“Os muitos pecados que ela cometeu estão perdoados, porque ela mostrou muito amor” (Lc. 7,47)
11º Dom. Tempo Comum
S. Lucas, o evangelista da misericórdia, não explica como uma mulher pecadora, conhecida de todos, conseguiu entrar na casa de Simão, justamente no momento mais íntimo de uma ceia com Jesus. No entanto, a entrada brusca daquela mulher deixa transparecer o transtorno e o desconcerto suscitados em Simão e nos outros convidados.
O relato de Lucas põe em confronto duas maneiras diferentes de reagir perante a “mulher pecadora”: uma, de acolhida e proximidade; outra, de julgamento e distância. De um lado, os olhares questionadores dos convivas se voltam para Jesus, convidado de honra para a ceia; de outro, a atenção repreensiva concentra-se sobre a mulher pecadora, que ousou entrar no recinto sem pedir licença. O fariseu preocupa-se com a presença de uma pecadora em sua casa, e, além disso, fica desiludido a respeito de Jesus, que considerava profeta e mestre. Fica chocado com o fato de que Jesus se deixar tocar por uma prostituta.
Enquanto isso, entre o Mestre e a mulher se instaura uma surpreendente compreensão e acolhida; ela, sem se preocupar com nada e nem com ninguém, aproxima-se do protagonista do banquete: Jesus. Dirige-se a Ele e curva-se a seus pés, banha-os com suas lágrimas, enxuga-os com seus cabelos e perfuma-os com o óleo precioso que levava consigo. Todos os seus gestos levam a intuir que algo de extraordinário havia acontecido em sua vida. Jesus, por sua vez, sem expressar um mínimo de censura, permite àquela mulher realizar o que seu coração lhe sugeria; certamente ela O estava seguindo de longe, havia algum tempo, esperando uma oportunidade especial para aproximar-se d’Ele.
Silenciosamente, abandona-se à eloquência de seus gestos, que iam além de qualquer palavra, que expressavam o envolvimento de toda a sua vida na nova relação, criada em seu coração pela presença de Jesus. De fato, a pecadora, mesmo sentindo-se condenada por Simão e pelos seus amigos, encontrou e descobriu, nas palavras e na pessoa de Jesus, de modo novo e fascinante, o rosto misericordioso de Deus, a ponto de sentir seu abraço paterno. Ela sentiu-se seduzida por Jesus, o “justo”, o amigo dos publicanos e dos pecadores.
O modo como Jesus se coloca em relação com a pecadora permite a esta mulher fazer da sua vida de erros um trampolim para a sua humanização. Jesus não contabiliza os pecados, porque esta mulher demonstra com seus gestos o quanto ama. Jesus não classifica as pessoas em puros e impuros. Ele abraça a realidade em sua totalidade, integrando-a.
O passado da pecadora não cria obstáculos à aceitação de sua conduta presente. Os erros, os “numerosos pecados” da prostituta parecem agora libertá-la, dispondo-a a uma experiência de compaixão profunda por si mesma. Ela acolhe e celebra a vida em sua totalidade. A aceitação restabeleceu sua vida. Não foi o passado de erros que determinou a atitude de Jesus para com esta mulher, e sim sua conduta no presente.
Jesus tem um coração expansivo, voltado para todas as direções, onde quer que se encontre a realidade limitada e frágil. O encontro com Ele não desperta sentimentos de culpa; as pessoas podem retirar-se em paz. Jesus faz da misericórdia o verdadeiro evento divino. Nele, a misericórdia torna-se o elemento constitutivo não só do divino, mas também do humano.
Na casa de Simão, aquela mulher não fala e não mostra o seu rosto. Mas, seus gestos manifestam a onipotência do amor daquele Mestre que, como verdadeiro profeta, sabe ler no fundo do coração das pessoas que encontra.
Nas lágrimas daquela mulher brilha a predileção de Jesus pelos pobres e pecadores; nos seus cabelos se nota a ternura envolvente do Mestre; no perfume derramado em seus pés, experimenta-se a nova parábola da gratuidade do amor insaciável de Deus, sem condições e sem exigências.
Enquanto os comensais não entendem a ternura e a acolhida de Jesus para com a pecadora, a mulher, ao contrário, conhece o mistério inefável do amor e abandona-se a ele. Libertada de seus pecados e amada, a mulher deixa a casa de Simão, levando consigo no coração um dom inesperado: o perdão, que a inunda de paz e alegria. A pecadora, atraída pelo amor terno e misericordioso de Jesus, finalmente experimenta a gratuidade e a doçura do perdão para consigo.
A pecadora muda a sua vida quando percebe ser amada por um amor envolvente, gratuito, antecipado. Assim, ela se torna uma nova parábola da ternura e da misericórdia. Por outro lado, Jesus desvela a maneira medíocre de amar do fariseu, desprovido de piedade e calculista no julgamento. O fariseu perfeito tem comportamento frio, legalista, insensível, indiferente, rígido.
O perfeccionista é um ser anestesiado. Severo consigo mesmo, exigente e rigoroso com os outros. Aquele que procura a perfeição não só se distancia dos outros como também se distancia de si mesmo. Não há perfeccionista que não seja inquisidor, nem inquisidor que não seja perfeccionista.
A tendência à perfeição oprime a pessoa até sufocá-la; sendo excessivamente exigente, oprime e sufoca também os outros. Por isso, a tendência à perfeição é uma doença do espírito, um eu em conflito consigo mesmo. O perfeccionista vive uma batalha interior, uma batalha que jamais se vence. Quem se deixa guiar pela ideia de perfeição, cedo se dará conta de que não poderá abraçar a vida. Permanecerá confinado num eu inchado e vazio, que caminha sobre pernas de barro.
É por isso que Simão, bom conhecedor e observante da Lei, sente um autêntico embaraço pela situação inesperada que se criou: um acúmulo de pensamentos, sentimentos e juízos agitam o seu coração. A presença de Jesus cria-lhe problemas, coloca em risco o seu prestígio, a sua reputação. Certamente, sua estima para com Jesus, considerado e admirado por todos, começa a diminuir.
Jesus capta o que o fariseu “estava refletindo” e narra ao anfitrião uma história cuja intenção é por em evidência um sentimento profundo, uma atitude compassiva. Jesus tenta abrir, não a razão do fariseu, que já está aberta (“julgaste bem”), mas sim seu coração, que ainda está fechado. Jesus compartilha a experiência em que se sentiu pessoalmente “tocado” em profundidade. Ele pede um tipo de compreensão compassiva face ao que está ocorrendo frente a todos.
Simão, o fariseu, está presenciando algo que tem correlação com o Deus que Jesus anuncia. A perturbação e o desconcerto do fariseu nascem no momento em que se dava conta da ternura e compaixão demonstradas por Jesus a uma pecadora. Jesus ama Simão e a mulher por aquilo que são. Entre ambos, porém, a pecadora se sente mais amada e perdoada, mesmo sem ter nenhum merecimento.
Texto bíblico: Lc. 7,36-50
Na oração: Quais são as “marcas da perfeição” impregnadas no seu interior pela formação familiar, pela religião, pela cultura...? É possível fomentar a autoestima, desenvolver e realizar o melhor de si sem se ver preso pelo mecanismo da perfeição?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana –CEI
13.06.2013
“Ao vê-la, o Senhor sentiu compaixão para com ela e lhe disse:’Não chores!’” (Lc. 9,13)
No evangelho de hoje, Lucas revela-se um artista: com poucas palavras consegue pintar o quadro tão bonito do encontro das duas procissões: a procissão da morte que sai da cidade e acompanha a viúva que leva seu filho único para o cemitério; a procissão da vida que entra na cidade e acompanha Jesus. As duas se encontram na pequena praça junto à porta da cidade de Naim.
Frente a esta dura realidade da morte de um jovem e do abandono de uma viúva, Jesus sente estremecer suas entranhas. É o sentimento de compaixão que aflora e o impulsiona à ação. Jesus não consola nem solicita resignação. Sua compaixão incontrolável o move a transgredir a norma legal que proibia tocar o corpo de um defunto, correndo o risco de ser contaminado.
A compaixão de Jesus não conhece fronteiras. Desencadeia uma práxis capaz inclusive de encontrar saída diante daquilo que parece irreversível, como é o caso da morte.
É a compaixão que leva Jesus a falar e a agir. Compaixão significa literalmente “sofrer com”, assumir a dor da outra pessoa, identificar-se com ela, sentir com ela a dor. É a compaixão que aciona em Jesus a força da vida sobre a morte, energia re-criadora.
Deus é compassivo: esta é a base da atuação de Jesus. Ele nunca fala de um Deus indiferente, frio, afastado dos homens, de costas aos nossos problemas. Do mesmo modo vemos que Jesus não apresenta um Deus preocupado por seus interesses, sua glória, sua liturgia, seu templo, seu sábado… A preocupação do Deus de Jesus é o ser humano, sobretudo aquele que mais sofre e é excluído.
O Deus do templo, o Deus da lei e da ordem, o Deus do culto e do sábado não poderia gerar a atividade profética de Jesus como curador da vida e defensor dos últimos. Segundo o AT, a compaixão de Deus pelo povo nasce das entranhas e se manifesta como ternura materna. O termo hebreu “rehem”: útero, entranhas, ventre materno, está em sintonia com a raiz “rhm” (compadecer-se). Deus é feminino e é mãe na compaixão.
A compaixão é a reação primeira de Deus diante de suas criaturas. Poderíamos dizer que a primeira coisa que Deus sente ao olhar-nos é compaixão. Jesus diz que Deus sente para com seus filhos e filhas o que uma mãe sente para com o filho que carrega em suas entranhas, ou seja, Deus nos carrega em suas entranhas; Deus não exclui ninguém e em seu coração compassivo cabem todos.
É precisamente esta compaixão de Deus a que move Jesus em direção as vítimas inocentes: os maltratados pela vida ou pelas injustiças dos poderosos. É a compaixão de Deus que faz Jesus tão sensível ao sofrimento e à humilhação das pessoas. Sua paixão pelo Deus da compaixão se traduz em compaixão pelo ser humano.
A partir desta experiência de um Deus compassivo, Jesus vai introduzir um princípio de atuação, a compaixão. Chegou o momento de recuperar a compaixão como a herança decisiva que Jesus deixou à Humanidade, a força que deve impregnar a marcha do mundo, o princípio de ação que deve mover a história para um futuro mais humano. É a compaixão, ativa e solidária, aquela que nos há de conduzir para esse mundo mais digno e ditoso querido por Deus para todos.
Para muitos, pode parecer que a compaixão não esteja de moda, pode ser sentimentalismo, uns são mais bondosos, tem mais coração, outros não... mas não é assim. Para Jesus, a compaixão é um princípio de ação; simplesmente é interiorizar a dor alheia, que doa em mim o sofrimento dos outros e reagir fazendo o possível por essa pessoa para aliviar seu sofrimento.
Quem sofre possui uma autoridade indiscutível, porque ele fala e toca o profundo de cada ser humano, toca aquelas instâncias em que a essência humana reage como cuidado e compaixão essencial. Quem já foi tocado por um olhar de uma pessoa pobre ou sofredora e deixou que este olhar penetrasse no fundo do seu coração sabe que não sai “ileso” desta experiência; algo mudou dentro de si. É uma experiência que o modifica profundamente, tanto que muitos interpretam esta experiência como uma “experiência de Deus”, uma experiência de ter conhecido no rosto do pobre o rosto de Cristo.
De fato, a compaixão não é um sentimento menor de “piedade” para com os fracos e nem é uma virtude a mais, mas o único caminho para reagir frente ao clamor dos que sofrem e para construir um mais humano. Além disso, a compaixão é a única maneira de começar a nos parecer com Deus. O modo de olhar o mundo com compaixão, o olhar as pessoas com compaixão, o olhar os acontecimentos e a vida inteira com compaixão, é a melhor maneira de nos parecer com Deus.
Um exemplo concreto desse “amor compassivo” está presente na “revivificação” do filho da viúva de Naim. Se observarmos bem, descobriremos que neste texto está presente o “modo de proceder” de Jesus que brota da experiência de Deus compassivo e que se expressa nas três atitudes: a das mãos, a da boca e a do coração. O coração: antes de mais nada Jesus, vendo a mulher, “foi tomado de compaixão por ela”.
A boca: a palavra boa, amigável, com a qual Jesus se aproxima da mãe e lhe diz: “Não chores mais”. As mãos: o gesto bom de Jesus que se aproxima da padiola, toca-a e diz: “Jovem, eu te ordeno, levanta-te”. A compaixão – que é o coração – faz brotar na boca a palavra consoladora e depois se expressa nas mãos, através de um gesto eficaz.
A com-paixão não é passiva, mas sim altamente ativa. Com-paixão é a capacidade de com-partilhar a própria paixão com a paixão do outro. Trata-se de sair de si mesmo e de seu próprio círculo e entrar no universo do outro enquanto outro, para sofrer com ele, para cuidar dele, para alegrar-se com ele e caminhar junto a ele, e para construir uma vida em comunhão e solidariedade.
É precisamente isto o que Jesus deseja quando afirma “sede compassivos como o Pai é compassivo”. Em sua mensagem e sua atuação profética pode-se escutar este grito de indignação absoluta: o sofrimento dos inocentes deve ser tomado a sério; não pode ser aceito como algo normal, pois é inaceitável para Deus.
A compaixão que Jesus introduz na história reclama uma maneira nova de relacionarmos com o sofrimento que há no mundo. Para além de imperativos morais ou religiosos, Jesus está exigindo que a compaixão penetre mais e mais nos fundamentos da convivência humana e se torne um “estilo de vida”.
Passos para a oração
1. Coloque-se na presença de Deus.
2. Peça a graça: “Que o Espírito me ajude a ver-me um pouco mais como Ele próprio me vê”.
3. Leia e “saboreie” a Palavra de Deus: Lc 7,11-17
4. Imagine agora os dois cortejos: quando Jesus (a Vida) entrava na cidade de Naim, a Morte saía.. Dois cortejos diferentes: uns seguem a Vida; outros a Morte! Onde você se encontra? E quem é o morto? Um jovem. Ironia da vida!... Aquele que tinha tudo para viver, está morto!..
Quantos jovens estão mortos! Cedo, perderam o sentido da vida, sem ideal, sem projeto, sem sonhos. Incapazes de uma decisão. Esperam. Jesus se aproxima dessa realidade e grita: “Jovem, levanta-te!” “Levanta-te do desânimo, da indecisão! Entra no meu Caminho!” Jesus nos quer no seu cortejo, como discípulos.
Deixe que a vida entre em você; que ela chegue ao mais profundo, onde jazem “seus mortos”.
5. Escute a palavra interior que brota dentro de você... Sentimentos, pensamentos... desejos... apelos...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
03.06.2013
“...não sou digno de que entres em minha casa, mas dize uma palavra e o meu servo ficará curado”
O centurião romano atribui força e eficácia à palavra de Jesus. Por sua experiência do mundo militar ele sabe que tal “palavra” realiza o que expressa, independentemente da presença de quem a profere; por si só a palavra tem uma força expansiva e um dinamismo criativo.
De fato, no princípio não está o silêncio de uma noite primordial, mas a Palavra criadora de Deus, inauguradora da Criação. Deus comunica sua Palavra e o que Ele diz é Criado. O mundo foi criado porque foi dito: “Que exista a luz! E a luz começou a existir”. A Criação é um acontecimento que surge da Palavra.
“No princípio era a Palavra”, diz o prólogo de S. João. Deus é Palavra e, em Jesus, ela se faz carne. Chegada a plenitude dos tempos, Deus disse sua Palavra definitiva e insuperável em Jesus. Ele, em sua vida e missão, prolonga a Palavra criativa de Deus; começa a falar uma Palavra sedutora a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica.
A partir das periferias do mundo surge um canto de vida nova, a sabedoria oculta a muitos sábios e expertos. É uma sabedoria que vem de Deus, desconcertando a sabedoria exibida a partir do centro. Suas palavras revelam uma força ressurrecional, que é o sentido belo do viver; através delas Jesus põe em movimento a realidade, reconstrói pessoas feridas em sua dignidade, comunica saúde onde há enfermidade, faz emergir a vida onde impera a morte.
Na Bíblia, “uma palavra é sempre mais que uma palavra”. Ela é acontecimento relacional na vida original de cada um; no interior de quem a escuta, ela é vida, movimento... ela tem um sentido particular, único...; não há começo nem fim, mas movimento permanente, interação sempre mais profunda...
Jesus, no encontro com a realidade, extrai palavras significativas, previamente cinzeladas e incorporadas no seu interior, onde elas revelam dinamismo, sentido e alteridade; sua palavra brota de uma vida interior fecunda e conduz a uma vida comprometida.
“Nós somos palavra”. A palavra adquire a sua força vital no interior da relação dialogal, na singularidade de cada um, no seu ritmo, no seu tempo... Quando não existe a troca de palavras, ditas e ouvidas, a vida é mutilada nas suas expressões mais vitais, as espirituais. As palavras pesam. Talvez porque sejam a mais genuína invenção humana.
Nosso mundo está repleto de “palavras”. Em todos os lugares aonde vamos somos cercados por elas: palavras murmuradas com suavidade, proclamadas em altas vozes ou berradas irritadamente; palavras faladas, recitadas ou cantadas; palavras em discos, em livros, em muros ou no céu; palavras de muitos sons, muitas cores ou muitas formas; palavras para serem ouvidas, lidas, vistas ou olhadas de relance; palavras que oscilam, se movem devagar, dançam, pulam ou se agitam.
Palavras, palavras, palavras! Elas formam o piso, as paredes e o teto de nossa existência.
A palavra pode ferir ou curar, construir ou destruir, distanciar ou aproximar... Proferida no calor aquecido por mágoas ou ira, penetra como flecha envenenada. Obscurece a vista e instaura a solidão. Mas a palavra também salva. Uma expressão de carinho, alegria, acolhimento ou amor, é como brisa suave que ativa nossas melhores energias. É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Essas palavras são bem-aventuradas, pois são capazes de fazer crescer, sustentar, edificar as pessoas para o convívio social, humano-afetivo, espiritual. São palavras que trazem luz e calor, infundem confiança e segurança.
As palavras jamais deixam as coisas como estão. Elas não se limitam a transmitir uma mensagem; elas tem uma força operativa, desencadeiam um movimento... Quando falamos algo acontece, muda alguma coisa dentro de nós e ao nosso redor. Aparentemente nada mudou; mas é possível que tudo tenha mudado. A palavra foi além de sua vibração sonora. Ela contribui para criar o clima, o ar que respiramos... um ambiente que nos plenifica, nos nutre, favorece o encontro e o compromisso e abre possibilidade de viver
Às vezes temos a sensação de que as palavras nos saturam: nas aulas, na televisão, nos jornais, nas liturgias, na Internet... Sem dúvida, em nossa sociedade pós-moderna, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Esvaziamos as palavras, adocicamo-las, manipulamo-las ou as submetemos a uma violenta perda de significados segundo nossa conveniência. E S. Inácio, nos Exercícios Espirituais, nos diz que “o amor consiste mais em obras do que em palavras”.
É verdade, mas pôr o amor nas obras não impede pô-lo também nas palavras, e isso implica comprometer-nos a cuidar da qualidade das palavras. “Cuidar a palavra é cuidar o mais específico do ser humano, enquanto que é através dela que se expressa nosso mistério” (Melloni, sj).
O fato é que há palavras que, mesmo que não sejam necessárias, tem uma força enorme. Podemos pôr muito amor nas obras e também empapar nossas palavras desse mesmo amor, porque nas palavras nos dizemos e nas obras nos realizamos.
Chegamos, assim, ao “interno conhecimento” da palavra, à reverência para com a palavra, por ser ela expressão externa da palavra interior escutada no silêncio, por ser palavra “dirigida” a Alguém. Talvez o que mais nos falte hoje em dia seja dirigir nosso olhar sobre “a palavra”, prestar atenção à palavra mesma a partir da nossa interioridade.
“Como os filólogos nos advertem, as palavras estão grávidas de significados existenciais. Nelas, os seres humanos acumularam infindáveis experiências, positivas e negativas, experiências de busca, de encontro, de certeza, de perplexidade e de mergulho no Ser. Precisamos desentranhar das palavras sua riqueza escondida” (L. Boff)
Nesse sentido, o silêncio é a arte de cinzelar palavras. Talhada pelo silêncio, mais significados elas possuem. O silêncio não é o contrário da palavra. É sua matriz, lapidador de palavras sábias. O tagarela cansa os ouvidos alheios porque seu matraquear de frases ecoa sem consistência. Já o sábio pronuncia a palavra como fonte de água viva. Ele não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo. Sabem os místicos que, sem calar o palavreado crônico, é impossível ouvir, no segredo do coração, a Palavra de Deus que neles se faz expressão amorosa e ressonância criativa.
No processo da oração, temos a oportunidade de aproximar a palavra à experiência, para resgatá-la da insignificância, do anonimato, fazê-la inédita, consciente e podê-la assim confrontar com a Palavra que, feito carne, entrou em nossa experiência histórica. A palavra recém-saída do forno da experiência está viva, quente... transforma a vida.
Textos bíblicos: Lc. 7,1-10
Na oração: Cave palavras nas minas do seu silêncio, palavras carregadas de sentido e de ânimo. Silêncio para poder dialogar com seu eu profundo, para ver o que há atrás de suas palavras, de seus sentimentos, de suas intenções... Silêncio para tentar ir ao coração de sua verdade. Pois somente no silêncio poderão germinar as palavras-vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana –CEI
29.05.2013
“Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos ao céu, abençoou-os, partiu-os..” (Lc. 9)
Comer e beber com outras pessoas é a coisa mais simples e importante que podemos fazer para reforçar nossa humanidade. Comer é uma experiência humana e espiritual; sentar-se com outras pessoas em torno de uma mesa é sagrado. Se por acaso pudermos ter alguns desconhecidos à mesa, melhor ainda. O alimento possibilita a conversa – é sinal visível do Amor. Lembremo-nos, é preciso tempo: “fast food não nos faz bem!”
Tempo para saborear e sorver, deliciar-se e conversar... Tempo para uma longa e lenta digestão de tudo o que é bom. O primeiro ingrediente é sempre o amor. Em intervalos regulares, é necessário festejar. É uma dessas coisas que não se questiona. Sobreviver é animal; festejar é humano; ser um “animal festivo” é ser divinamente humano. Deus adora festejar.
Cada vez que comemos e bebemos, comungamos com o outro, com a terra, com todo o Universo. O pão é vida concentrada; vida em forma de alimento. No repartir do Pão palpita a vida que transcende as fronteiras existenciais. Cada vez que comemos, o fazemos com profunda gratidão e veneração ao que recebemos, e compaixão pelos que não podem comer.
Cada bocado que mastigamos é um gesto sagrado: comungamos com o Todo, o Ser, a Vida. O que importa é que seja fruto da terra e do trabalho, sacramento da vida e do mundo novo. Comungamos com a grande Comunhão ou com o Mistério de Deus. Viver é com-viver.
É preciso ir a fundo no profundo significado e sentido desse gesto: partir o pão é o símbolo ancestral que nos revela as entranhas da humanidade, ou seja, compartilhar a necessidade.
Isso acontece em cada refeição, e a Eucaristia não é nada mais do que isso, porque não pode haver nada maior que uma simples refeição. O simples é o pleno. O cotidiano e natural é o mais sagrado. Jesus de Nazaré sonhava e anunciava outro mundo possível e o chamava “Reino de Deus”. E, para explicar como seria esse outro mundo, já neste mundo, não lhe ocorreu coisa melhor que organizar uma alegre refeição no campo: cada um levou e compartilhou o pouco que tinha; todos se saciaram e ainda sobrou muito. O pão nas mãos de Jesus era pão para ser partido, repartido e compartilhado.
Jesus anunciava o “Reino de Deus” como uma grande mesa com abundante pão e sem nenhum excluído. Sua religião é a religião da refeição; na verdade Jesus rompeu com a religião e com tudo aquilo que impedia que todos comessem juntos, que impunha jejuns, que declarava impuros alguns alimentos e proibia compartilhar a mesa com os chamados pecadores, que quase sempre eram os pobres.
Alguém teve a ousadia de afirmar que mataram Jesus por seu modo de comer; em suas refeições escandalosas e provocativas Ele anulava as fronteiras entre santos e pecadores, puro e impuro, sagrado e profano. Algo intolerável. Os dirigentes religiosos e as “pessoas de bem” o chamavam de “comilão e beberrão, amigo dos pecadores”.
Segundo os relatos dos Evangelhos, durante sua vida pública, Jesus transitou por muitas refeições, propôs a grande mesa da inclusão e, para culminar, organizou com seus amigos mais próximos uma ceia de despedida e de esperança. Ali, ao partir o pão e passar o cálice, pediu que se recordasse dele toda vez que comessem ou bebessem juntos, reavivando a esperança de construir o mundo que todos esperavam. Eles se transfigurariam e o mundo se transformaria em Comunhão toda vez que este gesto fosse repetido.
Assim fizeram seus seguidores: após a Ressurreição Jesus foi “reconhecido ao partir o pão”; foi reconhecido não porque estava no templo ou ensinava na sinagoga, mas porque partia o pão. Jesus fez do universo seu corpo e se faz pão para nós.
Por isso, no primeiro dia da semana, reuniam-se todos nas casas, oravam juntos, recordavam a mensagem de Jesus, comiam o pão, bebiam o vinho e a Vida ressuscitava. A isso chamavam, ‘ceia do Senhor” ou “fração do pão”. Tudo era muito simples e despojado.
Séculos depois, a simples refeição foi se complicando. A casa se converteu em templo, a refeição em “sacrifício”, a mesa em altar, o convite em obrigação, a partilha em exclusão... A festa de “Corpus Christi” pode ser ocasião propícia para voltarmos ao mais simples e pleno, para além dos cânones, rubricas, pompas e indumentárias que não tem nada a vez com Jesus. Basta nos reunir em um lugar qualquer, para recordar Jesus, compartilhar sua palavra, tomar o pão e o vinho, ressuscitar a esperança e alimentar o sonho do Reino. Essa é a Missa verdadeira, a verdadeira missão.
A transformação das relações humanas se dá através do partir o pão e do passar o cálice de vinho; como o pão é um, comer desse pão nos faz todos um. A Eucaristia faz de todos nós Corpo de Cristo. Daí o interesse da primitiva Igreja em que na Eucaristia comungassem todos do mesmo pão partido, com a finalidade de fazer visível essa unidade de todos. Ninguém ceia sozinho. Há um partir, um distribuir, mãos que se tocam, olhares que se encontram. E, em tudo isto, sensação como se fosse a de uma “conspiração”.
Conspirar, com-inspirar, respirar com alguém, juntos.
Conspiradores: respiram o mesmo ar. Jesus e os discípulos, comendo o Pão e bebendo o Vinho respiram o mesmo ar, o mesmo sonho, a mesma utopia do Reino.
É assim a comunidade dos cristãos, a Igreja: juntos, conspirando, mãos dadas, comem o pão, bebem o vinho e sentem uma saudade/esperança sem fim...
Tomar o pão e o vinho da Eucaristia é fazer memória de uma presença que nos compromete.
Discípulos de Jesus somos quando aprendemos a partir o pão. Reconhecemos os cristãos hoje quando partem o pão e não o armazenam. O pão armazenado, como o maná no deserto, se corrompe, apodrece.
Compartilhar significa não “monopolizar”, não permitir que haja necessitados entre nós. O pão partido é a vida compartilhada: meios, tempo, qualidades.
O cristão, além disso, compartilha seus ideais, seu entusiasmo, seu ânimo, sua fé, sua esperança. Também hoje Jesus precisa de nossas mãos para multiplicar os grãos; precisa de nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.
O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo. O pão sem coração gera divisões e conflitos. Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração! Deus precisa de nosso coração para que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão, energia de vida.
Textos bíblicos: Lc. 9,11-17 - 1 Cor. 11,23-26
Corpo de Cristo
Olhos inquietos por verem tudo. Ouvidos atentos aos lamentos, aos gritos, aos chamados.
Língua disposta a falar verdade, paixão, justiça…
Cabeça que pensa, para encontrar respostas e adivinhar caminhos, para romper noites com brilhos novos.
Mãos gastas de tanto servir, de tanto abraçar, de tanto acolher, de tanto repartir pão, promessa e lar.
Entranhas de misericordiosas para chorar as vidas golpeadas e celebrar as alegrias.
Os pés em marcha em direção a terras abertas e a lugares de encontro.
Cicatrizes que falam de lutas, de feridas, de entregas, de amor, de ressurreição.
Corpo de Cristo… Corpo nosso. (José María Olaizola, SJ)
Pe. Adroaldo Palaroso sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
27.05.2013
“Soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo. 20-22)
O têrmo “espírito”, nas tradições religiosas mais antigas, aparece vinculado ao vento, à respiração e à energia. “Ruah” em hebraico; “pneuma” em grego; “spiritus” em latim; “qi” (ou “chi”) em chinês; “prana” em sânscrito... Todos eles são termos que fazem referência a “alento vital”, “sopro de vida”, “energia”... e guardam uma estreita relação com a própria respiração. A partir do simbolismo apresentado pelas etimologias, podemos falar do Espírito como do Alento último de tudo o que é, como da Energia primeira que tudo move e da qual são criadas todas as coisas, como do Dinamismo vital que torna possível a vida e a expressão da mesma em infinitas formas...
A partir desta perspectiva, em tudo o que vemos, também estamos “vendo” o Espírito em ação; além disso, o reconhecemos como nosso núcleo mais íntimo, a Identidade mais profunda. E nos vem à memória as sábias palavras de Teilhard de Chardin: “Não somos seres humanos vivendo uma aventura espiritual, mas seres espirituais vivendo uma aventura humana”. Só assim pode-se captar adequadamente o que é a evolução em toda sua profundidade: o Espírito dorme nos minerais, desperta nos vegetais, sente nos animais e ama nos humanos. Ou, dito de outra forma: o Espírito dorme na pedra, sonha na flor, desperta no animal e sabe que está desperto no ser humano.
Tudo se move e se renova. Move-se o sol, a lua e a terra, o átomo e a estrela. Move-se o ar, a água, a chama, a folha. Move-se o sangue, o coração, o corpo, o espírito. Tudo se move, nada se repete. Tudo é calma e dança, quietude em movimento. O que não se move, morre; mesmo no que morre tudo se move. Move-se o Espírito de Deus, energia do amor, verdor da Vida. Move-se Deus, o Mistério que tudo move e impulsiona ao amor, à verdade e à beleza.
Como um vento irresistível que impulsiona a história do mundo a partir de dentro ou como um barco que infla suas velas e começa a navegar, arrastado por algo invisível e poderoso: é essa presença mobilizadora que chamamos “o Espírito”, o “Vento de Deus”. E o vimos “soprar” criativamente no mesmo Jesus; e o vimos soprar poderosamente na primeira comunidade cristã, sobretudo a partir daquela formidável manhã de Pentecostes; e continuamos vê-lo soprar no amor e no entusiasmo de tantas pessoas criativas que sustentam o mundo e nos fazem manter a fé e a esperança.
Deixemo-nos levar por esse Vento que sopra em cada um de nós, esse Sopro em nós, maior do que nós, que gera harmonia e nos faz conectar com todos os viventes; o Espírito é a força que nos aproxima uns dos outros e que exerce seu dinamismo criador transformando em “cosmos” o que antes era “caos”.
Na medida em que o alento divino da “Ruah” envia seu sopro vital, somos seres animados, viventes, criativos. Vivemos com essa energia que nos foi dada e nos dinamiza com sua força. Vivemos sustentados por essa força que desperta em nós as grandes inspirações e intuições adormecidas.
O vento, o ar, o Espírito sopra onde quer e nenhum de nós pode nem se atreve a querer controlar, dominar ou possuir essa Energia, pois somos vivificados por ela. A “ruah” é fonte de vida e vivificação. Nascer é ser dado à luz pelo Espírito. É receber o Sopro: um Sopro de muitas formas, cores, sabores e intensidades. Sopro de compaixão e ternura, sopro de igualdade e diferença, de justiça e paz. Morrer é devolver o sopro vital; morremos para o Espírito para sermos aspirados pelo Espírito na Ressurreição.
Como Sopro, o Espírito é o grande multiplicador do melhor de cada um, o portador das “células-tronco” de nossa vida interior. Ele nos faz fortes em nossa fraqueza e nos faz amadurecer quanto mais nos humanizamos. Seu modo de nos proteger é abrindo-nos; seu modo de nos defender é desarmando-nos e quebrando nossa rigidez. Soltar as asas nos momentos mais petrificados e pesados de nossa vida é sinal de sua silenciosa Presença. De imediato, nos sentimos livres do peso que fomos arrastando durante tanto tempo e, por uns instantes, nos atreveremos a “viver no Vento”.
Trata-se de sermos dóceis para deixar-nos conduzir pelo Sopro do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos. Como nosso Mestre interior, nos ensinará a deixar-nos conduzir para a bondade, para a doação, para o perdão e a alegria.
Em outras palavras: “viver segundo o Espírito” não se define como um combate, como luta para debilitar o “eu”, mas como experiência para ativar o impulso para o “mais” e “ordenar” os dinamismos humanos em direção a um horizonte de sentido: o Reino.
“Deixar-se conduzir pelo sopro do Espírito”, portanto, em duas direções: a) para a própria interioridade, ativando as “beatitudes originais”, reacendendo a força dos desejos, despertando a inspiração para a criatividade... b) para a universalidade: abertura e acolhida da realidade, para ser “sal e luz do mundo”.
Em muitas situações de nossa vida precisamos sentir por onde sopra o vento, ouvir de onde vem sua voz quando não sabemos como aceitar as sombras e as vozes do medo que vão se ampliando dentro de nós.
A missão do Espírito não é ajudar a nos “livrar” daquilo que imaginamos que torna sombria nossa existência e nos atemoriza (feridas, rejeições, ressentimentos...); é próprio de Sua presença reunir, integrar, conciliar, pacificar, conduzir-nos a um “lugar interior”, a um centro de calma, onde tudo tem seu lugar, onde tudo encontra seu espaço.
As angústias mais radicais do ser humano são acolhidas e transformadas pelo Sopro do Espírito: um sopro vital que possibilita a vitória da esperança contra o desespero, da comunhão contra a solidão, da vida contra a morte.
Seu trabalho de transformação e de re-criação nos ensina a fazer amizade com as dimensões não integradas de nossa vida, da realidade, dos outros, das quais nos tínhamos distanciado, das quais nos sentíamos separados. Sua discreta presença alentadora nos move a acolher em nós nosso potencial de ternura, de cuidado e de resistência diante de todas aquelas situações e forças que desintegram a vida.
Essa é a terra propícia onde atua o Espírito. Onde há mais carência, vulnerabilidade, pobreza... há mais criativas possibilidades. Nenhuma situação pode afastar-nos de Seu Sopro; pelo contrário, maior desamparo, maior proximidade; maior sofrimento, maior unção. Toda terra baldia é boa para o Espírito.
Ele vem com um “sim” ousado e forte que re-cria de novo nossa história, estabelecendo o “cosmos” (harmonia e beleza”) em nosso “caos” existencial. Como “línguas de fogo”, Ele desce para encontrar-nos e despertar nossa vida; com seu toque, uma identidade nova ressurge.
Portanto, viver uma “vida segundo o Espírito” significa romper nossa estreiteza de vida, superar nossos medos e entrar no seu movimento criativo em direção a largos horizontes: tal dinamismo nos manterá “despertos” e dará sabor à nossa existência.
Texto bíblico: Jo. 20,19-23
Na oração:
Felizes aqueles que se reúnem em torno ao Sopro do Espírito para deixar-se transformar cada dia por Ele.
Felizes aqueles que se deixam conduzir pela luz do Espírito e não lhe põem travas, obstáculos ou impedimentos.
Felizes aqueles que reconhecem suas fragilidades e se deixam fortalecer pelo Espírito de Deus.
Felizes aqueles que vivem a novidade radical do Espírito, para não permanecer nunca ancorado no passado, mas viver a realidade do presente e estar abertos à surpresa do futuro.
Felizes aqueles que se deixam rejuvenescer pelo Espírito e deixam pendurados no cabide do esquecimento as velhas vestimentas cheias de remendo.
Felizes aqueles que se deixam fascinar e refrescar pela brisa do Espírito, aqueles que reconhecem nela a presença vivificante de Deus em suas vidas.
Felizes aqueles que vivem com um espírito de solidariedade, empenho, ternura, cuidado e consolo.
Felizes aqueles que não deixam que o Espírito fique aprisionado, aqueles que cada dia recriam as palavras e as intuições do Espírito, aqueles que se deixam habitar pela liberdade radical do Espírito.
(Miguel Mesa Bouzas)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
14.05.2013
“E enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado para o céu” (Lc. 24,51
Ressurreição, Ascensão, sentar-se à direita de Deus, envio do Espírito Santo, são todas realidades pascais. O Mistério Pascal é tão rico e tão denso que não podemos abarcá-lo somente com uma imagem; por isso precisamos desdobrá-lo para poder experiênciá-lo de uma maneira mais profunda.
Celebrar a Ascensão de Jesus não significa, para os cristãos, algo diferente que celebrar sua Ressurreição. São só diferentes nomes para referir-se à mesma realidade: que, ao morrer, tanto Jesus como nós, mergulhamos na Vida de Deus.
Lucas, em seu Evangelho, põe todas as aparições e a Ascensão no mesmo dia. No entanto, nos Atos dos Apóstolos, ele fala de quarenta dias de permanência de Jesus com seus discípulos, provavelmente como um modo de indicar que eles haviam recebido a formação necessária para levar adiante a missão (“quarenta dias” com o mestre era o tempo que o discípulo precisava para alcançar uma preparação adequada).
A fé na Ascensão não é aceitar que uma pessoa “subiu” aos céus. É aceitar que Jesus é o sentido de tudo, a revelação de Deus e do sentido da existência: Ele é o Senhor. A Ascensão de Jesus não significa evasão aos céus - “Homens da Galiléia, por que estais aí a olhar o céu?” (At. 1,11) – mas imersão na vida. Aquele que Vive não escapou do mundo; sua Ascensão significa sua extensão e presença no universo inteiro, plenificando tudo em todos; Ele agora assume todos os rostos, identifica-se com toda a humanidade e continua a caminhar pelas Galiléias dos excluídos, das periferias, dos pobres... Acampa junto aqueles que vivem às margens.
O movimento desencadeado por Aquele que Vive é um movimento que reúne para dar vida, para restaurar vínculos rompidos, libertar as ataduras que escravizam...
Nos relatos da Ascensão, normalmente nos preocupa muito saber o lugar de onde Jesus subiu aos céus e para onde Ele foi; mas o que importa é que nosso destino é Deus e Jesus revela a grandeza do ser humano capaz de alcançar a divindade.
Pela sua Ascensão, Jesus Cristo acolheu tudo quanto é humano e desta maneira o redimiu. Ele “subiu” ao céu porque “desceu” às profundezas da terra. E assim também nos mostrou o caminho. Não podemos subir ao céu se não estivermos dispostos a descer com Cristo ao nosso “húmus”, às nossas sombras, à condição terrena, ao inconsciente, à nossa fraqueza humana.
Nós “subimos” a Deus quando “descemos” à nossa humanidade. Este é o caminho da liberdade, este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia; é o caminho de Jesus também para nós. O coração, a quem não é estranho nada do que é “humano”, alarga-se, enche-se do amor de Deus, que transforma todo o humano. O caminho da humildade é o caminho da transformação. Ao fazer, junto com Jesus Cristo, o caminho da “descida”, o ser humano vai ao encontro de sua realidade e coloca-se diante de Deus para que Ele transforme em amor tudo quanto existe nele, para que ele seja totalmente perpassado pelo Espírito de Deus.
Sabemos que Deus nos fala não só através da Bíblia, da Igreja, dos acontecimentos, da Criação... mas também através de nós mesmos, daquilo que nós pensamos e sentimos, através de nosso corpo, de nossos sonhos, e ainda através de nossas feridas e de nossas fraquezas... O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da nossa própria realidade pessoal. Se com Cristo quisermos subir ao Pai, temos primeiro que descer com Ele à terra, afundar os pés na nossa própria condição humana.
Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. É preciso “descer” até o fundo para descobrirmos uma nova fonte para a nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.
Nós somos o solo, o húmus, onde Deus, com mãos criativas, vai nos modelando e nos fazendo mais humanos. À medida que nos aceitamos e nos acolhemos como húmus, mergulhamos na graça de Deus. Quem “desce” até sua própria realidade, até os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas sombras, até a impotência de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua condição humana e terrena e se reconcilia com ela, este sim, está subindo para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus verdadeiro.
A vida cristã não é “subida” para fora da realidade, mas “descida” para o mais profundo da mesma. Entramos no movimento da Ascensão quando amamos, servimos, cuidamos...; nós nos elevamos quando lutamos por uma causa, investimos a vida num projeto. Ao deixar-nos conduzir pelo Espírito, rompemos com nossos lugares estreitos, vivemos a expansão de nós mesmos, tornamo-nos universais....
Essa ascensão não pode ser feita às custas dos outros, mas servindo a todos. Como Jesus, a única maneira de alcançar a plenitude é descendo para o mais profundo. Aquele que mais “desceu” é Aquele que mais alto “subiu”. Entender a “subida” de Jesus como uma subida física é muito atraente. Os dirigentes judeus preferiram um Jesus morto. Muitos de nós preferimos um Jesus “nos céus”. Em ambas situações seria uma estratégia para tirá-lo de nosso meio.
Descobri-lo dentro de nós e nos outros é muito exigente e comprometedor. É muito mais cômodo continuar “olhando para o céu” e não sentirmos implicados com aquilo que está acontecendo ao nosso redor. Por isso, Ascensão é missão; é “descer” da montanha para as periferias da nossa Galiléia (periferias existenciais, sociais, religiosas...) e ali prolongar a atividade libertadora de Jesus.
A Ascensão ocorre toda vez que, vivendo o Presente, transcendemos os limites temporais e nos experimentamos “ser em Deus”. Nestes momentos, nos alcança a Plenitude e saboreamos a Alegria.
Ao mergulhar na realidade, interna e externa, nos esbarramos n’Ele, o Ressuscitado.
Textos bíblicos: Atos 1,1-11 Lc. 24,46-53
Na oração: A espiritualidade cristã nos ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais profunda e assim chegamos à corrente subterrânea; aqui experimentamos a unidade de nosso ser; aqui é o lugar da transcendência, onde nossa transformação realmente acontece.
Para realizar-nos e desenvolver toda a nossa potencialidade, busquemos, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de nosso ser, o núcleo original de nossa personalidade. É no mais íntimo de nós que rezamos ao Senhor. É no mais profundo de nossa interioridade que escutamos o Senhor. Deixemo-nos invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
10.05.2013
“...a ele viremos e nele estabeleceremos morada” (Jo. 14,23)
6º Dom. Páscoa
Tudo está admiravelmente condensado e expresso nesta frase com a qual se inicia o evangelho do 6º Dom. da Páscoa: “viremos a ele e faremos nele nossa morada”. O ser humano está habitado por Deus, no sentido mais profundo que podemos imaginar.
A chamada “inabitação” não pode ser entendida como um agregado que se daria na pessoa, equiparável ao que ocorre em uma casa desabitada quando alguém chega para morar nela. Por essa razão, não se pode entender as palavras colocadas na boca de Jesus como se tratasse de uma condição: “só quando alguém guarda minha palavra, será habitado e amado por Deus”.
A partir das palavras de Jesus, é preciso saborear todo o sentido da “inabitação trinitária”. Deus Trindade abraça tudo e se expressa em toda a realidade; habita tudo e em tudo se manifesta; envolve tudo e em tudo está presente. “Deus presente em todas as coisas e todas as coisas em Deus” (S. Inácio).
O ritmo frenético e estressante do contexto atual, e, sobretudo, o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial, impedem recuperar a dimensão da interioridade em nossa vida diária.
A expressão “viver a vida” não é exaltar uma vitalidade superficial, muitas vezes frívola, senão viver a vida em profundidade. Diante da sociedade que promove um estilo de vida baseado na superficialidade, na aparência e no prestígio, o cristão procura ser claramente contra-cultural, vivendo uma espiritualidade da profundidade.
É próprio do ser humano mergulhar e experimentar sua profundidade. Auscultando a si mesmo, percebe que brotam de seu “eu profundo” apelos de compaixão, de amorização e de identificação com os outros e com o grande Outro (Deus). Dá-se conta de uma Presença que sempre o acompanha, de um Centro ao redor do qual se organiza a vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as significações últimas da vida.
Em nosso coração há sempre algum movimento profundo que é manifestação da ação de Deus no mais íntimo de cada um. S. Agostinho cunhará a expressão de que Deus é “intimior intimo meo”, mais íntimo que nossa própria intimidade. Esta presença é fonte de vida espiritual, uma vida que pulsa dentro de nós e flui com diferentes “moções” que nos fazem sentir perto d’Aquele que já está perto.
Quem toma consciência de sua identidade profunda, descobre-se habitado e amado pelo Mistério e não pode fazer outra coisa senão amar e experimentar a comunhão com todos. Na linguagem do quarto evangelho, Deus é o “centro” último do nosso interior, o que constitui nossa identidade mais profunda.
Não se trata, portanto, de que Deus habite unicamente naqueles que cumprem a palavra de Jesus, num retorno à religião dos méritos e das recompensas. Deus habita já todos os seres: nada poderia existir “fora” d’Ele. Tudo é morada de Deus.
Segundo S. Inácio “Deus habita nas criaturas: nos elementos dando o ser; nas plantas, a vida vegetativa; nos animais, a vida sensitiva; nas pessoas, a vida intelectiva. Do mesmo modo em mim, dando-me o ser, o viver, o sentir e o entender. E também fazendo de mim o seu templo” (EE. 235).
Tudo está inundado de Deus; tudo é sagrado, nada é profano.
Deus não permanece exterior à sua Criação, mas habita no meio dela. As “criaturas” são o que são devido à presença de Deus nelas. O valor e o significado últimos de todas as coisas provém não delas mesmas, mas da presença de Deus em seu interior.
Nesse sentido, a oração cristã facilita perceber as ressonâncias interiores do dia-a-dia, para vivê-las a partir do mais profundo de nós mesmos, pois o santuário da presença de Deus está nesse espaço de intimidade entre a criatura e o Criador.
A oração, como “pausa diária”, constitui-se um tempo de pacificação, de integração espiritual, precisamente para “ler” a vida com os olhos de Deus – “por onde passa meu Senhor” -, dando especial atenção aos movimentos interiores suscitados pela presença e agir do Senhor. É discernir as “moções” de Deus que nos fala ao coração pelos acontecimentos, é retificação do rumo para o necessário crescimento humano e cristão. Trata-se de um tempo privilegiado para fazer mais profunda nossa vida cotidiana.
Esta nossa busca começa no retorno ao interior, onde o Senhor nos habita e nos move. Podemos então afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de si mesmo, de modo que buscar a Deus é buscar-se a si mesmo, na própria interioridade.
A expressão de Pascal de que “o ser humano supera infinitamente o ser humano” resume bem esta vivência da Trindade que nos habita, nos move e nos faz transbordar em nossa mesma intimidade.
Podemos entrar dentro de nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, a dimensão “divina” que nos situa acima do vai-e-vém das coisas, acima do tempo e da contingência, embora estejamos enraizados nela e caminhemos sobre a faixa da história fugaz. Nós nos movemos, pois, entre transcendência e história, entre contingência e eternidade.
É no “substrato humano” que o mistério da Trindade marca presença e age. É na “natureza humana” que Deus constrói a Sua Tenda e, na Sua ternura, abraça a pessoa no seu todo; abrange todas as áreas da vida.
Deus se serve das mediações humanas para revelar-se e falar ao coração. Ele quer assumir o humano na sua totalidade. Ele deseja ser o responsável pela “terra sagrada” da vida humana.
Da parte de cada pessoa, Ele pede, apenas, para deixá-Lo trabalhar, limpar, semear, fazer crescer e colher os frutos. A pessoa é solicitada para que deixe espaço aberto e livre ao plano da ação de Deus.
É nas entranhas mais profundas do ser que Deus “toca” com a Sua bondade, ternura e misericórdia. Esta experiência gera compromisso de viver a bondade, a ternura e a misericórdia na vida e na missão.
Texto bíblico: Jo. 14,23-29
Na oração: Na oração, mergulhamos em Deus e libertamos em nós profundidades que desconhecemos. Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. Descobriremos regiões de conhecimento e de amor ainda inexploradas, que nascerão para a vida sob a ação do olhar de Deus. Deus é a verdadeira fonte do nosso ser, mais próxima de nós do que nós de nós mesmos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
29.04.2013
“Dou-vos um novo mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo. 13,34)
No evangelho deste domingo Jesus nos coloca diante da realidade mais profunda de sua mensagem e, ao mesmo tempo a realidade que nos faz mais humanos: a vivência do amor. A forma como Ele se expressa é clara e simples: frente aos inumeráveis mandamentos rabínicos, frente ao Decálogo de Moisés, suas palavras soam taxativas: “Eu vos dou um novo mandamento”.
Só há um mandamento, não há outro: amar aos outros, não de qualquer maneira, mas como Jesus nos amou. Ou seja, manifestar esse amor que é Deus, em nossas relações com os outros. Jesus nos deixa a marca de identidade que nos distingue como cristãos. É o mandamento novo, em oposição ao mandamento antigo, a Lei. Jesus não manda amar a Deus nem amar a Ele, mas amar como Deus e como Ele ama.
No texto se fala de “mandamento”, como querendo destacar a importância daquilo que aí se anuncia. Não se trata de um “conselho” nem de uma “recomendação”, mas de um "modo divino de proceder". E se diz que é “mandamento novo”, provavelmente um eco daquilo que os próprios discípulos perceberam como “novidade” no modo de viver do Mestre, na gratuidade e na incondicionalidade de seu amor.
Jesus é sábio: Ele não quer templos para manifestar esplendorosas adorações, nem estruturas para oficiar ritualismos, nem orações exteriores ostentosas, nem esmolas caras à vaidade... Temos insistido demasiado no acidental: no cumprimento de normas, na crença de algumas verdades e na celebração de alguns ritos, mais que no essencial que é o amor.
O Reino não se espalha por meio de armas, nem com a propaganda e nem com marketing algum; o Reino se espalha pelo contágio, porque o “Amor é contagioso”. O mandamento do amor continua sendo tão novo que ainda não foi vivido na sua radicalidade. Não se trata só de algo importante; trata-se do essencial. Sem amor, não há vida cristã.
Naturalmente não se pode impor o amor por decreto. O principal erro que continuamos cometendo é apresentar o amor como um preceito. Todos os esforços que façamos por cumprir um “mandamento” de amor estão fadados ao fracasso. O empenho está em descobrir que Deus é amor dentro de nós.
Na realidade não se trata de uma lei, mas de uma resposta ao que Deus é em cada um de nós, e que em Jesus se manifestou de maneira contundente. Nosso amor será “um amor que responde a seu amor”. O amor que Jesus nos pede tem de surgir a partir de dentro, não impor-se a partir de fora como uma obrigação. Trata-se de manifestar o que é Deus no fundo de nosso ser, através das obras. Por isso, não é um mandato heterônomo, vindo de fora, como uma imposição arbitrária. Trata-se, pelo contrário, de um convite a viver o que somos, conectados com o Mistério amoroso “d’Aquele que é”. Isso será possível, não tanto através de um voluntarismo moral, quanto graças à compreensão daquilo que somos. Na medida em que vamos conhecendo e vivendo o que somos, o amor abre caminho.
Jesus não propõe como primeiro mandamento o amar a Deus. Deus é dom total e não pede nada em troca. Não precisa nada de nós, nem nós podemos lhe dar nada. Deus é puro dom, amor total. Trata-se de descobrir em nós esse dom incondicional de Deus, que através de nós deve chegar a todos.
Não se trata de um amor humano mais ou menos perfeito. Trata-se de entrar na dinâmica do Amor de Deus. Isto é impossível se primeiro não experimentamos esse amor. Tudo parte do amor do Pai, que se manifestou em Jesus e que agora circulará através dos discípulos. Trata-se do mesmo e único Amor, que constitui o segredo último do Criador. O que se pede aos discípulos é que permitam que esse Amor, primeiro e originante, se expresse e seja vivido através deles.
Antes de dizer, antes de pedir, Jesus viveu até o limite a capacidade de amar, até amar como Deus ama: “como eu vos amei”. Mas essa expressão não é comparativa, mas originante e “causal”: porque eu vos amei. Ou seja, que devem amar-se por eu os amei, e tanto como eu vos amei. A tradução mais justa poderia ser esta: “Com o mesmo amor com que eu vos amei, amai-vos também uns aos outros” (Leon-Dufour). Esta é a marca da identidade dos seguidores de Jesus, a característica mais importante da vida cristã.
João emprega neste relato a palavra ágape que expressa o amor sem mistura de interesse pessoal; seria o puro dom de si mesmo, só possível em Deus. A expressão “agapate” (“que vos ameis”) faz referência ao amor que é Deus, ou seja, ao grau mais elevado do dom de si mesmo. Não está falando de amor de amizade ou de uma ‘caridade’. O amor de Deus é a realidade primeira e fundante.
Ágape é o amor divino. Esse amor é o mais raro, o mais precioso, o mais milagroso. Seria como que uma renúncia à centralidade do ego, ao poder, à força... Assim como Deus, que se “esvaziou de sua divindade”, o ágape se esvazia de si mesmo para dar mais lugar, para não invadir, para deixar ao outro um pouco mais de espaço, de liberdade...
É a doçura, a delicadeza de se afirmar menos, a autolimitação de seu poder, o esquecimento de si, o sacrifício de seu prazer, de seu bem-estar ou de seus interesses... Estas são algumas características do ágape cristão: é um amor espontâneo e gratuito, sem motivo, sem interesse, até mesmo sem justificação... o puro amor.
“O ágape é um amor criador. O amor divino não se dirige ao que já é em si digno de amor; ao contrário, ele toma como objeto o que não tem nenhum valor em si e lhe dá um valor. O ágape não constata valores, cria-os. Ele ama e, com isso, confere valor. O homem amado por Deus não tem nenhum valor em si; o que lhe dá valor é o fato de Deus amá-lo. O ágape é um princípio criador de valor” (Nygren).
Descobrir essa realidade e vivê-la é o distintivo do seguidor de Jesus. E é essa qualidade do amor o sinal decisivo pelo qual os discípulos de Jesus deverão ser reconhecidos. Os seguidores dos fariseus eram reconhecidos pelas “filaterias” que usavam; os de João Batista, por batizar, os de Jesus, unicamente pelo amor.
O distintivo do cristão é o amor fraterno. E o amor é discreto, humilde, conhecedor de sua insuficiência, não é arrogante, não se derrama em palavras, não faz alarde, não vai se proclamando pelas praças, prefere o silêncio, passa desapercebido, prefere as obras às palavras (“o amor deve-se por mais em obras que em palavras” – Santo Inácio).
O amor ágape é expansivo: nos alarga através dos nossos membros, mãos e pés. Podemos dizer que o amor tem coração, mãos e pés: coração cheio de compaixão e ternura, mãos que cuidam, curam, abençoam... e pés que nos arrancam de nossos lugares estreitos e nos deslocam para as margens, os pobres... Desse modo, o mandato do amor remete à Fonte que o possibilita, ao Amor originante que tece a unidade de tudo que É e Somos.
“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros”. O amor que Jesus pede não é uma teoria, nem uma doutrina. Ele se manifesta na vida, em todos e em cada um dos aspectos da nossa existência.
A nova comunidade dos seguidores de Jesus não se caracterizará por doutrinas, nem por ritos, nem por normas morais. O único distintivo deve ser o amor manifestado em todas e em cada uma de suas ações. Jesus funda uma comunidade que experimenta Deus como amor e cada membro, fazendo-se filho(a) e irmão(ã), prolonga esse amor.
Texto bíblico: Jo 13,31-35
Na oração: Faça uma leitura das “marcas” do Amor de Deus em sua vida; crie um clima de ação de graças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
24.04.2013
“As minhas ovelhas escutam a minha voz...” (Jo. 10,27)
Tudo começa com a escuta; por sua vez, só escuta quem se encontra numa atitude de busca. Quem crê estar em posse da verdade, deixou de buscar; blindado a qualquer questionamento, permanece instalado na “zona de conforto” de sua comodidade.
A pessoa que se põe em movimento, começa escutando. A escuta requer uma disposição de abertura inicial, que implica flexibilidade para permitir inclusive que as convicções prévias possam ser removidas. A escuta revela seus próprios segredos para quem sabe desnudar-se nela.
Quando aquilo que “escutamos” encontra eco em nosso interior, reconhecemos estar em contato com nosso eu verdadeiro e em profunda “sintonia” com a pessoa que nos fala. Isto é o que acontecia com os seguidores de Jesus e o que continua acontecendo com os leitores do evangelho: ao perceber que a palavra de Jesus “lê” nosso interior, a reconhecemos como própria e “comungamos” com sua pessoa, na vida de uma unidade que transcende o tempo e o espaço.
Segundo os antigos, “fides exauditu”, a fé vem pelo ouvido e por isso Jesus nos convida a aguçar a nossa escuta: “Quem tem ouvidos para ouvir que ouça”. Na Sagrada Escritura, o exercício do ouvido, a escuta, é prerrogativa tanto de Deus como do ser humano. O próprio Deus deixa-se perceber pelo ouvido; faz-se “audível” para o ser humano. É Deus mesmo que abre cada manhã os ouvidos dos discípulos e os torna atentos para a escuta. Em toda Palavra de Deus existe sempre um dinamismo que nos desnuda e nos traz à nossa verdade original. Voltar a escutar é voltar a ser criança.
Retornar a esta atitude básica tão bela que é a admiração, a capacidade de assombro..., primeira virtude necessária para que o Evangelho nos chegue em toda a sua inesgotável força de surpresa desconcertante. Tudo é palavra e silêncio. Tudo no universo vibra, emite, transmite, fala, vive. E ao mesmo tempo tudo é escuta e percepção. Deixar Deus ser Deus e deixar que o outro seja sempre uma surpresa. Permitir que cada realidade fale para nós sua própria linguagem. Isso é ter ouvidos para a escuta.
Dentre os seres vivos criados por Deus, o ser humano é o único capaz de escutar e de falar, porque é o único criado à imagem e semelhança d’Ele, d’Aquele que é a Palavra cheia de verdade e a escuta cheia de amor. “Deus é a Palavra suprema e o Silêncio infinito”. É importante progredir pelo caminho do silêncio, em que a pessoa se educa na escuta autêntica, que é a única capaz de nos conduzir ao puro amor. Porque o grau supremo da escuta é o silêncio cheio de amor.
No meio da gritaria ensurdecedora do mundo moderno como sintonizar na onda da Voz do Bom Pastor? Como distinguir, no meio de tantas vozes, aquela VOZ verdadeira que não fala aos ouvidos, e sim aos corações?
Carlos Vallés sj, missionário na Índia, nos apresenta um simbolismo, tirado da cultura hindu, na arte do discernimento, para distinguir e seguir a verdadeira Voz do Mestre:
A flauta é o som suave, o toque leve, o sopro delicado... e as notas que dançam nas asas da brisa. A selva de Vindravan, onde Deus mora, é vasta e densa e a cada momento é cruzada em todas as direções por cantos de mil pássaros e pelos rugidos das feras, pelo trovão na tormenta e pelo farfalhar das folhas tangidas pelo vento. Símbolo gráfico do mundo e da vida, com seus cuidados e preocupações, suas distrações e falsos chamados que afogam as pulsações do coração nos ruídos da existência. Muitos viajantes cruzam a selva. Muitos homens atravessam o bosque dos ruídos.
Alguns vão tão depressa que não ouvem nada, outros tremem ao ouvir o rugido do tigre ou o silvo da serpente, outros seguem o som de vozes humanas para chegar ao povoado mais próximo. Outros se perdem. Outros morrem sem saber para onde iam. Outros dão voltas e mais voltas, de uma voz a outra, de um caminho a outro.
Mas para aqueles que tem ouvidos para ouvir e amor para querer ouvir há outro som, suave, mas agudo, que atravessa todos os demais sons, chega aos ouvidos e entra no coração com uma mensagem e um chamado diferente: a flauta. Ela é o símbolo, o instrumento e a companheira fiel de Deus. Brincalhona, insistente, inconfundível, exigente, carinhosa. Traz alegria e música e, sobretudo, um sentido e direção. O som vem de algum lugar. E é ali que está Deus.
Cada dia num lugar diferente, numa direção inesperada, para que a “alma” esteja sempre alerta, atenta e disposta a partir. Aquele que escuta a primeira nota, deixa o que estiver fazendo e salta, corre, voa na direção do som e tira forças do desejo e chega à plenitude. Isto é discernimento: a capacidade de distinguir o SOM da flauta entre todos os outros sons. E sua base é o AMOR.
Vivemos mergulhados num mundo de vozes; um “vozerio” nos cerca: vozes que nos levam à morte, vozes que nos chamam à vida; vozes contaminadas pelo egoísmo, adulteradas pelo medo, deturpadas pela impureza, e vozes que são o eco do paraíso convidando para a festa, comunicando paz, convocando à comunhão... É possível que as vozes do egoísmo, do orgulho e da ambição tentem se disfarçar em voz de Cristo, a fim de arrastar-nos para o vazio e a ruína. Mas o Pastor verdadeiro não fala por ruídos, e sim pelo silêncio; não fala pela força dos pulmões, e sim pelo vento suave de seu Espírito...
Para escutá-la requer-se interioridade e atenção aos sinais de sua presença: pode ser a voz de um irmão pedindo socorro; pode ser a linguagem de um acontecimento alegre ou triste; pode ser uma palavra lida ou proclamada; pode ser uma inspiração misteriosa captada no silêncio...
Na arte do discernimento das vozes, o importante é, através da escuta interior, perceber de onde vem e para onde nos conduz cada voz que ressoa em nós. Se ela nos conduz para o outro, para o Reino...é clara manifestação da voz do Pastor.
Texto bíblico: Jo. 10,27-30
Na oração: Inimiga número um da escuta é a pressa e a ansiedade que ela costuma trazer consigo. A oração, por si mesma, é uma rebeldia contra a pressa dominante: uma oração mesclada de silêncio profundo, de respeitosa contemplação, isto é, de verdadeira escuta.
A voz do Pastor não se dirige à multidão anônima, mas é chamado pessoal: cada um tem rosto e nome.
- Que voz estou seguindo?
Tomo consciência daquilo que obstrui os meus ouvidos e os torna “incapazes de prestar atenção” (Jer. 6,10)
Tomo consciência da superficialidade diante da voz da consciência e da incapacidade de escutar o outro, fazendo ressoar a sua voz no meu coração. Tomo consciência de todas as mensagens negativas que transformaram, seduziram e enganaram meus ouvidos, tornando-os surdos às mensagens celestes, à Palavra da verdade e da vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
15.04.2013
“Quando saltaram em terra, viram brasas acesas, tendo por cima peixe e pão” (Jo. 21,9)
“Não há nada mais permanente que a mudança na vida”. Mudanças são a essência e o sabor da vida. O ser humano é um ser em mudança: ela é o elemento que traz energia, variedade, surpresa, côr e vida à vida. A mudança é vida.
Mas, com o passar dos anos, buscamos segurança e a mudança se revela incômoda. Não obstante, fechar-se à mudança é abrir-se à morte em vida, porque a vida é abertura à novidade do encontro com o outro. O que mudou na cotidianidade pós-pascal da comunidade? Aparentemente, tudo voltou à normalidade da vida corriqueira.
Nos relatos das aparições de Cristo Ressuscitado, à primeira vista parece que a situação não tinha mudado. Os apóstolos tinham perdido sua condição de seguidores, tocaram fundo na insatisfação que a morte lhes produziu e atrofiaram o sonho no qual acreditavam que estava fundada sua vida.
O relato da última aparição de Jesus ressuscitado aos seus discípulos tem uma cena belíssima. Novamente junto à praia e entre redes, como no começo; o vazio, o abandono, a solidão, a escuridão da noite, a rotina de um trabalho cansativo e ineficaz, domina
m a paisagem do texto; novamente a dureza de cada dia, em um cotidiano sem a presença de Jesus. Alguém estranho, muito cedo, da margem do lago, atreve-se a provocar, fazendo uma pergunta onde mais doía: “tendes alguma coisa para comer?”
O convite de Jesus: “Lançai a rede à direita do barco!” significa, como todos os seus convites: mudem de atitude, pesquem de maneira diferente, busquem outros lugares, saiam da rotina, sejam criativos... Também para lançar a rede existem dois lados: um lado conhecido e rotineiro; e outro lado alternativo e novo. Revendo o passado, os discípulos reconheceram que estavam trabalhando no lado errado, determinado por uma tradição que não os deixava crescer. A nova consciência transforma tudo. A vida ganha a plenitude da rede, torna-se vida em abundância.
A presença do Ressuscitado muda por completo o panorama de suas vidas: estavam tristes, cheios de medo e, de repente, se convertem em homens valentes, cheios de entusiasmo, de esperança, pondo-se a pregar e a dar testemunho em meio a todas as dificuldades.
É a presença do Ressuscitado no meio deles que traz alegria, paz, perdão, sentido...
Nas aparições do Ressuscitado se reitera a experiência de passar da tristeza a uma alegria profunda que permite voltar com entusiasmo à missão. Aparentemente, a situação dos discípulos não muda, mas eles mudam radicalmente porque recuperam a confiança no Mestre e em suas promessas.
O novo não está na novidade dos fatos, mas no olhar novo sobre aquilo que aconteceu entre aqueles que seguiam Jesus. O novo olhar da fé abre, na realidade transfigurada, o caminho da missão. O peixe não é mais um simples peixe. Pelo encontro com Jesus, revela um significado novo e aponta para a fecundidade da vida cotidiana.
No retorno à praia encontram algumas brasas, que recordam aquela fogueira em torno à qual, alguns dias antes, o velho pescador Pedro jurou não conhecer Jesus, negando-o três vezes. Agora, junto ao fogo irmão, Jesus lavará com misericórdia a fraqueza de Pedro, transformando para sempre seu barro frágil em pedra fiel. O verdadeiro milagre não é uma rede que se enche, mas a traição covarde que se transforma em confissão de amor. Até três vezes Pedro confessará, indicando que é a única coisa importante; três vezes para significar que Jesus não tem outra pergunta, pois tudo se decide no amor.
As perguntas de Jesus, no evangelho de João, são pedagógicas e terapêuticas. A cura das feridas emocionais é antes de tudo um caminho novo, que envolve afeto, amizade. Ele não pede propriamente informações, mas dá às pessoas, por meio de suas perguntas, a oportunidade de reconhecer a sua situação existencial.
A vida de Pedro muda quando Jesus faz aquela pergunta tão desconcertante: “tu me amas?” A pergunta é uma oportunidade de responder espontânea e sinceramente a si mesmo, resposta sem culpa e sem medo. A traição desumanizou Pedro, fez com que ele chegasse ao fundo de sua miséria. Esperaríamos perguntas de admoestação, de deploração... No entanto, Jesus o interpela sobre o amor. O Pedro que emerge deste contato terapêutico com o Ressuscitado é um Pedro corajoso, decidido, mas também muito mais amoroso, capaz de superar preconceitos antigos.
O amor de Jesus, sua graça sempre pronta, o humanizará de novo, até re-estrear sua verdadeira vida. Sem ironia, sem indiretas, sem pagamento de contas atrasadas. Gratuitamente, assim como a própria graça. A proposta de Jesus muda nosso modo de encarar as relações de ajuda e cuidado, pois está baseada no afeto. A pescaria do lago Tiberíades aponta para a missão; o pastoreio cobrado a Pedro já aponta para os futuros cuidados “pastorais”. O pastor precisa de um olhar amoroso que vai além de seu curral; o pescador precisa de um olhar apurado para fazer a travessia em direção da outra margem.
A comunidade eclesial vive ao mesmo tempo a pescaria e o pastoreio, a missão em alto-mar e o cuidado pastoral em terra firme. Juntar as ovelhas e guardar os peixes são tarefas permanentes da Igreja. O dom da rede cheia do pescador, no fim da noite, torna-se tarefa para o dia do pastor: discernimento, cuidado, partilha, testemunho, anúncio. “Sede pastores com o ‘cheiro das ovelhas’” (papa Francisco).
Ao entardecer, ele se torna novamente pescador e sai da terra firme para o mar. Há muito que ver no mar de Tiberíades, mas nem todos os olhares poderão acolher o que ali acontece. Há olhares opacos que não se alegrarão, olhares desconfiados que não o entenderão, olhares frios que não vibrarão com a novidade de uma simples refeição... Somente os olhares dos pobres e pequenos se admirarão, e a paz do coração será sua recompensa.
“Ver de novo”, ver outras coisas diferentes daquilo que estamos acostumados a ver é também “nascer de novo”. É preciso despertar o “pastor interior” que há em nós, nossa capacidade de atenção à vida, de buscar com outros, de deixar-nos surpreender diante da presença despojada de Deus.
Texto bíblico: Jo. 21,1-19
Na oração: No nosso mundo existem muitas fogueiras e lugares em que Deus e os irmãos são traídos e, portanto, desumanizados, quebrados. Mas há outras brasas, aquelas que Jesus prepara ao amanhecer das nossas escuridões e depois das nossas fadigas, e nela nos convoca, em comunidade nova, transformando-nos em humanidade diferente. Lá, nos permite encontrar nossa verdadeira identidade e nossa missão: o cuidado do rebanho.
Feliz quem tiver olhos para reconhecê-lo, como João, e quem se deixar renascer, como Pedro.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
09.04.2013
“Oito dias depois, achavam-se os discípulos, de novo, dentro de casa, e Tomé com eles” (Jo. 20,26)
Após a execução de Jesus, os discípulos se refugiam em uma casa; anoitece em Jerusalém e também em seus corações. Ninguém os pode consolar de sua tristeza e desolação. Pouco a pouco, o medo vai se apoderando de todos; a única coisa que lhes dá certa segurança é “fechar as portas”. Estão reunidos, escondidos, polarizados na frustração, concentrados no doloroso, desconfiados de tudo e de todos.
Na comunidade reina um vazio que ninguém pode preencher; também eles estão mergulhados na morte, literalmente vivendo numa “casa sepultura”: sem futuro, sem sonhos...
Mas é nesse ambiente carregado e pesado que Jesus, “ressuscitado de tanto viver”, marca sua presença, despertando a vida e ressuscitando as esperanças de seus amigos mais íntimos. E a primeira coisa que Ele faz é comunicar a sua paz à sua comunidade. Nenhuma acusação por tê-lo abandonado, nenhuma queixa nem reprovação. Presença calorosa, carregada de bênção e ternura. Sua presença devolve a alegria, a capacidade de amar, a espontaneidade, a vitalidade, o entusiasmo, a experiência incontida da luz que não se pode esconder.
Por isso, a chave de todas as “aparições”, relatadas nos Evangelhos, é a que Jesus faz à comunidade reunida. A experiência pascal dos seguidores de Jesus demonstrou que é na comunidade onde se pode descobrir a presença do verdadeiro Jesus. A comunidade é a garantia da fidelidade a Jesus e ao Espírito. Mas, sobretudo, é a comunidade aquela que recebe a missão de anunciar a Ressurreição.
O evangelista João é aquele que mais desenvolve o relato da aparição aos apóstolos. Com isso personaliza em Tomé o tema da dúvida, que é capital em todos os relatos das aparições. Separado da comunidade, Tomé não tem a experiência de Jesus vivo. Ao integrar-se na comunidade agora ele pode experimentar o que os outros lhe contaram e ele não acreditou. Mais uma vez se destaca a importância da experiência partilhada em comunidade.
A mensagem dos relatos das Aparições é muito clara: sem uma experiência pessoal, vivida no seio da comunidade de fé, é impossível ter acesso à nova Vida que Jesus anunciou antes de morrer e, após a Ressurreição, comunica-a a todo aquele que se abre à sua mensagem.
O evangelista João descreve de maneira insuperável a transformação que se deu nos discípulos quando Jesus, cheio de vida, se faz presente em meio a eles. O Ressuscitado está de novo no centro de sua comunidade de seguidores; eles sentem Seu alento criador. Tudo começa de novo. Tal presença os liberta do medo e da dúvida, os faz escancarar as portas e dar inicio o processo de evangelização.
O Ressuscitado se aproxima como Presença viva que dá Vida: deixa-se ver, fala, interpela, corrige, anima, comunica paz e alegria. Em uma palavra, presenteia seu Espírito. Outra vez Jesus recria a comunidade que depois da Paixão estava se desintegrando; e seus discípulos experimentam novamente o chamado e o envio, a serem testemunhas e cúmplices do Espírito, porque vivem a certeza existencial de que o Crucificado é o Ressuscitado, que a morte foi vencida, que Deus é o Senhor da Vida. Impulsionados pela força do Espírito, seguirão colaborando, ao longo dos séculos, no mesmo projeto salvador que o Pai confiou a Jesus.
A Ressurreição significa, pois, o amanhecer de uma nova humanidade. No meio da noite, apesar da tormenta, seremos estrelas que iluminam, âncoras centradas em Jesus e em seu Reino, barcas com velas soltas ao vento do Ruah, vínculos que unem, pontes que se fazem lugar de encontro, testemunhas visíveis do Deus Invisível, presenças de perdão e paz...
Portanto, o que ocorreu com Jesus deve ser sempre luz e inspiração para a “nova comunidade”, a Igreja.
Uma Igreja desafiada a escancarar portas e janelas para anunciar a grande novidade: há “sinais” de Ressurreição perpassando todas as experiências humanas.
“A igreja é chamada a sair de si mesma e ir para as periferias, não só geográficas, mas também as periferias existenciais: as do mistério do pecado, as da dor, as da injustiça, as da ignorância religiosa, as do pensamento, as de toda miséria.
Quando a Igreja não sai de si mesma para evangelizar torna-se autorreferencial e então adoece. A igreja autorreferencial segura a Jesus Cristo dentro de si mesma e não o deixa sair. Há duas igrejas: a igreja evangelizadora que sai de si; ou a igreja mundana que vive em si, de si, para si” (papa Francisco).
Ressurreição, plenitude do mistério da comunhão através dos gestos, da proximidade, do abraço... “Estende a tua mão e coloca-a no meu lado” (Jo. 2027). A cada abraço sentido, uma ressurreição também vivida!
Deixemo-nos alcançar pela Ressurreição de Cristo permitindo que o nosso corpo seja um corpo de ressuscitado. Então:
- nossos olhos não só ficarão fascinados por perceber Sua presença, senão que, como os Seus olhos, olharão a dor do povo, se converterão em lugar de encontro. Serão olhos que ao olhar reconhecem e devolvem dignidade, perdoam, animam, levantam, amam;
- nossos ouvidos escutarão a brisa suave que descobre a presença do Mistério na cotidianidade da vida; saberão distinguir, apesar dos ruídos, os gritos de dor e os cantos de alegria do povo; saberão escutar respeitosos e atentos;
- nossa boca saberá falar e calar como linguagem de amor; denunciará com valentia; cantará a boa notícia; compartilhará com satisfação o que dá sentido à própria vida, e se fechará à maledicência;
- nossas mãos serão capazes de colaborar no nascimento da vida nova que ilumina por todos os rincões do mundo. Serão mãos que compartilham, acariciam, curam, ajudam a demolir os muros da exclusão;
- nossos pés se converterão em samaritanos e peregrinos, companheiros de viagem que não trilham os caminhos da violência, mas abrem caminhos de paz. Serão pés dançantes, festivos, que sabem desfrutar da vida simples, do prazer compartilhado;
- nosso coração será cada dia mais amoroso, grande, sem mesquinhez, sem ressentimentos, casa aberta, misericordioso, compassivo, será um coração de carne, não de pedra;
- nossas entranhas saberão estremecer-se de dor e de prazer, não permanecerão indiferentes, serão entranhas sempre fecundas, geradoras de vida nova para as gerações futuras;
- nossa pele será lugar de contatos curadores, lugar para o encontro, nunca para a “alergia” dos outros.
A Ressurreição acontece quando alimentamos a pequena chama que ainda fumega nos corações desanimados, mas esperançosos; quando acreditamos no ser humano e em suas possibilidades de mudança; quando transformamos escuridão em luz, choro em dança, sofrimento em crescimento.
Vivemos a Ressurreição quando ajudamos os outros a encontrar razões para viver e lutar e alimentamos os sonhos com dias melhores, com pão na mesa de todos e com dignidade garantida. A Ressurreição acontece nos pequenos e simples gestos de partilha, de perdão sincero e de confiança alegre. Ela está presente nos corações que mantêm viva a novidade da vida. E se dá na capacidade de ver o mundo e as pessoas com olhar de misericórdia que reconstrói a existência fragmentada.
Texto bíblico: Jo. 20,19-31
Na oração: * Preste atenção aos sinais de vida ao seu redor: gestos simples, iniciativas de pessoas e comunidades, posturas éticas e coerentes na política e na Igreja, solidariedade, perdão, acolhimento, voluntariado, cuidado de pessoas e do meio ambiente, etc...
* Faça, diariamente, uma “leitura orante” dos acontecimentos da vida. Quê mensagem de Ressurreição você encontra neles? Quê apelos você reconhece nessas experiências?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
01.04.2013
“...Maria Madalena vai ao sepulcro, de madrugada, quando ainda estava escuro...” (Jo. 20,1)
Envolve-nos a noite de uma crise global que não afeta a todos de maneira igual: a noite da injustiça, da pobreza, da fome de milhões de seres humanos que provoca migrações massivas; a noite da corrupção e da impunidade; a noite ecológica que ameaça a vida do planeta; a noite da defesa real dos direitos humanos; a noite das grandes utopias; a noite dos conflitos religiosos; a noite do individualismo egocêntrico, da desconexão com os outros e com a Fonte da Vida; a noite da falta de sentido, a noite da ausência de Deus.
Faz-se noite; no entanto, tal como as águas, a noite tem um significado de fertilidade, virtualidade, semente. Como estado prévio, não é ainda o dia, mas o promete e o prepara. A partir da experiência pascal, a noite pode espantar, mas também pode ser chance para ver melhor; a morte pode ser ameaçadora, mas ela ensina a viver; o sepulcro vazio pode causar dúvida, mas ele aponta para a ressurreição; o infinito pode suscitar inquietação, mas consegue impulsionar para o além, até acender no coração uma chama persistente: a esperança.
Em meio à noite, a Luz da Ressurreição nos facilita perceber lucidamente nossa própria realidade e aquela que nos envolve, “tal como são”; ela nos mobiliza a cultivar uma consciência lúcida para iluminar os rincões obscuros do nosso interior e do nosso planeta, para fazer visível o lado escondido do mundo e da história. Tal noite pede de nós cultivar uma espiritualidade de olhos abertos, de fidelidade para com a realidade concreta e para com a realidade que ainda está em esperança, em potencialidade para desatar-se.
Para transitar na noite de nosso tempo precisamos buscar na Ressurreição a Luz que a ilumine e nos indique a direção e o sentido de nossa existência. A noite pede pessoas marcadas pela experiência da Ressurreição, capazes de ver a presença do Ressuscitado no meio das realidades simples e cotidianas, no profundo do coração de cada ser humano, de cada realidade vivente, de cada palmo de nossa terra, no mistério insondável do universo grávido de graça.
Precisamos cultivar não só olhos que vejam a realidade, senão que sejam capazes de contemplar, no meio da noite, a presença da Luz: uma luz que brota das profundezas da realidade, do profundo do ser onde o Deus, fonte de vida, sustenta tudo; uma luz que nos faz descobrir nosso ser essencial: filhos e filhas amados(as) e irmanados(as) com todos e com tudo.
A luz da noite pascal reacende a paixão pela vida, desafio mais urgente de nosso tempo; paixão por toda expressão de vida, especialmente pelas vidas mais ameaçadas. Dar vida foi a paixão de Jesus, expresso nestas palavras: “Eu vim para que todos tenham vida e vida abundante” (Jo. 10,10). Dar vida, protegê-la, curá-la, cuidá-la, defender sua dignidade, denunciar tudo o que a ameaça e lutar contra isso foi o que levou Jesus a perder sua própria vida. Jesus ressuscitou de tanto viver. Tal é a disposição que hoje precisamos cultivar para iluminar a noite de nosso tempo.
A experiência da Ressurreição nos faz “passar” pela noite e perceber no seu interior os segredos ali escondidos, as surpresas que nos são reservadas. É a experiência da presença da “noite” no ritmo da vida: noite que causa medo, provoca arrepios, impede a visão, paralisa...
Na noite, os objetos e as pessoas parecem impalpáveis, os rostos indefiníveis, o tempo interminável... Tudo parece igual, confuso, próximo e, ao mesmo tempo, distante, inabarcável, impossível.
Na difícil tentativa de identificar aquilo que está fora, percebe-se mais facilmente a si mesmo ou a própria fragilidade: os passos incertos, as mãos vagantes à procura de um contato, os olhos escancarados no esforço para reconhecer alguma coisa, os ouvidos tensos a escutar o imperceptível, o coração enlouquecido saindo pela boca... Silêncio, desejo, espera, busca, pergunta: tudo flui, trazendo mensagens, ora tranquilizadoras, ora interpeladoras.
No entanto, é durante a noite que se realizam os maiores “mistérios”, aqueles que não são compreendidos, mas que nos fazem compreender, aqueles que não podem ser abarcados mas que nos envolvem. Pois, para quem tem a coragem de mergulhar na noite, no silêncio, na não evidência, alguma coisa torna-se compreensível, reconhecível, narrável...
Lentamente, o olhar se faz penetrante, o ouvido se faz sensível, o tato se faz delicado e o imperceptível se faz concreto; o longínquo torna-se próximo, o desconhecido torna-se familiar, o extravio torna-se direção, a solidão torna-se companhia, o ignorado torna-se revelação.
A noite é o tempo do mistério e da promessa, é o lugar da espera e da realização, o espaço do desejo e do encontro, da invocação e da revelação, do sofrimento e da paixão, do silêncio e da oração, da vida e da morte... Na noite o que conta, o que vale não se diz, não se vê, não se sabe: deseja-se, espera-se, recebe-se, realiza-se. Não é um simples eco aquela voz que anuncia no escuro o início do cumprimento de uma promessa que vem de longe e traz luz, festa, alegria, canto...
A fidelidade da promessa ouvida na noite é uma semente. Existe, mas tem necessidade de permanecer escondida. Realiza-se, mas exige habitar espaços de penumbra.
Ainda não é dia, mas amanhece um tempo novo, ressoam como ditas para nós as palavras de Isaías: “Eis que eu farei coisas novas e que já estão surgindo: acaso não as reconheceis” (Is. 43,19). É tempo de esperança. Amanhece uma nova consciência planetária, uma nova espiritualidade, uma nova maneira de intuir o mistério de Deus, uma visão nova do ser humano e do mundo, uma nova mentalidade... Estamos frente uma mudança de paradigma, uma transformação de grandes dimensões: uma nova consciência holística, trans-histórica, trans-pessoal, trans-religiosa. Amanhece uma sociedade global, planetária, heterogênea, descentralizada, um ecumenismo planetário; um novo humanismo, uma nova lógica cultural do movimento, inovação constante...
A pedra que fora removida do túmulo de Jesus indicou a Maria Madalena uma novidade que seu coração buscava, uma novidade que espanta, enche o coração do desejo de procura: “Ele vive”.
O caminho dela em direção ao túmulo é símbolo da coragem de atravessar o escuro da madrugada para ver resplandecer uma nova aurora em sua vida, pela força criadora da única Presença que tudo sustenta, tudo recria e enche de amor. A presença do Cristo Ressuscitado.
Na madrugada da Páscoa, Maria Madalena vai ao sepulcro; ela é símbolo daquela comunidade que se movia entre a luz e a obscuridade. Ainda vive focada no sepulcro (morte); por isso, “ainda estava escuro”. Mas, ao mesmo tempo, começava a clarear (“ao amanhecer”) e a “pedra estava removida” (a pedra da dúvida, da tristeza e da resignação fatalista). Tudo parece anunciar algo definitivamente novo: é “o primeiro dia da semana”; trata-se, nada menos, que de uma nova Criação.
Segundo os evangelistas, as mulheres são as primeiras testemunhas da ressurreição de Jesus Cristo, pois Ele aparece primeiramente a elas. Segundo Tomás de Aquino o motivo desta precedência é porque elas estavam melhor preparadas que os homens para entender e acolher a maravilha da Vida. E estavam melhor preparadas porque O tinham amado mais.
Texto bíblico: Jo. 20,1-9
Oração: “Senhor, em meus horizontes, a vossa utopia: desejo de viver a esperança com encantamento”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
26.03.2013
Normalmente o Sábado Santo não merece maior atenção de nossa parte; acabada a Sexta-feira Santa já pensamos no Domingo da Ressurreição. No entanto, o Sábado Santo reivindica uma reflexão e um lugar na nossa vida espiritual.
O Sábado Santo é um dia de penumbra: entre a sombra da Sexta-feira e a luz do Domingo. É o dia da ambiguidade, do luto e da possível boa notícia, da espera e da esperança. É o dia dedicado à solidão de Maria, o “dia não-litúrgico”. É o dia em que Jesus “desce” à morada dos mortos, na obscuridade mais absoluta. Ali não há visão de Deus; por isso, a Escritura a chama “inferno”.
É o dia do ocultamento de Deus, do silêncio de Deus Pai, da grande solidão de Jesus, do Filho perdido na obscuridade, na “terra de ninguém”. Jesus no túmulo simboliza o silêncio, a volta ao mais íntimo de si mesmo, abraçando a solidão sem se sentir solitário.
Um Silêncio entendido como outra forma de presença de Deus.
O silêncio de Deus deve ser respeitado, pois a Deus lhe dói a morte de seus fiéis (Sl. 116,15): o Pai não estará fazendo luto por seu Filho e por suas criaturas?
* Não será que o silêncio do Sábado Santo supõe o direito de Deus se calar?
* Quê Deus não tem direito de guardar silêncio?
* Quem somos nós para exigir de Deus que nos esteja falando continuamente?
Se não oramos a partir desse silêncio, é porque ainda não mergulhamos no mistério do Amor compassivo.
Muitas vezes negamos a Deus o que de mais humano há em nós: o poder fazer comunidade compassiva e solidária, compartilhando a dor e o luto.
O Pai está de luto; toda a natureza, em silêncio, acolhe a semente do Corpo do Verbo, na esperança de germinar Vida plena. O Sábado Santo, portanto, não é o mutismo de Deus, mas seu Silêncio, ou seja, a ação oculta de Deus estendida no tempo; morte e ressurreição são simultâneas no presente de Deus, mas no acontecer humano só podem ser sucessivas.
Deus nos fala em sua mudez. O silêncio do Senhor nos move a procurar, a escutar, a enxergar...
Além disso, através da passagem do Sábado Santo realiza-se uma transformação radical de nossa imagem de Deus: não como um Ser Onipotente insensível, que desconhece a dor, senão como Amor vulnerável e vulnerado, que assume como Seu o sofrimento da humanidade.
Para que haja uma nova revelação de Deus, deve haver “interrupção”, “silêncio”, da antiga. O Sábado Santo nos faz “morrer” a uma imagem de Deus para abrir-nos a outra nova dimensão e compreensão de seu Mistério. Atravessada a prova dessa “ausência”, seremos levados à Outra Margem, na qual nossa relação com Deus ficará purificada e aprofundada.
Sábado é o dia da paciência, o dia da esperança freada, o dia em que a esperança é acrisolada pelo fogo.
“O Sábado Santo é aquele intervalo único e irrepetível na história da humanidade e do universo em que Deus, em Jesus Cristo, compartilhou não só nosso morrer, mas também nosso permanecer na morte. A solidariedade mais radical” (Bento XVI).
Quem não experimenta isso, permanece no sábado da sepultura, o sábado que não teria nada de “santo”; seria o sábado do castigo e do enterro daquele que por culpa se viu privado de vida. O desconcerto diante da sexta-feira santa pode ser tal que não fica esperança, nem razão para a missão.
Nesta última forma de solidariedade se completa a humanização de Jesus. E o ator dessa humanização total foi o Espírito Santo. A morte de Jesus esteve cheia de Espírito Santo. “Quer dizer que Deus, ao fazer-se homem, chegou ao ponto de entrar na solidão extrema e absoluta do homem, onde não chega nenhum raio de amor, onde reina o abandono total sem palavra alguma de consolo: os infernos. Jesus, permanecendo na morte, ultrapassou a porta desta solidão última para guiar-nos também a nós a ultrapassá-la com Ele.
Todos temos sentido alguma vez uma sensação espantosa de abandono. Isto é o que mais tememos da morte. Como os meninos, nos dá medo ficarmos sozinhos na escuridão. Só a presença de uma pessoa que nos ama nos dá segurança. Pois bem, isto é o que ocorreu no Sábado Santo: no reino da morte ressoou a voz de Deus. Aconteceu o inimaginável: que o Amor penetrou “nos infernos”: na obscuridade extrema da solidão humana mais absoluta. Também nós podemos escutar a voz que nos chama e a mão que nos toma e nos tira para fora. O ser humano vive porque é amado e pode amar. E se no espaço da morte penetrou o amor, então chegou ali a vida. Na hora da extrema solidão, nunca estaremos sozinhos” (Bento XVI, discurso de 2 de maio de 2010)
Deus se revela não só na Palavra, também em seu Silêncio, em seu ocultamento. Quando Deus cala e faz calar, fecha-se os lábios, entra-se no mistério, na mística. Também a vida cristã participa da obscuridade deste dia. Ela se sente chamada a morrer a si mesma cada dia: “viver é dizer constantemente adeus” (Card. Danneels); ela não quer ter medo da morte, porque, caso contrário, teria também medo da vida. Isaac o sírio dizia que os verdadeiros sábios são aqueles que “aspiram a vida dentro da morte”. Aqui acontece o paradoxo na vida espiritual: quanto mais se “sobe”, mais se “desce”. Para renascer a uma esperança viva, teremos que passar pela experiência de “descida ao inferno”, à escuridão, à terra de ninguém.
Mas não podemos esquecer que o ocultamento de Deus é experimentado no contato com a dor e a morte dos outros. A esperança cristã nos leva a com-padecer e com-morrer. Com eles permanecemos na morada dos mortos e “descemos aos infernos”. Mt. 25 nos apresenta os que sofrem como manifestações terrenas da proximidade de Deus. É aqui onde tem lugar o seguimento. É seguimento no espírito da com-paixão. Seguir a Jesus até o inferno, a obscuridade, pois Deus habita em uma luz inacessível (1Tim. 6,16).
O Sábado Santo é também um dia inquieto. No sábado santo da sociedade pós-moderna, somos terra de penumbra. Nela se antecipa a esperança do dia de Páscoa. “Nossa época se converteu sempre mais em um Sábado Santo: a obscuridade deste dia interpela a todos aqueles que se perguntam pelo sentido da vida, e de maneira especial nos interpela a nós que cremos. Também a nós nos afeta esta obscuridade” (Bento XVI).
Como as mulheres, nos deslocamos para o sepulcro, levando aromas. As orações são aromas que o Espírito recolhe em sua taça. A esperança é aroma que faz esquecer a putrefação do cadáver. Na noite do sábado santo nos propomos dormir pouco e levantar-nos muito cedo, porque algo vai acontecer. A Luz está para chegar. O Espírito ficou sem palavra, mas já sussurra. A voz do silêncio já geme; nele vislumbra-se a chegada da Vida. Algo grandioso se prepara.
Da escuridão da morte do Filho de Deus brota a Luz de uma esperança nova: a luz da Ressurreição reflete-se no rosto de Maria. Nossa amizade e devoção a Maria da esperança, a transparência feminina do Espírito, nos mantém no ritmo da espera. Aproximam-se os rumores de ressurreição. É Páscoa.
Não basta renascer; é preciso assumir nossa condição de responsáveis de uma Nova Vida.
Textos bíblicos: Mc. 15,42-47 Jo. 19,38-42
Tarde de silêncio: recordar os grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises...) onde não há razões, não há uma lógica... mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
26.03.2013
Há tantas formas de considerar os mistérios da Paixão e Morte de Jesus.
Há palavras que continuam chegando até nós com grande intensidade; há gestos que impressionam por seu significado; há olhares que calam fundo; há silêncios perturbadores; há lugares que nos surpreendem; há personagens...
Consideremos, desta vez, as mãos, que tanto expressam este mistério. O coração é o lugar onde o ser humano se revela. As mãos são expressão daquilo que está presente no coração; um coração cheio de ternura, bondade, compaixão... se expressa através das mãos ternas, bondosas, compassivas, que praticam a partilha... Um coração cheio de violência, arrogância, ambições, malícias... se expressa através de mãos violentas, maliciosas, fechadas... As mãos... o espelho da alma.
O ser humano vale pelo que vale seu coração, isto é, por aquilo que deseja, busca e ama desde o mais profundo de si mesmo. É no coração – no mais íntimo de seu ser – que o ser humano acolhe ou rejeita Deus e os outros. É o coração transformado que dirige a mão santificada, delicada. É o coração agradecido que transforma as mãos em instrumentos de graça.
Podemos fazer e dizer muitas coisas com nossas mãos. Admiramos as mãos dos artistas, as mãos curativas dos médicos, as mãos terapêuticas de quem transmite energia libertadora, as mãos de uma mãe que amassam o pão e acariciam, as mãos eloquentes dos mudos, as mãos calejadas do trabalhador, as mãos daqueles que abençoam, servem, partem e repartem...
As mãos estão sempre associadas à ação, como a cabeça à razão e o coração aos sentimentos. As mãos, portanto, adquirem uma infinidade de formas: mãos que levantam para abençoar, mãos que baixam para levantar o caído, mãos que se estendem para amparar o cansado. São como as mãos de Deus que criam, que guiam, que salvam... Quando estendemos os braços e as mãos e tocamos o outro espontaneamente descobrimos a compaixão e a riqueza que existe em todos nós.
Na contemplação do mistério da “Paixão de Jesus” consideremos a diversidade de mãos que aí se fazem presentes: as “mãos limpas” dos líderes religiosos que não as usam para o serviço aos outros; são “mãos assépticas” porque não se “contaminam” no contato com as pessoas; são mãos que carregam julgamentos, traficam destruição, encarnam a falsidade e espalham o medo... mãos dos soldados que prendem e golpeiam; mãos de Pilatos que se lavam para negar a infâmia; mãos de Judas que entregam; mãos que não podem resistir; mãos que empunham o chicote; mãos que trançam coroas de espinhos; mãos que batem, mãos rudes que espalham o terror; mãos de Simão que ajudam a carregar a cruz; mãos de Verônica que enxugam o rosto de Jesus; mãos cravadas no madeiro... Onde está a diferença? Não está nas mãos, mas no coração!!!
É o coração petrificado que dirige a mão pesada e violenta. É o coração terno que dirige a mão santificada. E minhas mãos?... De quem são? Para quê são?
1. Mãos fecundas
“Enquanto ceavam, Jesus tomou o pão, pronunciou a benção, partiu-o e distribuiu-o aos discípulos” (Mt. 26,26)
São as mãos que tomam o pão para bendizê-lo, parti-lo e distribui-lo. Tomam o que é importante para fazê-lo chegar a quem dele necessita. As mãos que trabalham e que cuidam, que protegem e acariciam, que abraçam e curam. As mãos que escrevem e produzem, as mãos que se levantam para protestar contra o injusto. Mãos de artista, de artesão, de camponês, de médico, de operário, de mãe, de trabalhador, de amigo...
Quando? Em quê minhas mãos são fecundas?
2. Mãos covardes
“Vendo Pilatos que nada conseguia, mas, ao contrário, o alvoroço aumentava, pediu água e, lavando as mãos, na presença da multidão, disse: ‘Não sou responsável pela morte deste inocente. É problema vosso” (Mt. 27,24)
São as mãos de quem se desinteressa. São lavadas; fecham-se; protegem-se para não se gastar, para não se implicar, para não se comprometer... Mãos de cristal, de porcelana, eternamente imaculadas por não terem vivido nada, ou incapazes de acolher algo.
Mãos que nunca tocaram a terra, o corpo alheio; mãos incapazes de sentir, de ferir-se, de gastar-se um pouco. Mãos lavadas em água, mas regadas em sangue invisível. Mãos que bofeteiam o inocente, ou que rasgam hipocritamente as próprias vestes, escandalizadas por uma verdade que assusta. Mãos frias; mãos verdadeiramente mortas...
Quando? Em quê as minhas mãos são covardes?
3. Mãos servidoras
“Ao saírem, encontraram um cirineu, de nome Simão. E o requisitaram para que carregasse a Cruz” (Mt. 27,32)
Mãos de quem estende uma mão, para ajudar a carregar as cruzes, para aliviar o peso dos ombros, para emba-lar os rostos golpeados. Mãos estendidas... para dar a mão, levantar o caído, sustentar o fraco, curar o enfer-mo, guiar o cego, compartilhar com o pobre, libertar o prisioneiro.
Onde há um necessitado... uma mão estendida. Dar a mão... uma mão amiga. Sem paternalismo que alimen-ta o ego de quem dá e humilha a quem recebe. As mãos... nunca para fazer o outro sofrer, mas fortes e libertadoras, criadoras de vida, mãos generosas que protegem e cuidam da vida ferida...
Quando? Em quê minhas mãos são servidoras?
4. Mãos transpassadas
“Então o crucificaram. E repartiram as suas vestes, lançando sorte sobre elas para saber com o que cada um ficaria” (Mc. 15,24).
Mãos transpassadas por cravos, por cansaços. Mãos que se erguem ao céu em súplica muda. Mãos que buscam algo com o qual saciar a fome dos filhos. Mãos que já não tem forças para sustentar nada.
Mãos que se apertam, desesperadas, em gesto de impotência.
Mãos que procuram ocultar os soluços quando não se pode mais. Mãos feridas, chagadas, atravessadas por cravos invisíveis. Mãos presas com cadeias de ódio, de exclusão, de rejeição. Mãos que batem em portas fechadas, desesperadas.. Mãos muito abertas, esperando ser acolhidas. Mãos já inertes pela derrota.
Quando? Em quê minhas mãos são transpassadas?
Uma mão esconde entre suas linhas a espessura profunda e o valor impenetrável de uma vivência única e irrepetível; exprime autoridade, elegância, dignidade, credibilidade, benção...
Uma mão se faz encontro. Vai aproximando, oferecendo, interrogando, esperando, indicando, saudando, acolhendo, bendizendo... Uma mão se abre, se oferece, se doa...
Ponha um pouco de amor em tuas mãos e tudo o que tocares tornar-se-á benção.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
26.03.2012
“Durante a Ceia... Jesus se levantou da mesa, tirou o manto... e começou a lavar os pés dos discípulos”.
“Não serás amigo de teu amigo até que tenhais comido juntos uma porção de sal”, diz um provérbio árabe. E isso supõe tempo compartilhado, conversação prolongada, confidências entre amigos... Compartilhar a mesa é o grande símbolo da convivialidade, da reconciliação e da inclusão (Is. 25,6-8). A imagem que Cristo escolhe para falar-nos daquilo que é central no Reino é a do banquete, uma refeição festiva. Seu gesto de compartilhar a mesa com as pessoas excluídas prefigurava e preparava a Eucaristia como culminação de algo que foi sendo gestado e vivido naquelas refeições onde os últimos eram acolhidos e tinham um lugar preferencial.
No tempo de Jesus, aceitar alguém na própria mesa de refeição tinha um sentido muito profundo: implicava uma comunhão de ideias, de mentalidade, de forma de agir, de sentimentos sobre as coisas e as pessoas. Cabe aqui perguntar: que sentido estavam dando os apóstolos quando compartilhavam a mesa com Jesus?
Basicamente significava que eles estavam de acordo com Jesus e queriam compartilhar sua forma de pensar e de agir. Caso contrário, não teriam participado da refeição com Ele. O gesto ultrapassa evidentemente o fato de sentar-se juntos a uma mesma mesa e chegava até uma comunhão com o mais precioso que Jesus tinha em seu coração e em seu espírito, com seus sonhos e seus projetos.
A pedagogia de Jesus incluiu a “espiritualidade da mesa”. Ele, antes de fundar uma igreja, fundou a “mesa da vida” (mesa da Última Ceia): mesa da refeição como lugar de comunhão, fonte inesgotável de vida. A comunhão que faz sonhar com a mesa eterna no Reino e desafia seus participantes a viver a partilha como hábito e dinâmica que preserva e promove a vida.
O ritual da mesa rompe as distâncias e garante a proximidade, estabelece o estreitamento dos vínculos com o diferente. Junto à mesa, cada um se coloca diante do outro, não importando as diferenças de vida, opções, modos de ser... A comunhão supõe o rito da inclusão e da partilha. O simples gesto de passar ao outro um pedaço de pão é um gesto despojado de poder, de segundas intenções. A espiritualidade da mesa exala gratidão aos que dela se aventuram em assentar-se. Com isso ela nos interpela a vivermos uma espiritualidade da gratuidade e do serviço de uns para com os outros. Esta é a prova da autenticidade do verdadeiro seguimento de Jesus.
Esta foi a prática de Jesus que mais causou espanto e escândalo: a partilha nas mesas com pobres e pecadores. Literalmente, Jesus foi aquele que “virou mesas” de muitas pessoas e fundou uma outra mesa: mesa da partilha, da festa, mesa da fraternidade onde todos se sentem iguais... Mesa da vida. Trata-se de uma mesa provocativa, questionadora, incômoda... que requer mudança de lugar, de mentalidade, de atitude... Sair da própria mesa e caminhar em direção à mesa dos outros.
Comendo e bebendo com todos os excluídos, Jesus estava transgredindo e desafiando as formalidades do comportamento social e das regras que estabeleciam a desigualdade, a divisão, a exclusão... Jesus revelava uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos... Ele não só transitou por outras mesas, mas instituiu a grande Mesa para a festa, a intimidade, a memória: a “mesa do Lava-pés e da Última Ceia”. Ali, Ele “despoja-se do manto” (sinal de dignidade do “senhor”) e pega o avental (toalha, “ferramenta” do servo). Jesus está no meio dos homens como Aquele que serve.
“Despojar-se do manto” significa “dar a vida” sob a forma de serviço. Jesus coloca toda a sua pessoa aos pés dos seus discípulos. O Criador põe-se aos pés da criatura para revelar como ela é amada e como deve amar. “Levanta-se da mesa” – “senta-se à mesa”: movimento de partida e de chegada; mesa que projeta para o serviço e mesa que faz memória festiva, mesa do encontro
O Lava-pés é gesto ousado que quebra toda pretensão de poder. Jesus viu claramente que o perigo mais grave que ameaça seus seguidores é a tentação do poder. Não há dúvida de que isso é o que causa o maior dano a todos, o que mais nos desumaniza. Por isso, com esse gesto, Jesus expressa que nunca quis agir como o superior que se impõe com poder; do mesmo modo, viu em semelhante comportamento uma conduta radicalmente inaceitável entre seus seguidores. A relação que se estabeleceu entre os discípulos e Jesus não foi de submissão a um poder que manda e dá ordens, mas a do “seguimento” que brota da experiência de sentir-se atraído e seduzido pelo “modo de proceder” do mesmo Jesus.
“Tal Cristo, tal cristão”: na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”. “Vestir o coração” com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença atenciosa, do serviço desinteressado...
O que é “tirar o manto?” Para nós o “manto” poderia ser nossa máscara, nossa redoma, nossa capa de proteção que nos distancia dos outros...; é tudo aquilo que impede a agilidade e a prontidão no serviço... “Tirar o manto” é a atitude firme de quem se dispõe a “arrancar” tudo o que possa ser empecilho para melhor servir; é mover-se, despojado, em direção ao outro; é optar pela solidariedade e a partilha; é renovar a vontade de “incluir” o outro no nosso projeto de vida.
Precisamos “levantar-nos da mesa” cotidianamente. Há sempre um lar que nos espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Há pessoas que aguardam nossa presença compassiva e servidora, nosso coração aberto, nossa acolhida e cuidado amoroso... Ora, se não nos livrarmos do manto, tornar-se-á difícil realizar gestos ousados, criativos...
Sempre teremos “pés” para lavar, mãos estendidas para acolher, irmãos que nos esperam, situações delicadas a serem enfrentadas com coragem... A mesa da vida aponta para a direção da gratuidade, da alegria, do convívio, do amor e da comunhão. É preciso “sentar à mesa” para renovarmos as forças e redobrarmos a coragem de nos levantar e, na humildade, sem manto, servir com amor, do jeito de Jesus. “Levantar-nos da mesa” – “sentar-nos à mesa”: movimento de partida e de chegada; prolongamento do gesto provocativo e escandaloso de Jesus.
Isso é viver a Eucaristia no cotidiano da vida.
Texto bíblico: Jo. 13,1-17
Na oração: Não podemos esquecer que na origem daquilo que celebramos neste dia houve uma ceia de despedida, e que somos convidados não a um espetáculo, nem a uma representação, nem a uma conferência, mas a uma refeição fraterna. E, para participar da refeição, a primeira exigência é “ter fome”.
- “De quê tenho fome? De quê tenho sede?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
25.03.2013
“Quem dentre vós não tiver pecado seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra” (Jo .8,7)
Há em todos nós uma dificuldade básica em fazer-nos conscientes e responsáveis de nossos erros. Em muitas ocasiões atua em nós um mecanismo de defesa em forma de negação e de cegueira que pretende evitar a dor e a ferida interior da culpa, preservando nossa auto-imagem e nosso narcisismo. Introjetamos em nós a falsa ideia de perfeição; há uma cobrança social de que não podemos fracassar; temos resistências em assumir nossa condição humana (húmus) pobre e frágil; pesa sobre nossos ombros a força da falsa imagem de que somos semi-deuses...
Uma interioridade petrificada se expressa numa atitude de intolerância e insensibilidade frente aos outros. Normalmente, a petrificação interior é sempre recheada de devocionismos externos, repetitivos, de moralismos estéreis... O legalismo intransigente e inflexível desemboca no orgulho e na vaidade, levando a pessoa a assumir o lugar de Deus, fazendo-se juiz dos outros. Quando a culpa não é reconhecida, porque o próprio perfeccionismo o impede, facilmente a projetamos sobre os outros. E descarregamos sobre outros nossa própria insatisfação, frustração e os nossos próprios sentimentos de culpabilidade.
Elegemos assim uns “bodes expiatórios” sobre os quais lançar o nosso próprio mal interno e, desse modo, procuramos aliviar esse íntimo mal-estar e o peso moral. Quem tem o coração petrificado não tem bênçãos a oferecer, mas pedras a serem atiradas.
Tal atitude é encontrada claramente na cena evangélica da mulher surpreendida em adultério. Ali temos as “pedras na mão”, magnífico símbolo da culpabilidade, prontas a serem lançadas sobre alguém em quem se projeta a própria maldade não reconhecida. Numa postura arrogante, os escribas e fariseus tomam para si o poder de julgar os outros, de dar aos outros o que eles pensam que merecem (recompensa ou castigo, a vida ou a morte).
O “arrogante” é um ser petrificado: a lei é a sua; a palavra é a sua; a verdade é a sua; o momento é o seu. É por isso que Jesus apela ao grupo dos agressores a que dirijam o olhar sobre seu próprio interior e, no reconhecimento de seu próprio pecado, a pedra possa cair de suas mãos. A mulher ficou livre. Os agressores, de outra maneira, também livres do engano de negar sua culpa para projetá-la maleficamente sobre aquela pobre mulher.
Com frequência, Jesus apela de maneira surpreendente às pessoas que encontra na vida. Quando as “pessoas de bem” quiseram apedrejar uma mulher adúltera, Jesus, com um humor muito sutil, deu a “volta por cima” diante da situação embaraçosa e a transformou em uma possibilidade de crescimento para cada um deles, tanto para a mulher como para aqueles que queriam matá-la.
Cada um é encontrado onde está e é convidado a dar um passo para a vida. Jesus não condena às pessoas que acreditavam serem “justas”, mas as fez compreender que uma lei deve sustentar a vida e não matá-la. Jesus não aprova o comportamento da mulher, tampouco a condena como pessoa, mas lhe dá uma nova oportunidade de vida e lhe abre um novo futuro.
No seu longo peregrinar, Jesus encontra as pessoas na situação em que estão, com suas penas, suas dúvidas, suas debilidades e seus fracassos, e as convida a dar um passo adiante na vida. Mas as deixa livres, mesmo as preconceituosas e legalistas, essas que sabem tudo, incapazes de perceber suas próprias debilidades e até se negam em considerá-las.
As “pedras na mão” são fáceis de encontrá-las também em nossas vidas. O convite de Jesus a reconhecer nosso pecado é a única via para que essas pedras não caiam sobre nenhum inocente e, ao mesmo tempo, nós possamos encontrar a possibilidade da transformação e da mudança. A arrogância também é nossa; manifesta-se no nosso pensar e agir cotidianos. Ela é a base de nossas intransigências, dos nossos preconceitos, dos nossos dogmatismos, de nossas críticas amargas, dos comentários maldosos... A arrogância mora no nosso desprezo e nas nossas ironias. Ela nos paralisa.Por isso, a maior infelicidade é ficar estagnado: emoção petrificada, conceitos e pré-conceitos petrificados, imagem de Deus petrificada, atitudes petrificadas, religião petrificada (legalismo, moralismo, perfeccionismo...). Somos submetidos ao grande risco de ficarmos imobilizados, emparedados em nosso corpo, rígidos em nossos pensamentos, em nosso coração e em nosso espírito.
Um outro aspecto a ser levado em consideração: há algo de diferente que é transmitido pelo rosto humano. Existe alguma coisa, além da aparência, que é comunicada pelo olhar de um ser humano. E onde estará esse “ponto” inacessível no qual se encontram os olhares? De onde vem esse olhar? Nosso olhar, normalmente é carregado de lembranças negativas, de julgamentos, de suspeitas, de comparações... No evangelho de hoje, onde os homens viam uma adúltera, Jesus via uma mulher. Seu olhar não se detinha na máscara, mas contemplava o rosto e despertava na pessoa ricas possibilidades de vida.
Com o olhar, podemos transformar uma pessoa, destruí-la ou reconstruí-la, aniquilá-la ou fazê-la renascer, restituí-la a si mesma e ao futuro, fazê-la chorar ou consolá-la, expressar-lhe ódio, indiferença ou amor... Muitas vezes, o presente mais precioso que podemos dar a alguém é um olhar diferente; o futuro, a acolhida, o perdão, a alegria... dessa pessoa podem depender desse olhar novo, cheio de afeto e confiança. Em muitas situações difíceis da vida, o que salva é o olhar.
Olhar com os “olhos cristificados”: eis o desafio. Não se trata de qualquer olhar. É o olhar limpo, diáfano, que desarma, que não esconde engano ou segundas intenções, que não só apresenta um rosto, senão que em si mesmo é a entrega total de quem olha.
Contemplar o rosto do outro é sentir sua presença, sem pré-conceitos e pré-juízos..., vendo nele o sinal da ternura de Deus. Passar da contemplação à acolhida: este é o movimento da oração dos olhos. Olhar admirado e gratuito, como aquele de Cristo, que transforma, que liberta e que se comove diante da realidade, especialmente da frágil realidade humana.
Jesus olha cada ser humano como tal, mas este gesto não é um simples ver as pessoas, mas um olhá-las a fundo; ou seja, Jesus dirige seu olhar às pessoas para perceber nelas aquilo que para Ele é o mais importante: quer ver quê traços e quê imagem de Deus as pessoas revelam para quem as olha.
Ao olhar os seres humanos Jesus faz refletir a dignidade que eles carregam: filhos(as) de Deus, as criaturas mais apreciadas pelo Criador. E que por isso merecem viver.
Texto bíblico: Jo. 8,1-11
Na oração: Contemplar as “pedras” presentes na própria mão (contra quem costumo lançá-las?...)
* O que nos faz ficar petrificados por dentro? tão duros, tão insensíveis?
* Como passar do coração de pedra para a morada da fonte de água viva?
* Como libertar o nosso coração dos medos que nos levam a excluir e rejeitar os outros e fechar-
nos numa fria rigidez?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do CEI - Centro de Espiritualidade Inaciana
11.03.2013
“Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão” (Lc. 15,20)
4º Dom. Quaresma
Toda a parábola acontece entre dois pólos: distanciamento e proximidade. No início, parece que só o filho mais novo estava longe do pai e da sua casa: lá, numa situação de extrema miséria e morte, ele sente saudades da casa do pai, espaço do amor e da vida que ali reinavam. Mas, a volta do filho “distante” ressalta, inesperadamente, a distância do filho mais velho, o “justo”, que sempre esteve em casa e que servia ao pai de modo irrepreensível. Na realidade, porém, também ele vivia, sem se dar conta, como estranho e... distante.
Para ambos os filhos torna-se necessário percorrer uma estrada exigente e árdua de “retorno”, não só para a redescoberta do próprio pai, mas também, da própria dignidade e da verdade sobre si mesmo.
O filho “perdido”: o filho mais novo, decidido a uma realização pessoal e autônoma, distancia-se daquela casa, onde tudo parecia ser muito tranquilo e monótono. Contudo, no momento em que se encontra em estado de completo abandono, com a ameaça da morte diante de si, volta, em seu coração, a lembrança de casa e a saudade da segurança, que lá podia encontrar com abundância. Enquanto estava mergulhado nas trevas da morte, a luz da vida, finalmente encontra espaço nele. Então a lembrança se torna decisão; a decisão... caminho, retorno... aproximação. No momento de maior distanciamento e solidão, esse filho se dá conta, em seu íntimo, da ternura e do amor do pai.
O filho “fiel”: podemos deduzir que sua vida está voltada ao sacrifício, ao trabalho duro e às privações. Não é um homem qualquer; viveu a virtude da obediência ao máximo grau. Cresceu sem alegrias: ele mesmo lamenta de não ter jamais recebido um cabrito para fazer festa com os amigos. O acontecimento da volta do irmão o surpreende enquanto está no campo, cumprindo seus deveres; fica desnorteado com a manifestação de amor do pai para com o filho mais novo. O “justo” petrificado por saber-se perfeito está impedido de experimentar a compaixão. Dado o seu legalismo, era incapaz de considerar a existência além da lógica do prêmio e do castigo.
O comportamento comovente do pai não o toca nem por um instante; pelo contrário, a conduta do pai provocou um golpe profundo na sua vida: quê sentido tem a vida, a dedicação em cumprir a lei? O clima de festa que encontra em casa no seu retorno do trabalho o fere e o surpreende. Exatamente naquele instante em que descobre o outro lado do rosto do seu pai, aquele verdadeiro, ele entende não só ser “filho, mas também ser convidado a ser autêntico “irmão”. Ele, que sempre fizera todas as coisas, fora “justo”, tinha “servido” seu pai por tantos anos, compreende que, para entrar no senhorio do amor, para entrar na festa da vida e viver na verdadeira comunhão com o próprio pai, deveria dar um passo difícil – inaceitável para ele: acolher como “irmão” aquele filho de seu pai, que desperdiçara a própria herança com as prostitutas.
No final, aquele filho, que sempre estivera ao lado de seu pai e nunca fizera nada de errado, compreende que a única coisa justa era entregar-se ao amor. O que torna a vida verdadeira, não são quantas e quais coisas se faz, mas o espírito profundo que sustenta cada passo e motiva cada opção. Só o amor, e não a dedicação forçada do servo, pode dar sentido, sabor e valor à vida.
Aquele pai procurava encontrar com seus filhos, não com os servos.
O pai “desconhecido”: O que chama a atenção no início da parábola é o silêncio do pai. Nenhuma observação, nenhum “mas”, nenhum obstáculo, nenhuma indicação para que o filho caçula evite os perigos, não se perca no caminho. É o primeiro silêncio enigmático. E o silêncio faz parte da pedagogia do pai, pois ele não é um pai que “programa” os seus filhos e permite que cada um amadureça, se torne adulto, corra seus próprios riscos, invente a própria vida, aprenda com os fracassos... filhos capazes de escolher sozinhos. Para quê serve a vida se não para se decidir, a todo instante, como viver!
A pedagogia do pai não se baseia no poder, na obediência, nos costumes, em prêmio e castigo. A figura do pai, que no início da parábola ficara completamente na penumbra, de poucas palavras, inerte e até frágil, agora aparece movida por uma atividade marcada pela compaixão. A escandalosa humanidade do pai deixa-se transparecer nas cinco ações que revelam atitudes, disposições, estados de alma: “Estava ainda ao longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos”.
Da sua fragilidade o pai pressente a chegada do filho. É um ancião, mas, solícito, põe-se a correr ao encontro; encontra-se longe, mas tem um olhar profundo. É a humanidade do pai que “vê”, não a razão. Em vez de manifestar ressentimento, sente-se comovido, tem compaixão; carinhoso, cobre aquele filho com uma superabundância de abraços e beijos. Quando finalmente, teve diante de si o culpado, não o julgou. A humanidade do pai não condena, mas é a condição para o perdão. Pronto e decidido, prepara uma festa digna de um rei, com uma sequência insistente de ordens aos empregados.
O filho “perdido” foi reencontrado, o pai “abandonado” volta a conviver. Seu filho redescobre o verdadeiro valor da vida e o pai revela o seu verdadeiro rosto: recupera o filho que pensava “morto” e o reveste de dignidade. No amor, portanto, se manifesta o verdadeiro rosto paterno e tudo se torna uma extraordinária explosão de vida.
Na parábola, o pai aparece sempre como alguém que contraria as expectativas dos ouvintes, que vai contra as expectativas de quem está habituado à lei do “olho por olho, dente por dente”. O pai, ao ouvir a confissão do filho, se abstém de condenar e exagera no perdão. Não permanece frio, como costuma acontecer com uma pessoa que se sente ofendida. O pai adota uma atitude de aceitação total. Dá ao filho aquilo de que ele mais precisa: roupa (para recuperar sua condição nobre), anel (para lembrar a sua condição de filho) e sandálias (para não sentir-se escravo, mas livre).
O Pai faz a festa para o filho perdido e reencontrado. Mas ama também aquele que ficou em casa, ao seu lado, e que deixou seu coração endurecer. Ele vai ao seu encontro, vai para pedir que participe da alegria do reencontro. Não o deixa na sua solidão e na sua rejeição. Não acusa seu pecado. O Pai vai procurar aqueles que tem um coração de pedra, egoístas e invejosos.
O fato miraculoso não está só em que o pai não renegou o filho mais moço, e sim que tenha sido compreensivo com um homem tão duro, frio e rígido como o filho mais velho, e que continua a chamá-lo de “filho”. É essa a pedagogia do pai: ensinar a ver as coisas não a partir do moralismo da perfeição, mas da compaixão.
Texto bíblico: Lc. 15,11-32
Na oração: todos nós deixamos transparecer as marcas de cada um dos personagens da parábola. Considerar, diante de Deus, quando vivemos atitudes do filho mais novo, do mais velho e do pai.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
04.03.2013
“... pensais que eram mais culpados do que todos os habitantes de Jerusalém?” (Lc. 13,4)
No seu caminho de vida Jesus se depara com acontecimentos trágicos; algumas pessoas lhe dão a notícia de uma horrível matança de alguns galileus no interior do Templo. O quê estas pessoas esperam de Jesus? Desejam que Ele se solidarize com as vítimas? Querem que Ele lhes explique qual é a culpa dos galileus para merecer uma morte tão violenta? Por que Deus permitiu aquela morte sacrílega em seu próprio templo? Para os judeus não há castigo sem culpa. Esta é a nossa permanente tendência em buscar culpados pelas desgraças, sejam provocadas pelo próprio ser humano, pela força da própria natureza, pelas doenças inesperadas, acidentes, etc...
Jesus desmascara tal atitude e rejeita toda crença de que as desgraças são um castigo de Deus, ou que as pessoas, de uma maneira ou de outra são culpadas. Jesus não revela o rosto de um Deus “justiceiro” que castiga seus filhos e filhas, “distribuindo” enfermidades, desgraças ou acidentes... por causa de seus pecados. Ele não perde tempo com considerações teóricas sobre a origem última das desgraças, nem da culpa das vítimas ou da vontade de Deus. Ele convida as pessoas a dirigirem o seu olhar para o presente, fazendo uma “outra leitura” dos acontecimentos trágicos.
Certamente, a primeira coisa não é perguntar-nos onde está Deus, mas, onde estamos nós diante das calamidades e sofrimentos. A pergunta não é “por quê Deus permite esta terrível desgraça?”, mas “por que nós consentimos e não reagimos solidariamente diante de tantos seres humanos que são violentados, que vivem na miséria e fome, que são indefesos diante da força da natureza?
Aquele que acompanha Jesus no seu caminho de vida, também “vai sendo talhado” pelas cenas que contempla, com o coração aberto à dor e à aflição da humanidade. Essa dor esvazia nossas autossuficiências e purifica nossas autoimagens narcisistas, humanizando-nos. Ao contemplar o amor redentor de Deus revelado em seu Filho Jesus, nós nos perguntamos onde está Ele quando acontecem desgraças. Há aqui uma inversão de perguntas: Para responder à interrogação -“Onde está Deus nas situações de sofrimento e morte?”-, Deus nos desafia a responder à sua própria questão: “Onde está você no meu sofrimento?”.
Na Quaresma, de modo especial, “descemos” com Jesus até às dores da humanidade. A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o rosto Compassivo de Deus, identificado com todas as vítimas da história. É o Deus que se identifica com a dor do mundo, com a marginalização dos excluídos e com a desgraça de todos os miseráveis da terra. Não podemos chegar ao Deus de Jesus pelo caminho largo e fácil do poder e da razão, senão pela senda escarpada e dura da solidariedade e da loucura da Cruz. A questão determinante para os cristãos está em buscar a Deus e crer na sua transcendência a partir da solidariedade com as vítimas, com os crucificados deste mundo e com todos os que necessitam calor humano, compreensão, tolerância, companhia e carinho.
O tempo da Quaresma desperta em nós o sentido profundo da conversão, e isto não significa pedir contas a um “deus distante”, mas identificando-nos com as vítimas; não descobriremos Deus quando protestamos sua indiferença e frieza diante das desgraças, ou negando sua existência, mas colaborando de mil formas para “aliviar a dor humana”. Vamos então descobrir que Deus está nas vítimas, identificando-se e sofrendo com elas, defendendo sua dignidade eterna de filhos e filhas; vamos descobri-Lo presente naqueles que lutam contra tudo aquilo que desumaniza o ser humano.
A busca em apontar culpados nos limita, nos afunda, alimenta a irresponsabilidade que infantiliza, e nos faz cair no angustiante sentimento de culpabilidade e desespero; a atitude sadia é a da responsabilidade, como sentimento maduro de quem acolhe a vida com as diferentes situações que ela apresenta. É a responsabilidade que desperta pesar e dor frente às situações de desgraças e calamidades; mas esse pesar doloroso não nos paralisa e nem nos afunda, mas nos mobiliza para a mudança. É esta responsabilidade que podemos associá-la com a conversão, pedida pelo Evangelho de hoje. Porque o “perecer” de que fala não deve ser entendido em chave de ameaça, culpa ou castigo, mas simplesmente como a consequência de uma atitude e um comportamento desajustados. Em outras palavras: se não somos responsáveis, ou se não respondemos humanamente aos diferentes desafios que a vida nos apresenta, estamos fechando as portas de saída, criando infelicidade para nós e para os outros, tornando a convivência impossível e destruindo o planeta; ou seja, estamos provocando nosso próprio desastre. É precisamente a isso que aponta a parábola da figueira plantada na vinha.
A “experiência de fé” constitui, muitas vezes o lugar onde a culpa pode nos armar as piores trapaças, impedindo a manifestação da força vital que há em nós. Desse modo, a fé, em vez de libertar, converte-se num verdugo a serviço das forças de morte, traindo assim o que há de mais profundo em sua mensagem de liberdade.
A mensagem alegre do Evangelho se perverte e a vivência cristã deixa-se invadir por um mal-estar difuso, uma tristeza, uma angústia, um pesar... que muitas vezes tornam difícil reconhecer no anúncio de Jesus uma mensagem da Boa Nova. Também a imagem do “Deus sempre maior”, do Deus vivo e prazeroso, do Deus livre e libertador, fica diminuída segundo o tamanho de nossa consciência e inconsciência, marcadas pela culpabilidade. Por obra e graça da culpa, “Deus” converte-se num Deus de morte, num Deus oprimido e opressor, num Deus “onivigilante”, que investiga morbidamente em nossa interioridade qualquer pensamento ou desejo. D’Ele nada escapa: tudo vê, tudo escuta, tudo controla... Um “deus” assim é inaceitável e insuportável.
“Assim como Deus nos libertou do pecado... torna-se urgente libertar Deus da culpa” (Dominguez Morano). Um “Deus de vida” nos foi revelado, mas nossa culpa o transformou num “Deus de morte”. “Libertar Deus da culpa” significa “deixar Deus ser Deus” em nossa vida. Poderíamos, assim, redescobrir e viver na presença de um Deus compassivo, um Deus festa, um Deus afeto, um Deus liberdade, um Deus criança...
Foi justamente para nos libertar do atoleiro da lei e da culpa que Cristo assumiu nossa condição humana. N’Ele, o Pai nos libertou da angústia da culpabilidade mórbida, para tornar possível em nós um encontro fecundo e transformador da vida. Libertados do “circulo infernal da culpa”, agora sim, podemos aderir à novidade do Reino, na plenitude da alegria e da festa.
Texto bíblico: Lc. 13,1-9
Na oração: Examinar com cuidado a origem e a finalidade dos sentimentos de culpa pode produzir um grande avanço no caminho da saúde interior e espiritual. Esclarecer, desmascarar a culpa, pode ser muito libertador, pois fortalece nossa atitude esperançosa e nossa relação com Deus, com o mundo e com os outros revela-se mais transparente e otimista.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI –
25.02.2013
“... e subiu à montanha para rezar” (Lc. 9,28)
2º Dom. Quaresma
O relato da “transfiguração” se situa expressamente em um contexto de oração. É ali onde, através da luminosidade do seu rosto, Jesus deixa transparecer algo da sua verdadeira identidade. Por isso, na transfiguração, a humanidade de Jesus é pura transparência de Deus. Ou seja, o que há de divino em Jesus está em sua humanidade. Só no humano transparece Deus.
A Transfiguração está nos dizendo quem era realmente Jesus e quem somos realmente cada um de nós. Ela nos revela também nossa identidade e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade. Por isso, uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é transparência de Deus. Em outras palavras, a vivência do humano nos diviniza.
A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro. A Transfiguração possibilita cultivar um “olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em cada ser humano, para além de suas aparências, um ser transfigurado, porque somos capazes de vê-lo em sua beleza e bondade originais; um olhar que sabe deixar-se impactar por tudo aquilo que nos cerca e é capaz de render-se diante do Mistério.
O Tabor não só é o lugar do encontro íntimo com o Senhor; implica também o encontro com o melhor de nós mesmos (nossa identidade); a Montanha nos “transfigura”, revelando nosso ser essencial; no silêncio do monte poderemos perceber quem “somos nós”. “O evangelho é um itinerário para abrir com profundidade a interioridade humana” (Rovira Belloso) e nele vemos como Jesus promove o retorno ao interior; o mistério da transfiguração nos des-vela e nos move a ultrapassar nossas “falsas imagens” e encontrar-nos com a luz que nos habita. Podemos “entrar” dentro de nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, de transparência, de divino.
Transparente é um modo de ser; a transparência faz referência à luz, à vida interior, ao conhecimento próprio, ao desejo de deixar-se ver, à pureza de intenção, à simplicidade e ao deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus. Jesus continua se “transfigurando” na montanha interior de cada um. Se com Cristo quisermos “subir” ao Tabor, temos primeiro que “descer” com Ele até às profundezas da própria realidade pessoal. Nesse sentido, “subir” ao Tabor implica “descer” em direção à nossa própria humanidade; quem mergu-lha em sua condição humana e terrena e se reconcilia com ela, este sim, está subindo para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus verdadeiro.
A espiritualidade cristã nos ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais profunda e assim chegamos à corrente subterrânea; aqui experimentamos a unidade de nosso ser; aqui é o lugar da transcendência, onde nossa transformação realmente acontece. “Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser.
É preciso “descer” até o fundo para descobrirmos uma nova fonte para a nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida. Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. Deus libera em nós as melhores possibilidades, recursos desconhecidos, riquezas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...
A experiência de Montanha, portanto, significa experiência de trans-figuração, ou seja, nos revela nosso ser essencial, nos faz ir além de nossa aparência para captar nossa riqueza interior, nosso eu original.
Tabor significa sair de nosso pequeno e limitado mundo cotidiano, de nossa visão estreita das coisas, da vida corriqueira do vale...; significa alargar nossa visão da realidade, abrir novos horizontes... Por isso, a transfiguração no Tabor implica ter “mais janelas e menos espelhos!” em nossa vida interior. No espelho nós nos vemos. E o que vemos não é o que somos, mas o que aparentamos ser. Dessa percepção não saímos. O horizonte perceptivo é mínimo, incapaz de ampliar nossa visão de mundo, da realidade e dos outros.
O Monte Tabor nos oferece janelas que permitem ampliar nosso horizonte. Através delas purifica-se o ar denso, pouco respirável que geramos fechados em nós mesmos. As janelas nos situam em comunhão com a natureza e a humanidade, sem a qual não existe pessoa humana. Servem para revelar aos outros algo que é nosso; elas apontam para a porta que se abre, para que os outros entrem em nossa vida.
A subida ao Tabor nos potencia, libera energias e recursos escondidos, torna-nos criativos, coloca-nos em movimento, tirando-nos de nossa acomodação... “Subir” ao Tabor é deixar-se conduzir pela presença do Espírito de Jesus para “descer” com mais vigor e ânimo ao vale do cotidiano e ao compromisso para com a prática do bem e da justiça.
Texto bíblico: Lc. 9,28-36
Na oração: A oração cristã é o caminho interior do Tabor que faz a pessoa chegar até o próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de si mesma, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde a pessoa mergulha no silêncio, à escuta de todo o seu ser.
Para realizar-se e desenvolver toda a sua potencialidade, busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de seu ser, o núcleo original de sua personalidade. É no mais profundo de sua interioridade que você escutará o Senhor. Deixe-se invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana –CEI
19.02.2013
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