Não apenas passantes
Ontem uma estrela disse
à pequena luz em meu coração:
Não somos apenas transeuntes
passando.
Não morra. Sob esse brilho
alguns andarilhos permanecem
caminhando.
Você foi concebida por amor.
Portanto, não leve mais que amor
àqueles que tremem.
Um dia todos os jardins brotaram
de nossos nomes, daquilo que restou
dos corações ansiosos.
E desde que se tornou madura,
esta língua antiga
nos ensinou a curar pessoas
com nossos desejos,
como ser um aroma celestial
para relaxar seus pulmões contraídos:
um suspiro de boas-vindas,
um hausto de oxigênio.
Suavemente passamos sobre as feridas,
como uma gaze suave, um olhar de alívio,
uma aspirina.
Ó pequena luz em mim, não morra,
mesmo que todas as galáxias do mundo
se apoximem.
Ó pequena luz em mim, diga:
Entrem em paz no meu coração.
Todos vocês, entrem!
Heba Abu Nada
poeta e romancista, morta em outubro de 2023 nos bombardeios na Faixa de Gaza.
Affonso Romano de Sant’Anna
Que saibas sempre ser abraço que abriga. Talvez esse abraço seja tanto, talvez seja tudo, para alguém.
Que saibas sempre ser sorriso do coração. Talvez esse sorriso seja sol nos dias cinzentos, para alguém.
Que saibas sempre ser mão que ampara. Talvez essa mão seja luz na escuridão, para alguém.
Que saibas sempre ser colo que serena. Talvez esse colo seja paz na tempestade, para alguém.
Que saibas sempre ser olhar mais fundo. Talvez esse olhar seja abraço na alma, para alguém.
Que saibas sempre ser palavra, ou silêncio, que abraça. Talvez essa palavra, esse silêncio, toque o coração de alguém.
Que saibas sempre ser companhia que conforta. Talvez essa companhia faça sorrir alguém.
Que saibas sempre ser gesto de bondade. Talvez esse gesto seja o lado bom do mundo, para alguém.
Que saibas sempre ser ternura que cura. Talvez essa ternura seja a parte bonita da vida, para alguém.
Que saibas sempre ser amor. Só amor. Que salva sempre. Talvez esse amor seja esperança a acontecer, para alguém.
E para ti também.
Daniela Barreira
in: imissio.net 21,10,24
A GUARDADORA DE REBANHOS
tínhamos uma coreografia toda manhã
ela em uma ponta da cama
eu na outra ponta segurando a mesma coberta
as duas virando o corpo pelo quarto
como numa dança
como naquelas danças da corte francesa
a coberta ficando cada vez mais fechada
até ganhar a forma de um cilindro
enquanto nós duas
mãe e filha
terminávamos unidas pelas dobras do tecido
uma coreografia
que acabava com ela guardando a coberta
como quem guarda em segredo
um coração no armário
Mariana Godoy
in O Afogamento de Virginia Woolf
Patuá, São Paulo, 2019
A gente vai indo...
crescendo...vivendo...
chorando ou sorrindo...
e no vaivém
- da vida,
retorna ao passado:
uma série de ocorrências
acumulam-se
em nossa mente,
cheias de beleza
ou de maldade,
e... no giro, girando
a gente fica,
ficando sempre a pensar
se tudo aquilo
foi mentira,
ou se realmente é verdade
o que nos surpreende
num momento
- de saudade.
Celeste Laus
In Um Pedaço de Papel
Escritora nascida em Tijucas em 1911. Filha de Minervina e Rodolfo Laus.
Poetisa consagrada de Santa Catarina. Autora de Caderno de Sonhos, Poemas Escolhidos e Seleção de Poemas, Um pedaço de Papel, etc...
Teria escrito mil vezes teu nome na areia,
não fosse teu nome matéria em que meu coração se dissolve.
Mistério infinito do mar-espelho.
Amar é espelho do infinito.
Amar é mistério de areia.
Areia é matéria fluida, efêmera.
Areia é minério talvez eterno.
Este grão que penso reter nas mãos
amanhã mesmo o oceano levará.
Nunca saberei de que silício ou cecília
é feito.
Não saberei onde se quedará meu coração de areia:
em doces praias ou voragens,
rochas ou abismos.
Abismo sou agora, sem nome e sem pouso
E a matéria areia, fugaz e eterna,
dolorida e bela,
me consome.
Ana Cecília de Sousa Bastos
in Contemplação do mar
Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2022
imagem: pexels.com
Até morrer estarei enamorada
de coisas impossíveis:
tudo que invento, apenas,
e dura menos que eu,
que chega e passa.
Não chorarei minha triste brevidade:
unicamente a alheia,
a esperança plantada em tristes dunas,
em vento, em nuvens, n’água.
A pronta decadência,
a fuga súbita
de cada coisa amada.
O amor sozinho vagava.
Sem mais nada além de mim...
numa eternidade inútil.
Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)
Às vezes, tantas vezes, não é sobre as coisas grandes.
Às vezes, tantas vezes, é sobre as coisas simples.
Todos os dias.
Às vezes, é sobre aquele abraço mais demorado.
Às vezes, é sobre aquela mão a confortar. A abrigar.
Às vezes, é sobre aquele olhar mais fundo, a ver o que quase ninguém vê, a olhar de verdade: a olhar a alma.
Às vezes, é sobre aquele sorriso do coração, que salva aquele dia cinzento.
Às vezes, é sobre aquele gesto de ternura, que quase parece que cura.
Às vezes, é sobre aquele colo que acolhe. Que ampara. Que serena.
Às vezes, é sobre aquela palavra dita com amor.
Às vezes, é sobre aquele silêncio que escuta com amor. Que diz tudo, sem ser preciso dizer.
Às vezes, é sobre aquela companhia que está, que fica, que se importa.
Às vezes, é sobre cuidar.
Às vezes, é sobre fazer sorrir.
Às vezes, é sobre mostrar (e ser) o lado bom, a parte bonita. Do mundo. Da vida. De tudo.
Às vezes, é sobre o amor. Todas as vezes.
Em todas as vezes, é sobre o amor.
O amor que vamos deixando pelo caminho. E encontrando também.
Daniela Barreira
17.06.2024
imagem: pexels.com
A vida tem crueldades, mas também delicadezas que se
estendem além da paixão - que, sendo relâmpago e trovão,
nem sempre traz a desejada permanência. Em qualquer
relacionamento: amizade, família, trabalho, amor,
somos realidades em choques. O aprendizado não é fácil.
Aqui e ali, tiramos notas baixas, alguma vez somos
reprovados num teste importante. Aceitar essa reprovação
pode levar todo o tempo de uma longa vida. Queremos
o milagre, mais do que o milagre, queremos sempre a
salvação. Mesmo quando o chão começa a afundar,
e o tapete deslizou sob nossos pés aflitos,
teimamos em pensar que ainda há remédio:
um pobre band-aid serviu.
Ou um passe de mágica que nos tornasse
menos expostos, menos humanos.
LYA LUFT
In Secreta Mirada, 1997
ABALO SÍSMICO
O centro do mundo me abala.
Se movem dentro de mim
placas tectônicas
de contrastes turbulentos
entre a maciça certeza
e o bloco monolítico
das opiniões equivocadas.
A escala Richter do que vivo
abala minhas estruturas.
Fico me perguntando
se tremo nas bases
ou se o mundo é torto
e cospe fogo.
Minhas mãos conhecem
o abalo sísmico do que toco.
Em meio aos tremores,
amor é o meu epicentro.
Ronaldo Costa Fernandes
in A Trama do Avesso
7Letras, Rio de Janeiro, 2024
imagem: pexels.com
Vem! Amanhã começa o mundo...
A primeira luz. O primeiro alento.
O primeiro rosto. O que os outros
Vão dizer? As mil palavras de sempre
Talvez também algumas novas
Mas as palavras, meu amor, as palavras
Ainda nem se formaram: só amanhã
Começa o mundo. A primeira pele.
A primeira lua. O primeiro susto.
O homem que disse, uma vez, sabia:
Nascer é mesmo muito comprido.
Nascer, meu amor, não termina nunca.
Mariana Ianelli
in Canções Meninas
Edições Ardotempo, 2019
imagem: Zinaida Evgenievna Serebriakova, russa, Katya (1923)
NÃO CICATRIZA
para Norma Müller
Escrever como quem saca
uma faca
e fere de morte
a pessoa amada.
Escrever como quem
pronto socorre,
aninha no colo,
pensa as feridas.
Escrever o que corta,
o que cura,
o que não cicatriza.
Marcelo Sandmann
in Não Cicatriza
Kotter Editorial, Curitiba, 2021
AS MÃOS DAS MULHERES
Tão atarefadas sempre, as mãos das mulheres
ficam por vezes vazias de afagos,
quase ausentes e indecisas
no esboço de desejos sem retorno.
É então que aprendem a atear o fogo
com a benevolência debaixo da língua
e inventam um alfabeto transparente
para descreverem com detalhe
as madrugadas silenciosas.
Aquelas que colocam no olhar
um estremecimento sagrado
e permitem adivinhar a perfeita simetria de aves
a rasarem a silhueta das casas.
Por isso esperam, ansiosas, de olhos colados na janela,
o regresso dos bandos de estorninhos no fim do verão.
Graça Pires
in Antígona passou por aqui
Poética, Lisboa, 2021
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