em certo sentido, é como se recordássemos quem somos e, ao recordá-lo, iniciamos um caminho de volta à casa (as “três tendas”). “Voltar à casa” é deixar transparecer aquilo que é mais nobre em nós; é reconhecer que somos Plenitude que transborda, Fonte inesgotável de sonhos, criatividade, inspirações...Cair na conta de nossa condição de “filhos/as amados/as” equivale a reconhecer-nos como transfigurados. E é isso mesmo que se pode afirmar de cada ser humano: cada um de nós é “filho amado”, nascido daquela mesma Fonte e, ao mesmo tempo, transparência dela.
Todo ser humano possui dentro de si uma profundidade que é o seu mistério íntimo e pessoal; trata-se do “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside o lado mais positivo da pessoa, que só uma experiência de transfiguração é capaz de des-velar.É aqui, onde a pessoa encontra a sua identidade pessoal; trata-se do coração, da dimensão mais verdadeira de si, da sede das decisões vitais, lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde partem as suas aspirações e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
Trans-figurar é deixar trans-parecer toda essa riqueza interior. E isso não é fácil; normalmente cobrimos nossa verdade com máscaras ou com um papel que interpretamos. Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de avaliação (ativismo, rotina, angústias, trabalho sem sentido; mundo fechado, sem horizontes, sem direção...)O cotidiano faz-se rotineiro, convencional e, não raro, carregado de desencanto. Frequentemente vivemos o cotidiano com o anonimato que ele envolve; e isso nos des-figura, desumanizando-nos.Por debaixo somos... como realmente somos. Mas o ocultamos por medo de expor-nos aos outros, de não sermos compreendidos, de não valermos nada...; frequentemente preferimos ignorar partes de nós mesmos, apagar da consciência episódios pessoais; nosso “eu” se dissocia e se desintegra.
No entanto, a experiência do amor incondicional de Deus pode derrubar grossos muros, arrancar nossas máscaras, revelar-nos quanto valemos aos Seus olhos e dar-nos uma nova liberdade para sermos nós mesmos.Na Montanha somos olhados por Ele em profundidade e esse olhar revela nossa verdade mais original.Trata-se de um olhar de aceitação, de amor, que nos faz descobrir o quanto valemos, que nos chama à vida; que nos livra do mundo de sombras, medos e inseguranças; que nos faz descobrir o gosto de viver sem máscaras, como alguém respirando ar puro.
Nos caminhos das Montanhas, sentimo-nos livres de horários fixos, apegos, modas, propagandas, violências, normoses, incompreensões e intolerâncias, e aprendemos o serviço e a entrega incondicional aos outros. É a partir das Montanhas que devemos colocar as bases firmes para edificar uma cidade fraterna e livre. Na Montanha, nunca se conjugam os verbos: escravizar, desprezar, irritar, estafar, odiar, tiranizar, encadear, encarcerar, impôr, fazer calar, humilhar, não aceitar nem compartilhar...
Acima, sobre os cumes, brilha sempre o Sol, que queima os farisaismos, egoísmos, violências e injustiças, que costumam ser produtos da cidade.Subir uma Montanha exige força de vontade e esquecer-se da comodidade, droga atual que tanto debilita a colaboração, a solidariedade, a compreensão e a entrega, pedras angulares de toda sociedade livre.A experiência da Montanha não é para permanecermos aí, isolados e acomodados, mas para “descer” à vida cotidiana, com todos os seus desafios, e viver ali o que vimos, a partir de uma atitude de bondade, compaixão e serviço.
Texto bíblico: Mc. 9,2-10
Na oração:
- sentir como Deus nos conhece e nos ama como somos;
- quê máscaras você usa habitualmente? quê papéis você representa?
- como você se sente quando atua com essas máscaras?
A oração faz emergir à consciência uma nova imagem de nós mesmos e indica com o dedo uma área da nossa personalidade que necessita ser trans-figurada com criatividade; ela promove um desenvolvimento criativo, eliminando a distancia entre a imagem real e as falsas imagens que habitam o nosso interior.Através do encontro com o Senhor, no silêncio da montanha, a oração revela quem somos realmente, e amplia nossa vida para além de nossas pequenas fronteiras. Com efeito, orar é aproximar-nos da “verdade que nos faz livres”; livres para sermos “nós mesmos”, chegar a ser aquilo para o qual somos chamados a ser.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.03.2012
«E logo o espírito o impeliu para o deserto. E ele esteve no deserto quarenta dias, sendo tentado por Satanás» (Marcos 1, 12).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do deserto. Para que o teu coração se deixe purificar. Da tentação de tudo possuir. Do egoísmo do não-compromisso. Da ganância do isolamento. Ou da onipotência de tudo realizar. E querer ser deus. E da ousadia de não saber esperar. E da certeza de possuir a verdade.
Pede à Quaresma que te mostre o caminho do deserto. Onde Jesus te dará o pão da Palavra e do silêncio. No deserto o coração saberá encontrar o silêncio que regenera e reinventa. No deserto o silêncio fará do teu coração uma fonte de onde pode jorrar a verdade de Deus.
«Seis dias depois, Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João, e os levou, sozinhos, para um lugar retirado sobre uma alta montanha. Ali foi transfigurado diante deles» (Marcos 9, 2).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho da montanha. Para que ouses subir ao lugar do encontro com o Deus da vida e da história. Na montanha contemplarás o Rosto. E fixarás nele o olhar. E descobrirás nele o teu rosto. E contemplarás todos os horizontes. Os do teu coração e todos aqueles onde o humano se espraia em tantos desafios.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho da montanha. E ousarás descer para que o teu olhar de encantamento incendeie a vida por onde passas. E sejas sinal de ressurreição.
«Chegou, então a uma cidade da Samaria, chamada Sicar… Ali se achava a fonte de Jacob... Uma mulher da Samaria chegou para tirar água.» (cf. João 4, 5-7).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do poço de Sicar. Sentado à beira desse lugar de encontros singulares está Alguém que te oferecerá água viva. Outrora uma samaritana deixou-se enamorar pelo olhar e pelo coração livre de um sedento. Também ela não ousou recusar dessa água que sacia todas as sedes.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do poço de Sicar. Para que Deus se sente contigo e te sacie. E o teu poço-coração possa recriar-se e ser fonte. E alimentar outras nascentes. Também as que teimam em não jorrar. E saciar todas as sedes e as de todos os que se cruzam com a borda do teu poço.
«Partiu, então, e foi ao encontro do seu pai. Ele ainda estava ao longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos» (Lucas 15, 20).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho para o abraço de Deus. O caminho para esse lugar onde a festa nunca termina. O caminho para esse lugar de onde saíste para viver a vida do sem rumo e do sem sentido. Porque querias ser livre. Porque querias escutar as mil melodias que ainda não tinham sido tocadas no teu coração. Em vez disso a vida empurrou-te para um lugar de desespero onde nem as bolotas eram tuas amigas.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho para o abraço de Deus. E ousa recomeçar. E ser filho. E vestir o traje da festa que o Amor prepara para ti a todo o instante.
«Não é preciso que vão embora. Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mateus 14, 16).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do coração do irmão. Daquele que está debruçado sobre o próprio coração em sangue. O coração daquele que a vida atirou para a beira da estrada e que agora espera um qualquer samaritano. O coração e a vida daquele que este tempo defraudou espera que tu sejas consolo e abrigo. Também abraço.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do coração do irmão. E ousa partilhar da tua pobreza. Daquilo que mesmo fazendo-te falta suavizará a dor de quem já nada tem. De quem já não tem onde morar ou de que se alimentar. Pede à Quaresma que te ensine o caminho da partilha e o coração do irmão pulsará com renovada esperança.
“Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só: mas se morrer, produzirá muito fruto” (João 12, 24).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho de Jerusalém. A cidade santa espera que os teus passos sigam firmes na senda d’Aquele que já fez o mesmo caminhar. Arrisca nesse seguimento. Mesmo que a luz teime em esmorecer dentro de ti. Mesmo que te impeçam de caminhar atrás do Mestre. A cidade santa espera por ti.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho de Jerusalém. Porque a vida e a felicidade que tanto desejas também passa por lá. Não ouses voltar as costas à cruz que a cidade te entrega. Segue atrás desse desejo de vida que nenhuma dor será capaz de enterrar. Pede à Quaresma que te ensine o caminho de Jerusalém. E deixa-te morrer. A terra que és será nova quando o milagre do grão de trigo irromper.
Pe. Manuel Afonso de Sousa, CSh
Diretor espiritual do Seminário Conciliar de S. Pedro e S. Paulo, Braga, Portugal.
In: site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal
Um dos mais espantosos apelos de Quaresma que conheço não foi assinado por um eclesiástico, nem por um teólogo, mas sim por um poeta. Escreveu-o T.S.Eliot em 1930, três anos após a sua conversão, e deu-lhe um nome austero, sem o cómodo encosto que por vezes é o dos adjetivos: chamou-lhe simplesmente “Quarta-feira de Cinzas”. Nesse poema, dizem-se três coisas fundamentais. Se as soubermos ouvir, percebemos que elas correspondem a caminhos muito objetivos (a mapas pessoais e comunitários) de conversão. E não é esse o desafio da Quaresma, e desta Quaresma em particular?
1. A Quaresma vem ao nosso encontro para que nos reencontremos. Os traços que o poeta desenha coincidem dramaticamente com os do nosso rosto: vivemos uma vida que não é vida, acantonada entre lamentos e amoques, sem saber aproveitar verdadeiramente a oportunidade que cada tempo constitui, como se tivéssemos capitulado no essencial, e passássemos a olhar para as nossas asas (e para as dos outros) sem entender já o papel delas. “Esmorecendo, esmorecendo”.
2. A Quaresma vem ao nosso encontro para nos devolver ao caminho pascal. O que é que nos dá o sentido de redenção no tempo? – pergunta o poema. E o poema evangelicamente responde: o sentido de transformação é-nos dado quando aceitamos trilhar um caminho. O que nos permite passar do cerco das coisas triviais à revigoração da fonte, o que do sono nos dá acesso à vigília iluminada da vida é aceitarmos o desafio de nos fazermos de novo à estrada, e à estrada menos óbvia e mais adiada que é aquela interior. A Páscoa é a grande possibilidade de revitalização. Mas é preciso consentir naquela imagem brutalmente verdadeira do profeta Ezequiel: por agora somos mais uma sucata de restos, do que uma primavera do Espírito.
3. A Quaresma vem ao nosso encontro para que a tensão criadora do Espírito de Jesus redesenhe em nós a vida. Interessantes são os verbos que o poeta usa como prece: “que sejamos instigados”, “que sejamos sacudidos”. A Quaresma faz-nos passar do “deixa andar”, e do viver espiritualmente entorpecido ao estado da corda tensa. Aquela que é capaz de avizinhar da nossa humanidade reencontrada a música de Deus.
José Tolentino Mendonça
in: site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal
13.02.2012
“Deus é Criador, e dos escombros constrói novidades surpreendentes”
Nos Evangelhos encontramos uma estreita vinculação entre perdoar e curar. O perdão tem um indubitável efeito terapêutico, e a cura dos enfermos é revelação da presença da misericórdia de Deus. Em seu caminho Jesus cura perdoando os pecadores e dando vida aos que estão envolvidos nas amarras da enfermidade e da morte. A experiência de sentir-se perdoado impulsiona o enfermo para além da sua situação vivida. É, portanto, um elemento prévio à cura.No NT, alguns textos nos fazem perceber que o perdão reconciliador de Deus é necessário para vivenciar e reconhecer a cura. Ex: paralítico toma seu leito e caminha curado como sinal do perdão dos pecados (Mc. 2,1-12). A reconciliação é um dom que gera harmonia e paz.
Em Jesus, as curas se convertem em resposta de Deus à dura realidade da condição humana marcada pelo sofrimento e exclusão e que clama uma contínua re-criação por parte de Deus.Jesus é presença visível da misericórdia re-criadora de Deus. Nesse sentido, perdoar é re-criar. Deus re-cria o ser humano a cada instante. Cada dia que passa é um perdão sempre novo, pessoal, criativo, mas também discreto e silencioso. Um perdão que abre um futuro cheio de possibilidades; um dom que permite o ser humano ir além de si mesmo.Só o amor misericordioso de Deus reestrutura as pessoas por dentro, abrindo-lhes horizontes maiores de coragem, responsabilidade e compromisso.O perdão aparece, no ministério de Jesus, como elemento terapêutico de uma práxis de regeneração que faz com que o ser humano viva, apesar do pecado, e cujo primeiro suposto terapêutico é a misericórdia.Para além de sua autoridade, os milagres mostram a reação de Jesus frente à dor dos pobres e fracos. A misericórdia é n’Ele virtude e princípio de sua atuação ética; é ela que quase “obriga” Jesus a curar.Os milagres são sinais poderosos que surgem da dor de Jesus diante do sofrimento alheio, em especial os enfermos. À luz de Jesus a misericórdia é mais que compaixão pela desgraça, é ternura diante de um alguém gestado nas entranhas do Deus Pai-Mãe. Jesus percorre a Galiléia e cura toda enfermidade e dolência, cura a situação de solidão de uma multidão desamparada. Cura, em definitiva, a carência de Deus.
Jesus insiste fortemente sobre o perdão, porque este é uma necessidade vital quando a vida foi ferida.O perdão re-situa as pessoas na grande corrente da vida; busca restabelecer um vínculo positivo entre vidas feridas, vidas que se ferem e a vida que as rodeia.O perdão é uma experiência forte que nos re-conecta com a vida; ele quer abrir uma porta à vida, em um muro fechado de dores, de sentimentos feridos, de auto-agressividade. O perdão busca estabelecer uma aposta pela vida. É um ato de realismo, em profundidade e a longo prazo. Jesus vive comprometido com a vida saudável, e faz a vida crescer de forma integral, sem divisões. Ele devolve às pessoas a saúde em seus corpos, em suas emoções, projetos e relações. Jesus vê nas enfermida-des uma ocasião para a manifestação da atividade salvífica de Deus. Para as palavras saúde e salvação o latim utiliza um mesmo termo: “salus”. A saúde não é alheia à salvação que Jesus traz. A recuperação da saúde e a salvação que Deus desperta estão em íntima relação com as fontes de energia curativas e a capacidade interna de regeneração do próprio ser humano.A proximidade de Jesus põe em movimento grandes dinamismos de vida do doente; debaixo do costume paralisado do enfermo, existe uma possibilidade de vida nova nunca posta em movimento. Jesus recons-trói “pessoas quebradas”. As obras que Ele realiza consistem em libertar o ser humano de sua inati-vidade e dar-lhe capacidade de ação. Podemos chamar Jesus de terapeuta do perdão: com seu perdão ativo desencadeia o processo de conversão, mobiliza todas as dimensões da pessoa, reestrutura o universo relacional e abre a interioridade à alteridade. Como presença visível da misericórdia, Jesus se dirige a cada com a força da torrente que jorra para a vida eterna e quer arrastar a todos para aquela Fonte de comunhão que o Pai deseja, a fim de que toda a vida esteja exposta ao seu amor.Em última análise, o perdão é um ato de fé na bondade fundamental do ser humano.
O paralítico do evangelho de hoje é um homem afundado na passividade: incapaz de mover-se por si mesmo e sem liberdade para desenvolver-se como ser humano; não fala, não diz nada; deixa-se conduzir pelo outros; vive preso ao seu leito, impedido de ser plenamente humano.Toda a cena se desenrola “em casa”, não no templo. O templo era o paradigma da instituição, mas havia deixado de ser o lugar da presença de Deus, porque seus dirigentes fizeram dele lugar de exploração e violência aos mais fracos e excluídos.Jesus passa da sinagoga, lugar oficial da religião judaica, à casa, lugar onde se vive a vida cotidiana junto àqueles mais queridos. Nessa casa vai-se gestando a nova família de Jesus.A casa não é lugar onde se vive a Lei, mas o lar onde se aprende a viver e conviver de maneira nova, à maneira de Jesus.
Sabemos que a enfermidade e o sofrimento tem muito a ver com a fragmentação, a dispersão e a divisão.Há muitos enfermos que, além da dor física, sofrem com sentimentos de culpabilidade, impotência, fragilidade, solidão... A reconciliação contribui a diminuir o sofrimento e potencia a saúde na dupla direção: integração pessoal e comunhão com os outros, tal e como fez Jesus.Ser curado por Jesus gera harmonia, equilíbrio saudável, unificação interior e reconciliação com a vida, com o que se é e com o que foi:“Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa” (Mc. 2,11). Jesus rompe as amarras da enfermi-dade que paralisa a pessoa, liberando o potencial humano presente em cada um. Ele desperta em cada enfermo a responsabilidade frente à própria saúde. É um chamado a evitar as atitudes patogênicas. Assumir este compromisso com a própria vida gera liberdade.
O valor terapêutico e reconciliador do perdão é central para restabelecer as fraturas da relação do ser humano consigo mesmo, com os outros, com a natureza e com Deus.Disse-lhe Jesus: “Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa!”O paralítico levantou-se imediatamente e, carregando o leito, saiu diante de todos.A ordem de vida é dada por Jesus. O homem obedece. Não sabe quem é Jesus, mas pressente que Aquele que lhe fala é portador de vida. O paralítico poderia ter perfeitamente permanecido deitado, mas adere à ressurreição. Jesus não o toca, como faz com outros enfermos; não o toma pela mão, para ajudá-lo a levantar-se, pois a cura desse homem passa, precisamente, pela recuperação da confiança em sua própria identidade. O doente deve escolher levantar-se por si mesmo; deve reencontrar seu desejo de viver.As três ordens que Jesus dá ao paralítico já dizem tudo: “levanta-te” (coloca-te de pé, recupera tua dignidade, libera-te daquilo que paralisa tua vida); “toma o teu leito” (aprende com o passado e abre-te ao futuro com fé renovada); “vai para tua casa” (aprenda a conviver).
O leito também não é abandonado imediatamente. É pedido ao homem curado “carregá-lo” e não jogá-lo fora. Carregar seu leito é um ato interior preciso; eis um verbo ativo, opondo-se à passividade do “estar deitado” e “ser carregado”. Deixa de ser “peso morto” para ser “companheiro” de estrada. Carregar seu leito é inverter o movimento, mudar de direção, substituir um movimento de morte por um movimento de vida. Antes, o leito o carregava; agora é o homem curado que carrega seu leito.Isto significa que o enfermo não partiu do nada, não partiu do zero, mas ergue-se, coloca-se em marcha a partir do passado. Carregar seu leito é romper com a prisão a seu mal. É tomar consciência de seus verdadeiros problemas, livrar-se do “vitimismo” e não mais esperar que os outros o carreguem.Terá ele um trecho do trajeto a perfazer, carregando seu leito. Depois, virá o tempo de lançá-lo fora e, então, tornar-se-á livre da dependência que lhe fizera tanto mal.
Na oração: não é possível seguir Jesus vivendo como “paralíticos” que não sabem como sair do imobilismo, da inércia ou da passividade; há muitas atitudes petrificadas, traumas paralisantes, feridas não cicatrizadas que nos impedem viver “como Deus manda”. Só o perdão terapêutico de Deus reequilibra nossa existência a nos impulsiva a viver a comunhão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.05.2013
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