O AFASTAMENTO DO PENSAMENTO DE WINNICOTT DOS PRESSUPOSTOS PATRIARCAIS DA METAPSICOLOGIA FREUDIANA
Resumo
Carlos Plastino
Embora afirmando enfaticamente sua filiação freudiana, Winnicott se afasta explicitamente da metapsicologia elaborada por Freud. Está aparente contradição se dissolve considerando que na obra do fundador da psicanálise é preciso distinguir com clareza sua experiência clínica, fonte do saber psicanalítico, da elaboração metapsicológica, por ele definida como especulativa e provisória. O afastamento de Winnicott em relação a essa elaboração tem como fundamento o fato dela incorporar os pressupostos fundamentais do imaginário patriarcal, adotado e adaptado pelo paradigma da modernidade: determinismo, banimento da fantasia criativa, dualismo, concepção mecanicista da natureza, conflito inevitável entre indivíduo e sociedade e necessidade da repressão como condição da sociabilidade humana. O trabalho discute brevemente o afastamento do pensamento de Winnicott desses pressupostos fundamentais que organizam a metapsicologia freudiana.
Palavras chave: afastamento, metapsicologia, fantasia, criatividade, dualismos.
A psicanálise nasceu na prática clínica de Freud, tornada experiência deconhecimento. Experiência singular de conhecimento, a experiência psicanalítica se diferencia das práticas desenvolvidas pelo e para o conhecimento científico. Sustentada numa relação intersubjetiva atravessada de afetos, é dessa experiência que emanam as grandes descobertas freudianas. Foi nelas que, precisando vencer as resistências opostas pelas crenças teóricas que embasaram sua formação e os saberes da época, o fundador da psicanálise descobriu a existência do psiquismo inconsciente, de seu específico processo de conhecimento –o processo primário- e do papel fundamental dos fatores afetivos. Contrariando crenças cientificas então dominantes (Freud,1900,V.VI), transformou a compreensão dos sonhos, afirmando serem portadores de sentido. Foi nessa experiência ainda que Freud compreendeu o sentido e modo de organização das que denominou neuroses de transferências e o papel central desempenhado na sua etiologia pelo complexo de édipo. A elaboração teórica dessa experiência -a teoria clínica-, é quase uma transposição da experiência na teoria, para dizê-lo com as palavras do próprio Freud. Na dimensão epistemológica da experiência clinica criada por Freud, a participação fundamental dos fatores afetivos na relação analítica e na compreensão de seu sentido, assim como a relevância da apreensão e compreensão intuitivas nessa relação, são dominantes, criando assim uma nova forma de saber, radicalmente diferente do imaginário que nutre a perspectiva iluminista do conhecimento, perspectiva que embasava a visão do mundo herdado por Freud. O “Juramento de Berlim”,[1] no qual participaram dois de seus mais importantes mestres, ilustra exemplarmente o peso das crenças que engessavam os ensinamentos que recebera. A caráter inquestionável da concepção materialista do real e a exclusividade atribuída à epistemologia empirista e racionalista cria um abismo entre a concepção então vigente do processo de conhecimento, e a experiência na qual Freud criara a psicanálise.
Na perspectiva iluminista que herdara, Freud pensava “teoricamente” as emoções e os modos de apreensão ligados à intuição, sem questionar a concepção que os privava de sua autonomia como portadores de sentido. Os considerava como expressão da natureza humana, porém concebendo esta na perspectiva reducionista e mecanicista do paradigma dualista, através do qual a modernidade adoptara e adaptara a perspectiva patriarcal de longa data dominante. Como consequência da adesão acrítica desse pressuposto patriarcal, as emoções foram, na elaboração teórica de maior nível de abstração –a metapsicologia- privadas de qualidade e sentido, sendo situadas, na perspectiva dualista no polo inferior. Sendo a concepção dualista hierarquicamente organizada, eram destinadas a ser dominados pela atividade racional do “polo superior”, monopolizadora da produção e transmissão de sentido, assim reduzido ao significado. Esta crença dualista dominante na época presidia a perspectiva de Freud desde antes da criação da metapsicologia, como mostra seu segundo artigo sobre a Psiconeuroses de transferência(Freud,1896). A compreensão teórica dos afetos ao interior da camisa de força da ontologia e da epistemologia moderna, levou Freud a impasses importantes entre a compreensão que obtinha na sua experiência clínica –e a consequente teoria clinica- e a concepção de “maior grau de abstração”, a Metapsicologia”[2], concebida como uma “superestrutura especulativa”, criada para lidar com as questões não passíveis de observação direta. Um exemplo importante desses impasses fica evidente no seu artigo de1915 sobre o inconsciente (Freud,1915). Nele, considerando o processo do recalque, cujo efeito seria a separação do afeto e da representação, Freud afirma que apenas a representação seria objeto de recalque, os afetos não pudendo sê-lo em razão de não possuir, em si mesmos, sentido que o justificasse. Sua experiência clínica, entretanto, lhe impede de ignorar o caráter genuinamente inconsciente que o sentimento de culpa muitas vezes possui. O que o levou a um grande impasse, reproduzido desde outra perspectiva no seu artigo sobre o recalque, do mesmo ano(Freud 1915,).
A desvalorização dos afetos no nível teórico, em aberta contradição com suas descobertas clínicas, revela a hegemonia das categorias centrais da modernidade e do imaginário patriarcal no pensamento metapsicológico de Freud. Essa desvalorização, vigente de longa data, tornou-se dominante num processo concomitante com a afirmação da dominação patriarcal. A evolução do papel dos afetos no processo que levou a afirmação do patriarcado e do racionalismo na Grécia antiga é ilustrativa da formação dessa concepção. Inicialmente considerada a força da vida porém tendendo ao excesso, a paixão requeria a existência de uma “medida” (ratio). Essa “ratio” transformou-se, com a emergência do racionalismo grego, em razão, tendo agora como um de seus objetivos os domínio das paixões.Transformação operada num contexto de afirmação do dualismo hierarquizante da vida social e da própria realidade, base do domínio masculino e racional sobre a mulher, o corpo, os afetos e tudo aquilo considerado pertencente à natureza. Assim, a paixão devia ser dominada pela razão e a sociedade pela dominação patriarcal. A afirmação de uma concepção da vida social e da atividade humana presidida pela ideia de conquista, conflito e dominação, constitui o arcabouço deste processo de desvalorização das emoções. O mesmo processo atingiu a concepção do imaginário humano, reduzido no contexto de afirmação da ontologia determinista, a momento segundo da percepção, ignorando sua participação fundamental do processo de criação. (Castoriadis,1978).
A relação entre a afirmação da perspectiva determinista e o patriarcado é ostensiva. A obra de Platão ilustra a natureza fundamental dessa relação. Reconhecendo explicitamente a paternidade intelectual de Parmênides, Platão afirma a perspectiva determinista, banindo a concepção do real como devir. Nessa concepção a parte emocional é pensada como feminina e situada na parte inferior do dualismo. Como consequência da concepção que desvaloriza os afetos e a imaginação e, sendo a intuição e a imaginação central na atividade poética, Platão propunha que os poetas deviam ser expulsos da cidade. A afirmação da filosofia racionalista implicou assim no banimento do imaginário (da fantasia) e o rebaixamento dos afetos e do feminino, sendo a mulher reduzida ao mundo da necessidade e barrada da atividade política, inserida no mundo da liberdade, reservado aos homens livres. Atualizada pelo dualismo da modernidade, esta concepção dominou o imaginário freudiano, como demonstra exemplarmente no seu “Moises e a religião Monoteista (Freud 1937/39). As relações sociais vigentes no tempo em que Freud realizou suas descobertas, organizadas em torno de um imaginário social ainda fortemente dominado pela perspectiva patriarcal, deu sustento empírico a sua construção teórica, sendo que o determinismo dominante nos pressupostos ontológicos e epistemológicos, o levaram a naturalizar o que constituíam práticas originadas na história e, como o processo histórico posterior mostrou, questionáveis e contingente.
Foi neste contexto que Freud descobriu o complexo de édipo e seu papel central no sofrimento neurótico, realizando uma das maiores descobertas operadas pela psicanálise.[3] O cenário no qual foram realizadas a descobertas freudianas, fundamentalmente vinculadas ao sofrimento neurótico, cimentou a crescente centralidade outorgada à vivência edipiana na organização do psiquismo, fortemente desenvolvida pelos sucessores de Freud no que Winnicott denomina a psicanálise ortodoxa. A ausência de experiência empírica com crianças barrou para o fundador da pasicanálise o aprofundamento da compreensão do processo de formação do psiquismo e de constituição do ego. Mas mesmo quando a psicanálise ortodoxa se aventurou no trabalho clínico com crianças muito pequenos, fundamentalmente no início através da obra pioneira de Melaine Klein, essa primazia teórica do édipo foi mantido. No seu “Enfoque pessoal sobre a contribuição kleiniana” Winnicott escreve : “..nos anos vinte tudo tinha o complexo de édipo no seu âmago” (Winnicott,1983,1962”), acrescentando que as dificuldades anteriores à vivência edipiana que vinham a tona, eram tratadas como regressões a pontos de fixação pré-genital, atribuindo sua dinâmica ao conflito próprio do conflito de édipo, marcadamente genital. O atraso no estudo do ego, reconhecida por Freud, limitou sua compreensão do período de formação do psiquismo a algumas intuições geniais, entre as que se destaca sua formulação da identificação primária, que define como sendo anterior as relações de objeto, operada exclusivamente por fatores afetivos e não mediada pela representação. Como se verá, Winnicott acolhe a intuição freudiana porém formulando uma concepção que, ilustrada pelo seu conhecimento do processo primitivo de desenvolvimento, difere sensivelmente da elaborada pelo fundador.
A influência do imaginário patriarcal persistiu no pensamento de Freud até o final de sua gigantesca produção teórica, e isto apesar dos importantes artigos escritos nos últimos anos sobre a feminilidade (1931 e 1933). Em um de seus últimos textos, acima citados(Freud 1937/39), reflexionando sobre o que denomina “progresso da espiritualidade”, a caracteriza como sendo o estabelecimento do domínio do pensamento abstrato e a razão sobre a sensualidade e a afetividade. No processo do estabelecimento do monoteísmo pelo povo judeu, discorre Freud, a proibição de criar imagens constitui a expressão do abandono da representação sensorial de Deus em favor de uma representação mais abstrata. Assim a sensualidade e irracionalidade, expressão do que no homem é natural, teriam passado a ser dominados, junto com a mulher e a fantasia, pelo poder masculino reestabelecido pela instauração do patriarcado e o relevo da sociedade matriarcal. No mesmo processo, continua, o direito materno teria sido substituído pelo paterno. Na espiritualidade “representações, lembranças e processos de raciocínio se tornavam decisivos por oposição a atividade psíquica inferior, que tem como conteúdo percepções imediatas dos órgãos sensoriais. (Freud, 1937/1939,110). Continua afirmando que a superioridade do pensamento abstrato sobre a percepção dos sentidos embasa a superioridade masculina, posto que a paternidade é um suposto construído sobre um raciocínio e sobre uma premissa enquanto a maternidade é constatada pelo órgãos dos sentidos. Este processo caracterizaria, na sua opinião, “Um trunfo da espiritualidade sobre a sensualidade” representando “ uma renuncia ao pulsional, com suas necessárias consequências sobre a vida psíquica”(Freud,1939,108-110). Assim, na que seria uma de suas derradeiras elaborações teóricas, sustentando a concepção dualista central do patriarcado, atribui os sentidos e a imaginação à mulher, os considerando negativamente. Neste ponto de sua reflexão Freud se pergunta sobre os motivos que teriam impulsionado esses processos e por quê em determinado momento histórico esse processo de substituição foi avaliado positivamente? Dito de outro modo, por que em determinado momento um indivíduo ou um povo considera que a renúncia ao sensual e sua substituição pelo pensamento abstrato seria um progresso e um motivo de orgulho e de afirmação de si? Freud responde a esta pergunta construindo um argumento centrado no processo de emergência do super-ego, retrocedendo até suas origens na pré-história humana, retomando seu trabalho de 1912 “Totem e Tabu”(Freud,1912) no qual atribuía a origem da religião totêmica ao parricídio. O assassinato do pai primitivo pelos seus filhos, afirma Freud, teria produzido “o clan fraterno, o direito materno, a exogamia e o totemismo” (Freud,1939,127). No longo processo posterior, que vai desses tempos primordiais ao estabelecimento do monoteísmo, já em épocas históricas, Freud supõe que se opera lentamente um “retorno do recalcado” e a vivência das moções pulsionais antagônicas e o sentimento de culpa. Vivências que foram conservadas inconscientemente, sendo que ‘o conteúdo do inconsciente é coletivo, patrimônio universal dos seres humanos”(Freud,1939,127). Fazendo uma analogia entre as vivencias coletivas dos povos e os processos individuais estudados pela psicopatologia, Freud declara ter optado por sustentar o suposto segundo o qual as vivências dos tempos primordiais tinham se tornado patrimônio hereditário de todas as gerações seguintes. Aceito este suposto, Freud especula que “o retorno do recalcado”, isto é das vivencias que acompanharam o assassinato do pai primordial, foi acontecendo pouco a pouco ao longo da história humana. A figura paterna teria voltado a ser o chefe da família humana, mesmo que sem o poder irrestrito do pai primitivo. Assim, escreve Freud “foi restaurado o império do pai da horda primordial e puderam ser repetidos o afetos dirigidos a ele” (Freud,1939,129). O estabelecimento da religião monoteísta significaria então o momento histórico no qual “no desenvolvimento da humanidade o sensual é avassalado pelo espiritual.
Presente inicialmente na concepção freudiana pelo papel atribuído ao conflito e à repressão na sociabilidade humana, esta concepção patriarcal, exprimida na cultura ocidental pela crença no “pecado original”, torna-se dominante na última etapa do pensamento freudiano através da concepção da pulsão de morte. Winnicott comenta, criticando explicitamente Freud e Klein, que a afirmação da pulsão de morte caracterizava a incorporação da crença do pecado original na teoria psicanalítica.
Winnicott, filiação e heterodoxia
Na avaliação da obra de Freud e sua compatibilidade com os saberes contemporâneos, é fundamental diferenciar com clareza suas grandes descobertas clínicas –e sua elaboração teórica- da elaboração metapsicológica dessas descobertas. Como foi lembrado acima, Freud pensou a metapsicologia como uma superestrutura provisória, passível de ser modificada ou substituída quando se mostrasse insuficiente ou equivocada à luz da experiência clínica. Confrontado com impasses clínicos, modificou algumas de suas teorias mais importantes, como é o caso da teoria tópica, da teoria pulsional e da teoria sobre a angustia. Entretanto manteve intocado o arcabouço que organiza a perspectiva do imaginário patriarcal e de sua atualização na formulação do paradigma da modernidade. A distinção entre experiência e teoria clínica e metapsicologia é claramente feita por Winnicott. Nas primeiras reivindica sem ambiguidades sua filiação freudiana, chegando a afirmar que os que trabalhavam na clínica deviam tudo a Freud. Em relação à metapsicologia, entretanto, se afasta com igual clareza, afirmando, em correspondência com Anna Freud “não utilizar os termos da metapsicologia” por que “eles podem fornecer uma aparência de compreensão onde tal compreensão não existe” (Gesto Espontâneo, s/d,51.) De fato, a perspectiva de maior nível de abstração criada por Freud, definia limites estreitos para pensar as descobertas clínicas e os conceitos elaborados a partir deles. As importantes modificações introduzidas por Freud depois dos anos XX abriram certamente possibilidades significativas para pensar conceitos fundamentais. O conceito de “primado da afetividade”(Freud,1926), postulado no contexto da segunda teoria pulsional, constitui um bom exemplo, na medida que enfatiza a importância dos fatores afetivos para além de sua característica de força. Entretanto, inseridas numa concepção global dos afetos presidido pelos pressupostos dualistas e deterministas da perspectiva patriarcal, estas transformações teóricas não puderam desenvolver, ao interior da psicanálise ortodoxa, uma linha de pensamento que permitisse aprofundar o formidável potencial de transformação teórica contida nessa afirmação do primado da afetividade. Na teoria tópica são notórias as dificuldades que enfrenta para pensar teoricamente o conceito de Id, como designa o inconsciente originário a partir da publicação do “O ego e o id”.
A precedência dos processos inconscientes sobre os conscientes fora salientada por Freud já na época de elaboração da “A interpretação dos sonhos”. Afirmou, já nesse período inicial, que o psiquismo inconsciente constituía o psiquismo genuíno, podendo a atividade consciente acompanhar ou não os processos inconscientes. Descobrira também que a modalidade de funcionamento do psiquismo inconsciente, por ele denominada de “processo primário”, operava ignorando a linguagem e sua lógica identitaria, constituindo uma forma de pensamento que operava combinando afetos e emoções. O processos primário, afirmava, possuía sentido e era também cronologicamente primeiro, tanto na história da espécie quanto de cada indivíduo e ainda de cada ato psíquico. Todavia estas descobertas revolucionárias foram fortemente limitadas e até ocultadas pela formulação metapsicológica , desenvolvida por Freud no famosos capítulo VII da “A Interpretação dos sonhos”, por ele denominado na sua correspondência com Fliess de “capítulo filosófico”. Nesse capítulo, adota a concepção antropológica cartesiana, pensando a “origem do inconsciente” através de uma dinâmica na qual determinada representação é rejeitada e recalcada, dando origem aos conteúdos inconscientes. É verdade que na segunda tópica designa o Id como psiquismo originário, porém na medida em que não questiona os pressupostos dualistas e a desvalorização que eles impõem do “polo” corporal, Freud não pode avançar muito além de formular a existência originaria do Id, o pensando no registro biológico e reduzindo seu conteúdo às pulsões. Groddek, de quem tomara o conceito (Freud, 1923) comenta que Freud o tinha esvaziado.
Foi enfatizado acima que o saber psicanalítico teve como fonte a prática clínica de Freud. O mesmo pode ser afirmado em relação à teoria elaborada por Winnicott, sendo esta uma das razões que o levaram a afirmar sua filiação freudiana. Winnicott construiu sua teoria a partir de sua longa e diversificada prática clínica. Seu afastamento da metapsicologia –e dos pressupostos patriarcais que a organizam-, tornaram possível a criação de conceitos construídos à partir da sua experiência, e, progressivamente, lhe permitiram formular uma visão de conjunto sobre o desenvolvimento emocional primitivo do ser humano. Ciente desse fato, afirmava já em 1948, contar com “hipóteses de trabalho muito úteis”, enfatizando que “realmente elas funcionam” (Winnicott 1948,2000,234). Não é o intuito deste pequeno trabalho comentar a Teoria do Desenvolvimento Emocional Primitivo ou aprofundar alguns de seus aspectos, mas explicitar o afastamento radical da prática e da teoria Winnicottiana dos postulados centrais do imaginário patriarcal, tão influentes na metapsicologia freudiana.
A concepção do ser humano como definido pelo seu individualismo radical e do laço social como inevitavelmente caracterizado pelo conflito, a repressão e a dominação, configurando sociedades organizadas em forma hierárquica e dualista, constitui, como assinalado acima, o cerne da concepção antropológica patriarcal. Esta concepção do ser humano como radicalmente conflitivo foi retomado pela atualização do paradigma patriarcal operado pela modernidade (Hobbes), enfatizando particularmente o individualismo como cerne desse conflito. O dualismo constitutivo dessa concepção sustenta a exclusividade da razão nos processos de conhecimentos e o monopólio do pensamento lógico na atividade intelectual humana. Consideradas disruptivas, as emoções são nessa perspectiva submetidas à atividade racional e privadas de sua participação nos processos de apreensão, dos quais também a intuição será excluída. O “saber dos poetas” –o saber do inconsciente-, belamente mencionado por Freud nos momentos mais livres de seu pensamento, foi explicitamente condenados na reflexão filosófica organizadora da perspectiva patriarcal, que teve na obra de Platão importante formulação. A concepção do real da perspectiva patriarcal, por sua vez, foi organizada em torno do princípio da determinação, fazendo da racionalidade e da identidade as peças centrais dessa concepção. O banimento da fantasia, e com ela da capacidade de criação de novas formas do ser, consagra uma concepção radicalmente objetiva da realidade, sendo a atividade do sujeito limitada a conhecer a organização racional do real e operar a partir desse conhecimento. A crença da mediação necessária da representação nos processos de apreensão do mundo e de comunicação intersubjetiva, acompanhou a desvalorização do papel da intuição e a separação radical postulada entre o ser humano, pensado como sujeito de conhecimento, e a realidade externa a ele. Estas crenças patriarcais embasam a metapsicologia freudiana, em alguns casos em aberta contradição com suas descobertas teóricas e a teoria que construíra a partir dela. O exemplo do valor da intuição, plenamente reconhecido neste registro, e terminantemente negado na metapsicologia. Sua 35ª. das “Novas Conferências de Introdução à psicanálise”(1933) constitui um claro exemplo dessa negação do valor da intuição.
Nos parágrafos que seguem tentarei por em evidência como os conceitos fundamentais de Winnicott, o conjunto de sua teoria do desenvolvimento emocional e a concepção antropológica que surge de sua teoria, se afastam radicalmente desses pressupostos patriarcais, constituindo uma valiosa experiência de conhecimento para a substituição desses pressupostos e crenças dominantes na nossa civilização.
O conceito de psicossoma
Todo o contexto subjacente à elaboração da metapsicologia freudiana foi afastado pela reflexão de Winnicott. O ponto de partida da concepção antropológica que surge de sua teoria é o conceito de psicossoma, através do qual ele abandona tanto o dualismo antropológico cartesiano como a crença na precedência do indivíduo em relação aos laços sociais. Na sua perspectiva, esse ser denominado psicossoma atravessa um longo e complexo processo de individuação para tornar-se um individuo. Ao nascer é um mamífero dotado pela natureza e pelo processo evolutivo, de tendências cuja atualização criativa, em cada caso, depende radicalmente da presença acolhedora do ambiente humano, inicialmente representado pela figura materna. Característica fundamental desse organismo humano, é sua capacidade inata de elaborar imaginativamente suas experiências, constituindo esta capacidade o cerne de seu psiquismo. Embrião da fantasia, essa capacidade imaginativa embasa a essencial capacidade criativa do ser humano, caracterizando esta afirmação winnicottiana a superação do banimento milenar da fantasia, fundamentando a compreensão da decisiva participação humana na constituição da realidade e relativizando a vigência antes omnipresente do determinismo. Convém desenvolver, nos limites possíveis neste artigo, o pensamento de Winnicott sobre estas questões.
A atividade do psicossoma é pensado por Winnicott através de dos conceitos fundamentados na sua prolongada observação de bebês. O ponto de partida é a constatação de um movimento natural que denomina força vital (Winnicott,1950/55,2000) e se exprime na motilidade que caracteriza a vida do ser humano desde seu estagio fetal. Winnicott a designa singelamente como a caraterística humana que faz que o bebê se mexa ao invés de ficar quieto. Esta força natural o move a buscar algo fora de si, configurando uma característica que Winnicott designa como agressividade, atividade essencial na qual se exprime a espontaneidade que constitui uma característica e uma necessidade fundamental de seu ser.
Winnicott não ignora a existência da agressão e a inimizade entre os seres humanos e na vida social. Ao interrogar-se sobre ela, contudo, se afasta da postulação de uma pulsão determinada pela natureza e insuperável, construindo uma compreensão teórica inspirada pela experiência clínica. O movimento agressivo existe desde o início da vida, no movimento natural do bebê que denomina “amor primitivo”. A presença da agressão desde o começo da vida não obriga entretanto a postular a existência de uma “pulsão natural de destruição”, como teoriza Freud na sua segunda teoria pulsional, definindo as pulsões como sendo um “bloco de natureza indomável na nossa composição psíquica”(Freud,1930). Verificando ser a agressão a resposta à frustração de uma satisfação, Winnicott salienta que, sendo “na prática é impossível a satisfação total do Id” (Winnicott, 1950/55,295), as frustações são, desde o início da vida, inevitáveis em algum grau. Esta compreensão se funda na constatação que, embora fundamental para cimentar um desenvolvimento emocional sadio, mesmo a ação de uma mãe suficientemente boa em estado de “preocupação materna primária”, não pode evitar o surgimento de alguma medida de frustação da satisfação do bebê. No amor primitivo, entretanto não há ainda um ego organizado, não sendo em consequência possível a aceitação da responsabilidade pela agressão, na qual também no existe ódio. Simplesmente a destruição é, no impulso do id, parte do objetivo, sendo meramente incidental à satisfação. A raiva e o consequente temor à retaliação requerem a presença de um eu integrado, ainda inexistente ou em processo inicial de formação, não sendo portanto experiências que o bebê viva no amor primitivo. Este contém então um aspecto destrutivo, embora não exista a intenção de destruir dado que nesse período precoce ainda não existe o concernimento.
A concepção antropológica.
Outra diferença fundamental da compreensão winnicottiana em relação à psicanálise ortodoxa e seus pressupostos é o papel atribuído na sua concepção do desenvolvimento inicial primitivo do ser humano à dependência, acompanhado da tendência natural da mãe a sustentar o nível inicialmente absoluto dessa dependência na capacidade temporária possibilitada pela “preocupação materna primária” (Winnicott, 1956/2000,399), capacidade excepcional que tem como fundamento o “amor devotado” (Winnicott, 1964,1982) Esta participação fundamental do sentimento do amor na relação primária do bebê humano é fundamental na concepção antropológica elaborada por Winnicott. No período primitivo do desenvolvimento emocional, que conclui com a formação do ego e o reconhecimento da alteridade, as pulsões não tem um papel protagónico posto que, não existindo ainda um ego unificado, elas são, como afirmara Freud, parciais. O processo no qual o eu se constitui e a participação decisiva do papel materno nele, é atribuído ao amor, sentimento que tem também um papel decisivo no processo no qual o bebê percebe e reconhece a existência da mãe como alguém diferente dele, concluindo assim a constituição de seu eu (realização), preparada pelos processos de integração e personalização. Também neste processo –a posição depressiva- o amor tem um papel decisivo, guiando a resposta acolhedora e não retaliativa da mãe face a destruição fantasiada pelo bebê como resposta ao processo de diferenciação. O sentimento de empatia que então surge no bebê, “facilitado” pela manutenção do acolhimento amoroso da mãe, embasa nele a conquista do sentimento de culpa, desdobrado na conquista do sentimento de concernimento e no movimento de reparação. Novamente é o amor que permite a percepção materna dessa mudança no bebê e das tentativas de reparação que ele realiza, as aceitando com alegria.
Os desdobramentos desta concepção são gigantescos. Ela permite a fundamentação da emergência do super ego sobre a base de uma tendência natural do ser humano (a empatia) e ao interior da relação ainda dual com a figura materna, no contexto presidido pelo acolhimento amoroso. Trata-se de uma origem espontânea e não imposto da instância superegoica. Winnicott reconhece a existência e necessidade do super ego social descoberto e teorizado por Freud, mas mesmo reconhecendo sua importância, não lhe atribui a centralidade que ganhou na psicanálise ortodoxa. Não lhe atribui a característica de ser a “origem” da moralidade no indivíduo, nem de seu processo de reconhecimento e aceitação da alteridade. (Winnicott1963/1983). No seu “Enfoque pessoal da contribuição kleiniana” equipara a descoberta por Klein da posição depressiva à descoberta por Freud do complexo de édipo, considerando ambos os grandes momentos da descoberta psicanalítica (Winnicott 1962/1963, 160) . O ambiente em que um e outro se desenvolvem é claramente diferenciado, a primeira tendo como característica central a não retaliação e o acolhimento amoroso e o segundo o conflito, a repressão e o recalque. O complexo de édipo, na sua teoria do desenvolvimento emocional, é vivenciado por todos os que tiveram um relativo sucesso na face primitiva do desenvolvimento emocional, não sendo por tanto uma experiência necessariamente enfrentada por todos os seres humanos, como afirma Freud. Na sua perspectiva, aqueles cujo processo de desenvolvimento primitivo fracassa ao ponto de impedir a plena formação do ego, continuam vivendo no mundo da necessidade, não atingindo verdadeiramente o mundo do desejo.
Na concepção winnicottiana, no contexto de um desenvolvimento emocional primitivo bem sucedido, e no contexto da nova figura do pai tornada possível pela acentuada –embora ainda incompleta- decadência da concepção patriarcal, o édipo pode ser vivenciado como um drama e não necessariamente como uma tragédia.[4] Embora reconhecendo a importância da vivência edipiana no desenvolvimento emocional e sua participação no reconhecimento da diferenciação sexual e intergeneracional, a concepção winnicottiana e o papel nela atribuída à passagem pela “posição depressiva” como cenário da emergência do sentimento moral e do reconhecimento da alteridade, afasta, neste importante aspecto da teoria, o pensamento de Winnicott do pensamento freudiano. Se na perspectiva de Freud o indivíduo sai menor do processo de emergência do superego (Freud 1930), operada no desfecho do complexo de édipo, para Winnicott, o surgimento do super-ego espontâneo no desfecho da posição depressiva, torna o indivíduo maior já que “completa” seu processo de individuação pelo início de seu reconhecimento do outro e da sociabilidade que lhe é constitutiva. A imposição do superego pensado como a “implantação de uma cidadela no coração de uma cidade inimiga” (Freud, 1930) tem como consequência o que o pensador carioca Nahman Armony designa como “matriz materna”, forma de relacionamento primário do bebê feita por uma comunicação “corporal, afetiva e intuitiva”( Armony,1013). Esta forma inicial de comunicação do bebê humano, desvalorizada pela patriarcado é por ele destinada a ser dominada, e finalmente esmagada. Esta experiência inicial do bebê é o que leva Winnicott a afirmar a “bondade originária”, terminologia que assinala radical afastamento com a concepção de “pecado original” e a postulação da pulsão de morte.
Na ótica freudiana a ambivalência afetiva gera e sustenta a existência de um sentimento de culpa insuperável, tornando impossível a felicidade na experiência humana e o mal-estar social inevitável. Winnicott não desconhece a existência da ambivalência, mas a considera parte da experiência do ego e não de uma determinação indominável do Id. Lidar com ela constituem, na sua concepção, uma tarefa para a vida toda, sem no entanto fazer do sentimento de culpa o cerne da experiência humana nem impedir sua transformação em sentimento de concernimento e responsabilidade social.
Concebendo a experiência do desamparo inicial como uma possibilidade decorrente da falha do acolhimento ambiental no período inicial da vida, Winnicott não o considera uma experiência inicial inevitável. A importância que atribui ao respeito à espontaneidade do bebê leva-o a questionar a concepção do trauma de nascimento. O cerne de sua compreensão –sustentada em diversas experiências de regressão em trabalho analítico com psicóticos( Winnicott,1949/2000) reside na sua compreensão da enorme significação do agir espontâneo na experiência do bebê, desde seu estado fetal. Não desconhece que na experiência do nascimento a interferência ambiental existe e é inevitável, mas considera que no parto normal não é nem tão intenso nem prologado que exija do bebê uma reação de adaptação, rompendo o fio da experiência de ser (ibidem,265). O parto normal é então não traumático por não ser significativo, sendo que após o nascimento, a “adaptação absoluta da mãe” permite ao bebê retornar à experiência do viver espontâneo. Já no parto traumático a irrupção ambiental, sendo excessivamente intensa e prolongada , torna-se significativa, impedindo que o nascimento seja vivenciado pelo bebê como uma experiência espontânea. O fator mais importante do trauma é, então, a imposição ao bebê de um agir reativo, que provoca nele perda temporária da identidade e um sentimento extremo de insegurança e desesperança quanto à possibilidade de atingir uma vida significativa.
Indivíduo e individuação
Assim, se a teoria ortodoxa pensa o desamparo como experiência inicial fundamental do bebê humano, Winnicott atribui esse lugar a experiência de espontaneidade em situação de dependência absoluta. Esta diferença fundamental de perspectiva é indissociável das concepções antropológicas subjacentes. Freud parte da concepção de um indivíduo anti-social enquanto que Winnicott afirma, a partir de sua experiência clínica, que é preciso considerar o processo de formação desse individuo, ou seja seu processo de individuação. Vejamos isto mais de perto, toda vez que o pensamento freudiano neste ponto é complexo, já que si por um lado aceita a inexistência do ego no início da vida, afirma, ao sustentar a existência do “narcisismo primário”, afirma a precedência de um indivíduo. No primeiro capítulo do seu “O mal-estar na Cultura”, Freud relata seu diálogo com seu amigo Raymond Rolland em torno do que este último designa como “sentimento oceânico”. O texto mostra que, embora reconhecendo a inexistência inicial do ego, Freud mantém o pressuposto individualista central na concepção antropológica patriarcal. A influência desse pressuposto no seu pensamento é de tal ordem, que o levam a modificar radicalmente a afirmação central de seu interlocutor sobre o “sentimento oceânico” sem perceber que sua interpretação do dito pelo seu amigo é radicalmente contraditória com o que Rolland escreve e ele transcreve. Rolland descreve o sentimento oceânico como “um sentimento de ligação indissolúvel, de pertencer ao todo do mundo exterior” enquanto Freud o entende como “um sentimento de conter o todo”. (Freud,1930,66) Embora o fundador da psicanálise pareça considerar ambas as expressões equivalentes, elas exprimem perspectivas radicalmente diferentes. O sentimento de ‘conter o todo’, cuja reminiscência fundamentaria, na opinião de Freud, o sentimento oceânico, supõe a existência do narcisismo primário. O “sentimento oceânico , escreve Freud, “aspiraria a reestabelecer o narcisismo irrestrito”(Freud,1930,73) um sentimento egoico primário (Ibidem,1930,69). O sentimento de “ligação indissolúvel ao todo do mundo exterior”, como escreve Rolland, não supõe um ego, mas uma situação inicialmente indiferenciada. Pensando esta questão na perspectiva da teoria winnicottiana do desenvolvimento emocional primitivo, esta situação pertence aos primórdios da vida psíquica, na qual é construído o narcisismo do indivíduo, inicialmente inexistente. As consequências para a vida psíquica de ambas formas de compreender esse período inicial são radicalmente diferentes e de enorme importância. No primeiro caso é postulada a existência do narcisismo primário, que embasa a inevitabilidade do conflito entre indivíduo e sociedade e da repressão; no segundo caso torna-se necessário postular o conceito de individuação e o papel fundamental do ambiente – da sociedade – nesse processo. A importância dessa participação ambiental, que pode ou não favorecer a atualização das tendências naturais do sujeito, constitui outra diferença fundamental na medida que sustenta a historicidade, das modalidades de relacionamento entre o indivíduo e a sociedade, que não seriam assim determinadas por pulsões elementares, como afirma Freud.
Um ser natural e um ser histórico.
Na concepção winnicottiana o ser humano é pensado, indissociavelmente, tanto como um ser natural quanto como um ser histórico. Ancorado na natureza, o bebê humano é portador de tendências cuja atualização suficiente depende no entanto da insubstituível participação do ambiente favorecedor, inicialmente representado pela figura materna. Dinamizado pela força vital, o desenvolvimento emocional primitivo não está entretanto garantido. Um severo fracasso ambiental no acolhimento do bebê pode afetar em diverso grau a atualização das tendências naturais, dando origem ao adoecimento. Assim o conceito de saúde emocional é indissociável da qualidade do processo de desenvolvimento emocional e do cuidado ambiental. A maneira de conceber a natureza é, no pensamento winnicottiano, totalmente diferente da sustentada pelo pensamento patriarcal -e retomada pelo paradigma moderno e pela metapsicologia freudiana. Afastando-se radicalmente do pressuposto que a pensa ao interior de uma dualidade na qual ocupa a parte inferior, Winnicott não reduz a natureza humana a sua parte material. Seu conceito de psicossoma engloba um organismo (o soma) dotado de uma capacidade ao mesmo tempo natural e imaterial, que caracteriza no início da vida o psiquismo. Também as emoções possuem um sentido na natureza humana, não sendo esse sentido tributário da linguagem, como concebe o discurso dualista inspirado no imaginário patriarcal. Os significados que os sentimentos recebem em cada cultura é certamente uma produção aleatória da linguagem, porém eles possuem um sentido que lhes é próprio. Sentimentos de amor e empatia constituem uma tendência humana fundamental, embora sua atualização criativa dependa –como é o caso de todas as tendências naturais- da atividade acolhedora do ambiente. Sentidos ainda mais fundamentais, como o de que a vida vale a pena de ser vivida ou seu contrário, que não vale a pena, nada tem a ver com a atribuição de significações pela cultura. A não diferenciação entre sentido e significado constitui uma marca do imaginário patriarcal.
Na contramão do imaginário patriarcal e da metapsicologia freudiana, que desvaloriza o corpo a intuição e os afetos, a concepção do desenvolvimento emocional primitivo os considera o suporte da comunicação na relação primária. Na concepção de Winnicott, sustentada em uma longa experiência clínica, é na matriz materna, caracterizada por ser uma relação dual, afetiva, corporal e inconsciente, que o indivíduo constrói seu narcisismo, seu ego e seu super-ego espontâneo. Esta concepção supera assim a concepção cartesiana segundo a qual a representação constitui a mediação imprescindível nos processos de percepção da realidade objetiva. Explicitamente derivada do dualismo antropológico e da redução do corpo (e do que no homem é natural) a uma máquina, esta concepção cartesiana foi encampada pela metapsicologia freudiana, embora não pela sua teoria clínica. Como já mencionado, para Winnicott o que no homem é natural não se reduz a seus aspectos biológicos, mas inclui também a vida emocional e suas tendências, bem como sua capacidade de elaboração imaginativa.
A concepção das tendências naturais e da dependência destas do cuidado ambiental para sua atualização criativa, caracteriza o abandono dos pressupostos deterministas, mecanicistas e individualistas –centrais na construção da metapsicologia freudiana- no pensamento de Winnicott. Sua concepção do desenvolvimento emocional adota claramente a perspectiva historicista, substituindo o conceito de indivíduo pelo de individuação. Na sua perspectiva o desenvolvimento constitui um processo contínuo que abrange tanto o corpo quanto a personalidade. (Winnicott, 2015, 83). Neste processo a experiência da alimentação do corpo e da atividade imaginativa do bebê é fundamental, sendo estes processos indissociáveis posto que baseados um no outro(Ibidem, 2015, 95). Na sua concepção a mente não se confunde com o psiquismo e constitui uma aquisição mais tardia do bebê, surgindo como parte do psiquismo especializado no pensamento lógico. A atividade psíquica existe entretanto desde o inicio da vida, sendo que, como atividade psicossomática, desenvolve as relações do bebê com o mundo externo, que ele ainda não reconhece como tal. Após o desenvolvimento do pensamento lógico, iniciada no contexto de diferenciação operada na posição depressiva, a atividade psíquica continua diferenciando-se do pensamento lógico operado pela mente, ao qual sempre precede.
Fantasia, realidade e construção da subjetividade.
A experiência clínica de Winnicott com os processos de desenvolvimento emocional e o afastamento de sua reflexão teórica da camisa de força da metapsicologia, lhe permitiu construir uma perspectiva original do processo de construção da subjetividade, do funcionamento psíquico e das relações com a realidade. Livre da pesada herança determinista do pensamento ocidental que reduz o papel da fantasia a uma mera reprodução do percebido na realidade, Winnicott pensa a fantasia na sua dimensão de atividade fundamental e incessante da criatividade humana e de sua relação com a realidade. Na problemática da fantasia, como em tantos outros aspectos fundamentais, o gênio de Freud abriu uma nova perspectiva a partir das suas experiências clínicas, mas tornou a fechá-la na elaboração metapsicológica. Descobriu o papel central da fantasia na etiologia do adoecimento psíquico, mas a reduziu a uma reação patológica à aceitação da realidade frustrante. A perspectiva determinista impediu-lhe de compreender a dimensão criativa da fantasia, limitando severamente a possibilidade de pensar a criatividade humana, restringida nesse campo, basicamente, ao estudo dos processos criativos de grandes artistas ou escritores (Winnicott 1975/100).
Na concepção winnicottiana, pelo contrario, a elaboração imaginativa das experiências constitui a matriz da capacidade humana não apenas de apreender a realidade mas também de construí-la, considerando, em consonância com os postulados da física quântica, que a participação das fantasias nos processo de conhecimento é indissociável do ato de conhecer. “A fantasia é mais primária que a realidade -escreve- e o enriquecimento da fantasia com a riqueza do mundo depende da experiência da ilusão” (Winnicott,2000/1945,228). Esta compreensão do processo de apreensão da realidade e da construção do conhecimento pelo indivíduo, exige a superação do dualismo e da perspectiva que atribui à consciência racional o monopólio na atividade de conhecimento. Exige ainda o abandono da concepção mecanicista do corpo e da redução os afetos naturais humanos a pura força desprovida de sentido. Para Winnicott, “a criatividade é uma atitude face a realidade externa”(Winnicott, 1975,95), sustentada pelo agir espontâneo. Seu contrario, que é o agir reativo, tem como consequência a submissão e a incapacidade para uma vida criativa. Como assinalado acima, esta atitude criativa face à realidade externa e à vida, faz o indivíduo sentir que a vida é digna de ser vivida, sentimento este ausente nos relacionamentos de submissão, no qual a realidade é apenas reconhecida como algo a que ajustar-se, a exigir adaptação. A consequência desta última atitude, para Winnicott, é a emergência de um “falso self” –um self construído por adaptação-, o contrario do verdadeiro self, que requer para sua emergência um agir espontâneo e por isso criativo. É nesta concepção que se sustenta sua insistência em que, desde o inicio da experiência de viver, o bebê humano encontre a realidade a partir de um impulso e não de uma adaptação. Estar vivo e saudável exige manter uma relação criativa com a realidade externa e isto é assim porque o impulso criativo é “naturalmente necessário” quando qualquer pessoa realiza algo de maneira saudável.
Enfatizando que o impulso criativo não pode ser explicado, Winnicott afirma no entanto a possibilidade de estabelecer um vínculo entre o viver criativo e o viver propriamente dito, constatando-se assim que “a criatividade relaciona-se ao estar vivo” já que “ser humano é perceber o mundo de maneira criativa’.(Ibidem,1975,99-100). A relação criativa que o indivíduo humano é capaz de estabelecer com a realidade externa, é indissociável das experiências emocionais, sendo o respeito pela expressão da espontaneidade no viver do indivíduo que, como semente da liberdade, embasa a apropriação por parte do indivíduo, dessa capacidade criativa. A experiência do viver criativo é assim condição do desenvolvimento emocional sadio. É assim possível compreender as causas que levam a perda desse viver criativo, compreensão de grande interesse para a teoria do desenvolvimento emocional e para prática clínica
A fantasia media sempre a relação humana com a realidade externa, sendo essa a razão que faz com que dita realidade esteja sempre em processo de criação. Neste ponto de seu raciocínio, tão afastado do imaginário moderno e tão perto da perspectiva contemporânea, Winnicott pergunta com bom humor o que diferencia os “normais” dos psicóticos, já que ambos se relacionam com a realidade através da mediação das fantasias. Responde que os ditos “normais” aprenderam com a experiência, quais são as fantasias que funcionam e quais não, conservando as segundas para o terreno da religião e da arte. Assim, questões tais como, criatividade, fantasia, participação na realidade percebida e inserção do homem na natureza são, na sua perspectiva, indissociáveis da saúde humana, lembrando que, radicalmente afastado da perspectiva determinista, a inserção do homem natureza é compreendida como fonte de exigências cuja satisfação depende da inserção criativa no ambiente.
Na concepção da realidade e das relações com ela, o pensamento winnicottiano se afasta radicalmente da postulada pelo pensamento moderno e encampada por Freud. “Objetividade - escreve - é um termo relativo, porque aquilo que é objetivamente percebido é, por definição, até certo ponto, subjetivamente concebido”(Ibidem,96) A obvia participação da fantasia criativa nesses processos o levaram assim a discordar de Freud no que tange ao papel da fantasia. O que Freud denomina fantasia, isto é uma reação doentia face a uma frustração imposta pela realidade, é denominado por Winnicott de “devaneio”, sendo diferente da fantasia que, como foi lembrado, considera ser anterior à realidade e mediadora de todo contato humano com ela.
A apreensão inconsciente da realidade externa não opera apenas durante o processo de desenvolvimento emocional primitivo, mas constitui uma forma permanente de funcionamento do processo de apreensão do real pelo psiquismo humano. Diferentemente dos processos de apreensão consciente, não é mediada pelo ego. É por essa razão que Winnicott afirma que o ato de criação é feito sempre em estado de não integração. A apreensão inconsciente da realidade é direta, supondo não uma atividade que ordena a realidade constituindo objetos, mas uma atitude de recepção e acolhimento do impacto do real sob sua forma magmática. Constitui um pressuposto dos atos reflexivos, permitindo pensar a difícil questão da eficiência do saber científico. Com efeito, se a ciência deve ser considerada não como um espelho do real mas como uma construção contingente que o ordena, como explicar então que essas construções tenham valor operatório, isto é, sejam capazes de manipular o real? Excluindo a hipótese de uma “feliz coincidência”, torna-se necessário postular a existência de processos que orientem a construção dos modelos científicos de maneira a torná-los capazes de apreender algo da forma de ser do real. Assim, a experiência da apreensão direta supõe uma forma de ser do real que não se confunde nem com uma organização racional nem com o puro caos. Dito de outra maneira: a compreensão da decisiva participação humana na produção da organização presente no real, não equivale a conceber este como privado de toda e qualquer forma própria de ser. Mas por outro lado não é possível atribuí-lhe uma ordem determinada existente em si mesma, na medida que o ato de conhecimento introduz algo do sujeito não apenas no ato de conhecer, mas no próprio objeto.
No contexto de uma concepção do conhecimento que, abandonando tanto a onipotência do racionalismo como o pressuposto de uma forma de ser do real inteiramente organizado conforme a lógica identitaria, nossos conhecimentos se legitimam não por ser expressão da “verdade” do ser, mas pela sua pertinência. Isto é, sua capacidade para, apreendendo algo da forma de ser do real, poder agir sobre ele. Assim, eles são úteis, pertinentes. Mas também provisórios. São “hipóteses que realmente funcionam” ( Winnicott, 1948/1982,288)eficientes para lidar com seus “objetos”
Verdadeiro e falso self.
Esta conceição da criatividade e da fantasia, junto com sua conceição da natureza humana dotada por tendências ao invés que por determinações, constituem no pensamento de Winnicott o contexto que lhe permite formular o conceito de “verdadeiro self”. Este conceito nomeia experiências clínicas no qual a superação do sofrimento neurótico não poder ser considerada equivalente à saúde, já que, mesmo superando o sofrimento neurótico, o paciente em análise continuava sentindo que a vida não valia a pena de ser vivida. O “verdadeiro self” é construído pela vivência do viver espontâneo, sendo frustrado pela imposição ambiental do viver reativo. Ele nomeia a exigência de singularidade que caracteriza todo indivíduo ou o sofrimento de sequer poder sentir essa singularidade. O “verdadeiro self” é uma tendência cuja frustração acarreta sofrimento, não sendo possível entende-lo como sendo uma essência. É preciso superar o pensamento essencialista para poder pensá-lo. Concebê-lo exige o recurso ao paradoxo, conceito que no pensamento de Winnicott não designa uma falha do pensamento lógico identitario, mas os limites dessa modalidade de pensamento. Apreender teoricamente a complexidade do humano exige na perspectiva de Winnicott, superar o monopólio do discurso racional na construção do conhecimento.
Breves considerações finais.
Como assinalado acima, Winnicott abandona decididamente o determinismo afirmando a historicidade não apenas do ser humano mas, até certo ponto, da “realidade objetiva”. Afastando-se da concepção mecanicista e determinista da natureza humana, rejeita a concepção hobbesiana do homem como lobo para o homem , segundo a definição de Hobbes, encampada por Freud e por ele adotada seja na sua concepção da natureza conflitiva do humano e do conflito social como inevitável e da repressão como condição de sociabilidade, seja posteriormente na sua postulação da existência da pulsão de morte (Freud,1930). Reivindicando o que denomina “bondade originária” Winnicott rejeita o conceito de pulsão de morte, afirmando que a origem da moralidade humana não é resultado da imposição operada pela autoridade paterna num contexto de conflito e ameaça, mas emerge a partir da existência de uma aptidão natural para a empatia, atualizada num contexto de acolhimento amoroso do ambiente, representado no período primitivo de desenvolvimento pela figura materna.
Encerrando este breve artigo gostaria de sugerir que a compreensão de Winnicott sobre a sociabilidade constitutiva como característica central do humano, somado a sua concepção sobre o verdadeiro self como uma necessidade fundamental para uma vida com sentido, permite pensar que o conceito de singularidade deve ocupar um lugar central nas reflexões sobre o ser humano, sobre a sociedade e sobre suas relações, constituindo um conceito fundamental para as ciências sociais e humanas. Dito conceito muito auxiliaria na discussão da problemática em torno da questão da identidade de gênero e de novas formas de se vivenciar a sexualidade humana.
Bibliografia citada.
Castoriadis,C. “ Instituição Imaginaria da sociedade”, 1978, Rio de Janeiro, Editora Pas e Terra.
Freud, S. “La interpretacíon de los sueños” 1898/1900/1976, vol IV e V, Buenos Aires, Amorrortu editores.
“ “ “Tótem y Tabú” 1912/1913,1976 vol.XIII. Buenos Aires, , Amorortu editores,
“ “ “Lo Inconsciente”, 1915/1976, , Buenos Aires Vol.XIV, Amorrorut editores.
“ “ “La represíon”, 1915/1976, vol. XIV, Buenos Aires , Amorrortu editores.
“ “ “El Yo y el ello” 1923/1976. vol XIX, Buenos Aires, Amorrortu editores.
“ “ “El Malestar en la cultura”, 1930/1976, vol XXI, Amorrortu editores
“ “ “Moises y la religíon monoteista”, 1939,vol. XXIII, Buenos Aires, Amorrortu editores.
Armony,N “O homem transicional” São Paulo, 2013.
Winnicott,D.W “O Gesto espontâneo” s/d, , Martin Fontes, São Paulo.
“ “ “ Pediatria e psiquiatria”, in “Da pediatria à Psicanálise” 1948,2000., Imago editora, Rio de Janeiro.
“ “ “A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional”,1950/2000,Imago editora, Rio de Janeiro.
” “ “Desenvolvimento emocional primitivo”, 1945/2000, Imago editora, Rio de Janeiro.
“ “ “A criança e seu mundo”, 1962/1982, LTC, Rio de Janeiro.
“ “ ”Moral e educação”, in “O ambiente e os processos de maturação”, 1963/1983, Artmed, São Paulo.
“ “ “A criatividade e suas origens” in “O brincar e a realidade”,1976, Imago editora, Rio de Janeiro.
[1]Freud foi aluno de Du Bois-Reymond e de Brucke, ambos participantes do denominado “Juramento de Berlim”, no qual reafirmavam sua crença materialista. Segundo relato de Du Bois Reymond, se comprometiam solenemente nesse juramento “a impor esta verdade, a saber, que somente as forças físicas e químicas, com exclusão de qualquer outra, agem no organismo. No caso dessas forças não conseguiram ainda explicar, precisamos descobrir o modo específico e a forma de sua ação, utilizando o método matemático, ou então postular a existência de outras forças de igual dignidade às físico-químicas inerentes à matéria, redutíveis à força de atração e repulsão” (citado por Assoun Paul-Laurent, “Introdução à epistemologia freudiana” Rio de Janeiro, 1983, p. 53.)
[2] Convém lembrar que Freud decide criar a metapsicologia após ter sido obrigado a abandonar, com seu “Projeto de uma psicologia para neurologistas” (Freud,1895/1950) sua tentativa de explicar os fenômenos de qualidade, revelados nos processos de recalque descobertos na experiência clínica, a partir de fatores quantitativos operantes nas funções cerebrais. O fracasso dessa tentativa o levaram a desistir dessa tentativa, e, não querendo deixar sua “psicologia solta no ar”(Correspondência com Fliess), Freud cria a metapsicologia, que tomara cuidado de definir como uma “subestrutura provisória” passível de modificação conforme os resultados da experiência clínica.
3.Winnicott afirma que do complexo de édipo por Freud e da posição depressiva por Melaine Klein constituem a duas maiores descobertas da psicanálise (procurar)
[4] Kohut tem uma contribuição importante nesta questão, relatando sua experiência clínica com pacientes que atingem a experiência edipiana durante o trabalho analítico, após superar um longo trabalho sobre seu desenvolvimento emocional primitivo. Ele sublinha que essa vivência do édipo e dos afetos a ele vinculados (agressividade, ciúmes, desejo) não constitui a transferência de um passado com a figura paterna, mas surge na experiência contemporânea tendo como objeto o analista. Esses sentimentos, frisa, são menos intensos, são superados com mais rapidez e são caracterizados pela alegria. (Khout “A restauração do Sel”, cap. V)
Não é a ausência de som, mas de ruído.
Em 1951, o compositor americano John Cage visitou a câmara anecóica mais avançada do mundo da época. Com o seu ouvido apurado poderia ouvir apenas o silêncio, mas não. Ouviu dois sons. Saindo da câmara falou com o técnico e perguntou-lhe que dois sons eram os que tinha ouvido. Um mais elevado e outro mais baixo. Juntos perceberam que Cage tinha escutado o som do seu sistema nervoso e o bombear do sangue. Imaginam?
Silêncio é a escuta daquilo que nos dá vida e faz viver. No silêncio não nos abstraímos do mundo à nossa volta, mas encontramos diversos momentos presentes que se cruzam e entrecruzam em infinitas tonalidades. É a sinfonia da vida escutada em momentos de quietude.
”Não podemos ter medo do silêncio, pois, tem tanto para nos ensinar.” (Ryan Holiday, ‘Stillness is the Key’)
Quando cultivamos o silêncio abrimos a mente ao mar por onde navegam os pensamentos mais íntimos e criativos. Lembras-te daquela ideia luminosa que proveio do silêncio?
Mas hoje o desafio é muito grande porque o ruído não chega apenas através dos ouvidos. Chega também pelos olhos colados nos diversos ecrãs, ou pelos pensamentos exteriores que consomem a nossa atenção para a converter em preocupação. Vemos muita informação. Tanta que a sua suposta luminosidade cega-nos ao longo do tempo. Tanto que perdemos toda a riqueza visual que o silêncio revela.
”A totalidade da vida reside no verbo ‘ver’.” (Teilhard de Chardin s.j.)
O silêncio revela o espaço entre as notas.
”Com as notas lido melhor do que muitos pianistas. Mas as pausas entre as notas - ah, é aí que reside a arte!” (Arthur Schnabel, pianista)
A ausência de momentos de pausa no dia deixa-nos sem fôlego e surdos. Não é, por isso, de admirar quanta dificuldade sentimos ao escutar os outros. Não temos tempo. Nem sequer temos tempo para estar a sós com os nossos pensamentos, em silêncio.
Daí a dificuldade de tantos os que se dirigem a Deus e sentem que Ele não responde. Ele que tanto fala pelo silêncio, simplesmente, não consegue fazer-Se ouvir. Conto-te um segredo… shh… podemos sempre recomeçar.
In: imissio.net 14.11.2019
Uma das piores coisas que pode acontecer a teologia é perder o trem da história, passando a dizer coisas que não fazem mais sentido para o tempo em que é feita. Infelizmente, isso se mostrou em muitos momentos da história do cristianismo, quando ela se negou a trazer questões importantes de determinado momento para o bojo de suas reflexões por estar presa a dogmatismos e ancorada em uma versão de verdade absoluta.
Que ao longo do tempo sempre tenham surgido movimentos de cunho fundamentalista, parece óbvio a quem leia sobre história do cristianismo ou das religiões. Eles desejavam a todo custo voltar a uma “teologia pura”, em que se teriam verdades bem definidas e imutáveis, criadas desde a eternidade.
Em sua maioria, ainda hoje, esses movimentos visam manter o status quo. Não estão dispostos a repensar seus pressupostos, mesmo que sejam os responsáveis por fustigar parcelas consideráveis da população. Quando o fazer teológico é tomado por posturas dogmáticas e fundamentalistas, partindo do princípio de que a “verdade última” lhe foi dita por Deus, passando a ser, portanto, imutável, a própria teologia começa a ser vista como algo que não faz sentido. Ela, assim, serve somente para redizer normas e ordenanças que visam cercear a liberdade de todas as pessoas, porque está convicta de que o que diz é a vontade de Deus. Claramente, a categoria da imutabilidade divina é mal compreendida por tais movimentos. Não se atentam para o fato de que o texto bíblico, principalmente João, mostra Deus como imutável em seu amor, o que nada tem a ver com imutabilidade dogmática.
Toda teologia, portanto, caso queira fazer sentido na sociedade em que está inserida, não pode ser pensada como possuidora da verdade última sobre as coisas. Deve sempre assumir a postura de quem aprende e ouve para, a partir disso, propor respostas para as questões que determinada comunidade levanta.
Crescem movimentos fundamentalistas e retrógrados, que tentam a todo custo fazer com que o cristianismo se torne fechado em si mesmo, surdo às questões atuais. Nesses tempos, é tarefa dos teólogos reafirmar que toda teologia deve ser feita como resposta a determinada comunidade, influenciada e a partir de um contexto social, cultural, político e econômico específico.
Em outras palavras, é necessário que se formem teólogos que saibam ouvir a sociedade, que tenham humildade para se reconhecer como apenas mais um colaborador entre outros, de diversas religiões, na luta por um mundo que haja justiça social, paz, fraternidade e sororidade entre as pessoas. Implica também que assumam o lugar de quem escuta antes de responder, principalmente para não se propor respostas para questões não perguntadas.
Somente uma teologia que observa a realidade ao seu redor é capaz de dizer algo que alcance os corações. Uma teologia somente dogmática – com respostas prontas desde sempre, indisposta a repensar suas categorias e suas formas de explicá-las – tende a ser somente um antro para pessoas reacionárias, certas de alcançar as respostas últimas para todas as coisas e exigentes do extermínio ou conversão à sua verdade por parte dos grupos que não se adéquam à sua visão. No entanto, esse tipo de teologia se mostra perigoso e a história já nos mostrou isso, seja durante a Idade Média, seja durante o período dos sistemas totalitários. Ambos, no nível religioso, ancoravam-se na certeza de que determinada ação era a vontade de Deus para “limpar” o mundo do pecado em que se encontrava.
Com isso em mente, ser teólogo hoje se torna uma tarefa não somente social, mas também intelectual. Sem repensarmos novas formas de fazer teologia, de maneira que esta faça sentido para as pessoas que sofrem, esta sempre ficará relegada ao ambiente eclesial, não tocando a realidade do mundo que está fora da Igreja.
Somente uma teologia que escuta e observa pode tocar a realidade na qual é feita. Do contrário, não passa de ideologia utilizada por classes dominantes para manter as coisas como estão.
*Fabrício Veliq é protestante e teólogo. Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE), Doctor of Theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven), Bacharel em Filosofia (UFMG) E-mail:
IN: domtotal.com 23.10.2019
Existem poetas que nos atraem para dentro de uma cela, a olhar para os cantos das paredes e ouvir o que murmura o branco. Existem aqueles que nos chamam para um jardim com fino tato de monge ou borboleteios de criança. Há os que nos puxam para o meio de um tumulto, e falam alto. E há os mais íntimos, os que nos chamam de lado, apagam o resto da casa e nos levam para a cama. Vinicius é um desses íntimos, que podemos dizer nosso.
Cedo descobri, numa antologia de 1967, da saudosa editora Sabiá, que minha mãe era uma das mulheres de Vinicius. O livro amaciado de muito manuseio também acabou passando por minhas mãos. Eu menina também me deitava num chão de morangos, também me chamava Maria, e era flor de melancolia, me chamava Ariana, uma amiga entre as amigas que se perdiam e achavam gosto em se perder. Quis ser também a onda que o poeta via, distante das praias, e das luas quis ser a que reflete na água, e ser o ventre novo no qual um pensamento de amor semeia sua continuidade.
Tudo o que Vinicius fazia com as palavras para encantar a namorada desconhecida me alcançava, seu ar trágico de tão apaixonado, seu confessar-se menino de alma delicada, sua tara pela beleza das mulheres meninas garças. Queria me fazer cada uma de suas palavras, ser mar de acolher suas âncoras de promessa, ser a face imaginada, vinda do futuro, a face da ausente, resto de nuvem, ave de tempestade. Que polícia, que tribunal dos bons costumes, que nada. Eu menina me deitava com Vinicius, ele o meu monstro de delicadeza, eu uma de suas amigas ignoradas.
Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
In: Rubem.wordpress.com
Passamos a vida (e o tempo) à espera. À espera que a sorte mude. À espera que o vento não seja tão frio. À espera que nos devolvam a chamada. À espera que se lembrem que existimos. À espera que nos atendam num balcão, numa fila, numa loja. À espera do amor-para-sempre. À espera da oportunidade que nos mude a vida. À espera do momento certo para começar a fazer tudo como deve ser. À espera que nos peçam desculpas. À espera que nos perdoem. À espera do Verão. Dos dias de sol e do calor a tostar a pele. À espera que a maré desça para não perdermos o pé. À espera que o país fique melhor. À espera que se acabem os dias tristes. À espera que se acabem as dívidas (as financeiras e as outras). À espera que nos apreciem, apenas, por aquilo que somos e não por aquilo que podemos oferecer. À espera no trânsito que não anda. À espera do verde que não cai. À espera da felicidade que os romances mais bonitos nos prometeram. À espera do jantar, no restaurante. À espera que o arroz fique no ponto. À espera que se acabe a fome nos lugares mais sujos e mais recônditos do mundo. À espera. De tudo. De todos. De tanto.
No entanto, enquanto esperamos, podemos aprender lições valiosas: a lição (duríssima) da paciência. A lição da humildade de quem sabe estar no seu lugar e esperar pela sua vez. A lição de deixar acontecer cada coisa na janela do seu tempo. A lição de valorizar o futuro que espreita de mansinho e que não se impõe.
Precisamos muito de aprender a esperar melhor. Com mais alegria. Com mais paciência. Com mais coragem. Ninguém gosta de esperar. É sempre tarde para quem está à espera. E é sempre difícil deixar que o tempo passe sem nos aborrecermos com ele. E com a sua velocidade-tartaruga.
Aprende a esperar, mas aprende, também, o momento certo para deixar de o fazer. Quem decide esperar para sempre deixa de estar à espera e passa a ser refém de uma promessa que pode não se cumprir.
Aprende a esperar. Aprende a esquecer. Aprende a colocar ponto final e a fazer parágrafo.
Estás à espera de quê?
Marta Arrais
In: imissio.net 9.10.2019
Há peregrinos e caminhos bonitos. Brilham pelos passos que dão e pela coragem que têm em confiar sem saber muito bem como, mas deixam-se abraçar pela fé que lhes impulsiona a querer sair em direção a novas estradas.
Saem às cegas para não se deixarem ficar na escuridão das suas vidas. É esta a ânsia daqueles que percorrem novos caminhos numa descoberta plena de si, do outro e de tudo o que lhes rodeia. Dão-se ao luxo de nascerem de novo. Irradiam em si a certeza de que a vida é digna em todo e qualquer momento. Espelham a esperança de que haverá sempre bonança em qualquer chegada, em qualquer encontro face a face.
Há peregrinos e caminhos bonitos. Caminhos que nunca seriam imaginados, nem planeados. São rotas desenhadas pelos questionamentos e traçadas ao milímetro de cada avanço dado num arriscar cheio de riscos. São vias alternativas para vidas a quem ninguém dava uma única alternativa. São rodovias sem limites de velocidade e com permissões de paragens e de estacionamentos para que todos os que a percorrem posso encontrar a beleza de se deixarem contemplar. São vielas para os belos e belas que um dia decidiram atravessar o fundo dos seus cantos e recantos e, assim, partirem de novo para os seus verdadeiros encontros.
Há peregrinos e caminhos bonitos. Histórias de vida que não precisariam de muitas palavras para nos converterem às suas formas de ser e de estar. São testemunhos verdadeiros que nos trocam as voltas da vida dando-nos a reviravolta em tantas das nossas revoltas. São a prova viva de que o bom e o belo não se deixam reluzir, mas convidam, sempre, a sentir.
Há peregrinos e caminhos bonitos. Há, em toda a nossa vida, quem passe por nós dando-nos a saída aos nossos becos sem saída e permitindo, de novo, que possamos entrar diretos na estrada das nossas vidas!
Emanuel Antonio Dias
In: imissio.net 27.09.2019
Precisamos de ficar mais vezes. De ficarmos conosco mesmos. Decifrarmos o que existe em nós e que, tantas e tantas vezes, não conseguimos dar uma explicação. Permitirmos descobrirmo-nos inteiramente sem medo das respostas que possam advir deste caminhar, muitas vezes turbulento, mas que no final se transforma em bonança cheia de esperança. Temos de ficar mais tempo em nós, não num mero ato de egoísmo, mas sim num alinhamento de um caminho percorrido, frequentemente, à pressa e sem tempo para deixarmos que a vida nos conte os seus sinais.
Precisamos de ficar mais vezes. De ficarmos uns com os outros e deixarmos que eles se alonguem em nós nas conversas, nos sorrisos, nos choros, nos olhares e nos abraços. Estarmos uns com os outros para podermos estar plenamente connosco. Estarmos uns com os outros para que se dê bom nome à vida e, assim, dar bom nome àqueles que partilham, em comunhão com a nossa humanidade, este verdadeiro dom. Ficarmos nos outros sem tempo, nem demoras. Sem preconceitos, nem cobranças. Simplesmente ficarmos com a certeza de que não será só mais uma passagem. Necessitamos de ficar mais vezes, mas que fiquemos eternizados no coração de cada um de nós.
Precisamos de ficar mais vezes. De nos deixarmos habitar por sítios que nos convidam a fazer morada. Não existe morada permanente, mas existem pessoas e locais que nos ajudam a alcançar essa morada eterna. Sabermo-nos colocar em contemplação e sentir que cada pedaço de terra nos relembra de onde vimos e para onde vamos. Sentirmos que cada brisa nos convida a esta liberdade autêntica e desafiadora. Sentirmos que cada montanha nos incita a procurar a grandeza dos pequenos. Sentirmos que podemos ser, efetivamente, morada para tantos e tantas que se cruzam nas nossas vidas.
Precisamos de ficar mais vezes se quisermos chegar mais longe na vida e com a vida!
Emanuel Antônio Dias
In: imissio.net 20.09.2019
Lembro-me de que, há uns anos, num encontro de narratologia, ouvi um conferencista explicar que a forma simples de sensibilizar o leitor, para o complexo jogo de referentes que uma narrativa põe em ato, era pedir-lhe que contasse, por palavras dele, um relato. Aí, o que parecia uma teoria intrincada (com o seu debate sobre pontos de vista, estatuto do narrador, trama, personagens...), tornava-se acessível de um modo muito direto. Este professor ensinava Novo Testamento numa grande universidade norte-americana, mas mantinha uma presença frequente em faculdades de países africanos. E citava o que acontecia, por exemplo, quando estudantes das duas geografias recontavam um episódio clássico do evangelho de Lucas: a parábola do filho pródigo. Na identificação do motivo pelo qual o filho pródigo se vê precipitado da confortável situação de herdeiro à aspereza de um sem-teto, os norte-americanos apontavam o facto de haver dissipado o seu capital de maneira descontrolada, enquanto que os africanos colocavam em primeiro lugar a devastadora fome que se abateu sobre a região. Tinham ambos sustentação textual, pois o evangelho cita os dois motivos. O que é curioso, porém, é compreender o significado daquilo que nos faz nem nos apercebermos de umas coisas e ver imediatamente outras.
Tenho uma história engraçada com o poeta brasileiro Eucanaã Ferraz. Encontramo-nos durante uns instantes em Lisboa, não foi mais do que isso. Eucanaã é um dos grandes criadores a escrever na nossa língua. Nesse encontro, breve, denso e comovido, a conversa levou-nos não sei como a Clarice Lispector. E ele contou-me esta história, que teria lido num dos seus livros. A escritora lamentava-se de que nunca lhe aconteciam milagres. Quando ouvia, a outras pessoas, a narração de milagres na primeira pessoa, ficava cheia de esperança, mas também de revolta, pois se perguntava: “E porque não a mim?”. Milagres nunca lhe aconteceram, a dizer a verdade, exceto um. Certo dia, caminhava pela rua, e sentiu-se escolhida por uma folha. Isso apenas: uma folha que, entre os milhões de possibilidades, veio lentamente rodopiando e bateu, ao de leve, nas suas pestanas. Naquele momento, Clarice achou que Deus possuía uma infinita e consoladora delicadeza. Semanas depois, dei por mim a procurar o volume de crônicas de Clarice em busca desse relato. Não foi difícil chegar a ele. Chama-se “O milagre das folhas”. Nesse texto, a autora conta, de facto, que nunca lhe aconteceu nenhum outro milagre, mas o das folhas se repete tanto que ela passou a considerar-se, “a escolhida das folhas”. E que, quando anda pela cidade, sabe que novas folhas virão sempre coincidir com ela. A folha que se embateu contra os seus cílios foi simplesmente mais uma. Contudo, o relato de Eucanaã não deixava de ser agudo e completamente verdadeiro em relação ao original de Clarice. E a isso, acrescentava ainda um prazer que os amigos sabem partilhar: o do reencontro. Talvez ele, de antemão, soubesse que eu iria no encalço daquele texto e que, o confronto com o que me contara, nos permitiria prosseguir, mesmo à distância, um diálogo que não podia ter lugar ali.
Um dos textos de que mais gosto do escritor Eduardo Galeano está em “O Livro dos Abraços”. É a história de um menino, Diego, que viaja para o sul com o pai para olhar o mar pela primeira vez. Quando chegam à praia, depois de muito caminhar, o mar está diante dos seus olhos. Era uma azul e contínua imensidão sem palavras. E o filho, colado ao pai, pediu-lhe baixinho: “— Ajuda-me a ver!” Penso que é isso que pedimos aos livros, à cultura, às histórias que ouvimos, aos amigos... e a Deus.
D. José Tolentino Mendonça
27.04.2019
Claro que falar do viver como sendo uma profissão tem o seu quê de insólito. A vida não é um ofício, é uma condição. Mas referir-se a ela desse modo talvez nos ajude na compreensão de quanto a vida nos pede de aprendizagem, iniciação e sucessivos recomeços. Era Erich Fromm quem dizia que as pessoas felizes são aquelas que encaram todo o curso da sua vida como um processo de nascimento, rompendo com a gramática mais comum que considera que cada um de nós só nasce uma vez, só tem uma grande oportunidade, só percorre um caminho antes de se precipitar no fim. Erich Fromm defendia que tal modo de pensar gera este efeito devastador: vermos tanta gente morrer sem sequer ter chegado a nascer. De facto, o verdadeiro e exigentíssimo desafio que se coloca ao ser humano é levar a cumprimento o seu nascimento. Nisto, nós humanos diferenciamo-nos das outras criaturas, que em pouco tempo já são completamente aquilo que são. Nós, ao contrário, somos inacabados; recebemos a vida como dom, mas também como tarefa; vivemos no decurso do tempo o processo do nosso próprio parto; precisamos de muitos anos (e de muito trabalho interno) para chegar a exprimir o que há em nós de original. Os mestres estoicos, na Antiguidade, motivavam os discípulos a construir a sua própria estátua. Quer dizer, exortavam-nos ao labor de si para edificar a sua própria humanidade, esse labor face ao qual todos os outros que desenvolvemos são simplesmente preparatórios.
As nossas sociedades concentraram demasiado a sua aposta de formação em saberes técnicos e científicos, ou então assumidamente parcelares e especializados, apontando como horizonte o resultado sobretudo econômico e, como consequência, damos por nós analfabetos, vulneráveis e desprovidos nas dimensões fundamentais do viver. Uma das patologias contemporâneas é este défice de sabedoria, esta falta de uma arte da existência. Por isso, não só um a um e em doloroso contraciclo, como na melhor das hipóteses acontece, mas como comunidades no seu conjunto teremos de confrontar-nos com aquelas perguntas que T. S. Eliot coloca num dos seus poemas: “Onde está a vida que perdemos vivendo? Onde está a sabedoria que perdemos com o conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos com a informação?”. Eliot tem razão: a vida não só se ganha, também se perde quando nos tornamos prisioneiros do imediato, do desagregado e do fragmentário, sem espaço para reelaborar o vivido a partir de razões mais profundas.
Por sua vocação, o ser humano não se realiza apenas na luta pela sobrevivência. A par dessa, ele precisa de conhecer-se a si mesmo, viver na exterioridade e na interioridade, precisa de avizinhar-se com vagar da “espantosa realidade das coisas”, escutar o visível até ao fim e para lá do visível, porque a vida é surpresa e mistério. Precisa de acreditar e duvidar, recolher e lançar o mesmo propósito muitas vezes, precisa de dizer e calar, abraçando assim esse movimento que é afinal imobilidade e essa imobilidade que é afinal movimento. Atiramos as experiências de vida contemplativa para uma periferia e olhamos para essas expressões (religiosas, culturais, humanas) com indiferença, como se não tivessem nada a ensinar-nos. Dispersamos assim um patrimônio espiritual de que as nossas sociedades carecem absolutamente. Friedrich Nietzsche escreveu: “Por ausência de quietude a nossa civilização está a desaguar numa nova barbárie. Nunca como hoje o ativismo dos irrequietos gozou de tamanha consideração. Por isso, uma das correções a introduzir no modo de vivermos a nossa humanidade seria reforçar largamente o elemento contemplativo”.
D. José Tolentino Mendonça
04.05.19
Entre um ano que termina e outro que começa, a braços com o tempo que corre fora e dentro de nós, e sentindo-nos talvez de maneira mais sensível modelados por aquele invisível oleiro que é o tempo, damo-nos conta de que a nossa é uma vida exposta.
É impossível não detetar os sinais do tempo em nós: linhas de fragilidade, sombras, sobressaltos, erosões, áreas mais desvitalizadas, insuficiências. A unidade interior é um trabalho imenso. Assemelha-se à tela que Penélope tecia de dia para a desfazer à noite, na sua espera quase desesperada. Mas não podemos desistir de construir esta unidade do ser. Só o que amamos até ao extremo do amor não nos será tirado.
Dizer, por exemplo, que a vida é marcada pela vulnerabilidade, significa reconhecer quanto ela está exposta á possibilidade de ser ferida. “Vulnus” é o correspondente termo latino e, como já anotava Virgílio, mas não alude unicamente ao que nos fere a pele, mas “vivit sub pectre vulnus”: a ferida que sangra oculta no coração. A vulnerabilidade é um fato total.
Todavia, descobriremos que é por seu intermédio que nos chega também aquilo que nos redime. Só a vulnerabilidade nos eleva, como numa dança, à altitude do infinito, onde a gravidade é vencida pela graça.
D. José Tolentino Mendonça | In "Avvenire" 20.08.2019
Greta Thunberg. Ahed Tamimi. Yeonmi Park. Malala Yousafzai. O rosto da infância do nosso século tem um pouco do rosto de cada uma dessas meninas. Rosto sério de criança que protesta, presença incômoda em frente ao parlamento, diante do soldado, na travessia do deserto, numa cidade destruída.
Essa infância que agora reclama sua voz não está para brincadeira. O que essas meninas reivindicam não é coisa de criança, é algo mais urgente. Não é espaço para sonhar, é a própria terra. Não são jogos fantásticos da imaginação o que elas querem. É a vida ela mesma, a vida antes de tudo. São medidas concretas para que ainda haja mundo daqui a um século.
Greta falta à escola para protestar em frente ao parlamento sueco. Ela exige dos políticos uma resposta à mudança climática. Nada de discurso nem de promessa. Greta tem pressa, não por ela, mas pela criança que virá depois dela. E esta urgência desde que viu pela primeira vez, na escola, fotos de ursos polares famintos, quando tinha cerca de oito anos de idade. “Por que devemos ir a escola se não há futuro?” – ela pensa. “E por que devemos aprender sobre fatos, se os fatos mais importantes não importam?”. Ao primeiro apelo solitário de Greta, em agosto do ano passado, já se juntaram mais de cem países e um milhão e meio de estudantes.
Ahed, a menina palestina, também protesta. Levanta a voz e a mão para o soldado diante dela. As armas não intimidam Ahed, antes a enfurecem. Aos doze anos ela estapeia um soldado pela primeira vez. Na segunda vez, com dezesseis anos, é presa. Passa oito meses em cativeiro, em Israel, e, quando sai, continua a protestar contra a ocupação com a mesma força felina.
Yeonmi tem treze anos quando foge da Coreia do Norte com sua mãe, pelas mãos de traficantes de gente. Mãe e filha são vendidas a fazendeiros chineses, negociam a vida com o que têm e conseguem atravessar o deserto de Gobi rumo à Mongólia. De lá, partem para a Coreia do Sul. Livre do terror, literalmente desassombrada, Yeonmi agora denuncia publicamente o pesadelo de vigilância e controle mental que sofre quem vive sob o regime da dinastia Kim.
Malala tem doze anos quando aparece na televisão defendendo a educação de meninas no vale do Swat, onde nasceu e vivia com a família, região do Paquistão sob ocupação dos talibãs. Aos quinze anos, é baleada na testa, num ataque dirigido, quando entrava numa van escolar. Transferida para um hospital na Inglaterra, ela se recupera e reaparece tal como a conhecemos hoje, mais jovem Nobel da Paz, com seu lema também mundialmente conhecido, de que “uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo”.
Todas essas meninas fazem uma nova cruzada de crianças. Sobreviveram a zonas profundas de realidade onde não vale a tarja restritiva para menores de dezoito anos. Encararam a guerra, a prostituição em troca da vida, o fechamento de escolas, o silêncio repressivo, o terrorismo. Em algum momento decisivo, desacataram ordens, autoridades, soberanias. Tudo por um mundo que lhes é de direito. Porquanto destruímos, elas vêm se sentar à nossa mesa e tomar parte no debate sobre crimes ditos crises, crise migratória, crise climática, crise dos direitos humanos. E nós lhes devemos ouvidos. Sem falsa complacência. A sério. Nós devemos às crianças o mundo por inteiro e elas vêm nos cobrar agora. Elas são o próprio amanhã nos cobrando enquanto é tempo.
Mariana Ianelli
In: Rubem.wordpress.com 24.08.2019
A vulgaridade é lixa áspera em que me ralo toda. E a vulgaridade está comandando o momento. Tento entender como queimamos as pontes que nos ligavam a comportamentos mais elegantes.
Somos seres de rituais. Do café da manhã ao casamento, tudo é ritualizado. E cada rito é um combo que vem com seus próprios trajes e linguagem. Não participamos dos rituais com as mesmas roupas com que enfrentamos o batente. Nem com o mesmo espírito. Como um instrumento, o ritual exige embocadura.
Os juízes do Supremo usam togas, os padres usam batina, os generais usam fardas. Os trajes dizem do cargo. E, quando no cargo, quem os veste fala linguagens condizentes.
Mas o presidente fala à nação envolto na capa do barbeiro e com voz displicente diz inverdades ofensivas, enquanto o profissional faz seu serviço de tesoura cuidando para não encobrir o cliente. Não se trata de acaso nem descuido. A cena bem concebida faz parte da estratégia “gente como a gente”.
Produto dos tempos modernos, essa estratégia destina-se a falar diretamente com o eleitor que gosta de se ver representado ipsis litteris, quase como em uma caricatura, e busca entre os candidatos aquele que replica não só seus pensamentos como suas próprias atitudes, que diz frases de botequim como ditas diante do balcão. É o eleitor que ainda não assimilou o conceito de representação simbólica. E, ao que parece, há muitos.
Estratégia idêntica comanda frases como: “Os caras vão morrer na rua igual baratas, pô. E tem que ser assim”, em que o desleixe da frase veste de cores populares a ferocidade do conteúdo, e angaria seguidores a favor da “retaguarda jurídica”, porta aberta para os policiais matarem livremente.
É o mesmo princípio da propaganda que, em frases destinadas ao grande público, comete erros propositais de português para facilitar a identificação e garantir a aquisição do produto.
As redes sociais, veículo favorito do clã presidencial, aninham alto grau de estratégia e de vulgaridade. A estratégia mais frequentada consiste em mostrar-se melhor do que se é na realidade. Chama-se a isso “construir a imagem”. Arriscada arquitetura que põe na fachada somente o belo, e deixa o feio escondido, corroendo as estruturas –bom exemplo disso está na novela das nove, com a vilã construindo imagem impecável enquanto peca nas coxias. “Construir a imagem” tornou-se lícito, não sendo considerado imoral ou sequer expediente enganoso.
A vulgaridade vai por conta da exibição. No passado remoto em que fui educada, exibir-se ou gabar-se era deselegante. Hoje é dever de cada um, atalho certo no caminho que conduz aos tapetes vermelhos e aos milhões de seguidores. Fomos engolidos pela multidão, só ganha destaque e dinheiro aquele que consegue emergir. E todos os meios para isso são considerados válidos, legítima defesa contra a escuridão do anonimato. Mais brilha quem mais se exibe.
Tenho me perguntado para que porta-voz oficial se quem porta a voz do presidente é ele mesmo, galopando desenfreado no dorso do Twitter ou em situações nada oficiais. O palavreado chulo, grosseiro, que não faz questão de disfarçar o ódio, brota inesperado e nos cobre de vergonha.
As pontes para a elegância foram queimadas há tempos em favor do mercado, e progressivamente cada um queimou as suas. Parafraseando o poeta, a elegância é só um quadro na parede, mas como dói a sua ausência.
Marina Colasanti
In: marinacolasanti.com
Todo dia tem sua hora clandestina, dessas que roubamos à transparência e à claridade. Momentos em que a mente vagamundeia, passando a fronteira das nossas horas cheias de propósito. Por fora a fuga quase não se nota (não nos traíssem, quase sempre, os olhos). Estamos aqui e não estamos. Estamos aqui e em outra parte. As circunstâncias mais banais fazem a ponte. Poder ser, por exemplo, o tempo de um café, o tempo de um banho, ou picando tomates. Aproveitamos o oportuno da hora e soltamos os gatos dos nossos pressentimentos, dos nossos desejos cegos, das nossas saudades. Vamos com eles errando por aí, errando com gosto de errar. Monologamos, cantamos baixo, rimos sem razão aparente, fechamos a cara, também sem razão aparente, como que transtornados. Sobrerrondamos ontens e amanhãs. Lembramos de alguém e essa lembrança não necessariamente nos comove, às vezes apenas passa por nós, como que se vingando do nosso desprezo, assim, por se fazer lembrar. Deixada à própria sorte, a mente é esse gato sem raça definida, meio de casa, meio das ruas, em ziguezague pelos telhados, sobre os muros, por caminhos que vão riscando o ar num louco emaranhado invisível, e pode até calhar que um gato passeie com outros gatos, e eles se enrosquem, e troquem cheiros e carinhos telepáticos, enquanto seus respectivos donos, em suas respectivas casas, parecem agir normalmente, três colheres cheias de pó de café no coador, o vapor quente da água nublando o banheiro, e aqueles olhos vidrados, mirando nada, de tão longe.
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* Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Falar do silêncio. Dita assim, a frase parece um paradoxo, uma contradição dos termos. Por outro lado, acontece como para todas as realidades grandes e essenciais: só se compreende bem colocando-o em confronto/contraste. Como a vida se compreende bem à luz da morte, assim o silêncio assume sentido se confrontado com a palavra.
Com a qual, contudo, se reconcilia, porquanto silêncio e palavra são duas formas de uma mesma coisa, a linguagem, que é por essência modalidade da comunicação, da relação que se cria entre nós e qualquer coisa que é “outra”, até com aquela parte de nós próprios que sentimos como região “diferente” e obscura para a qual não encontramos palavras. Não falamos nós de “voz” ou “som do silêncio”? Recorda-me uma bela canção, porque o silêncio é também música.
Não quero começar com divagações pseudofilosóficas. Ao escrever sobre o silêncio, vêm à minha mente duas experiências.
Escrevi uma poesia…
A primeira tem a ver com os anos distantes e felizes quando ensinava nos meios de comunicação. Recordo que alguns alunos, quando de alguma forma entravam em confidências, traziam-me bilhetinhos, dizendo-me: «Prof, escrevi uma poesia». Eram uma ternura. Tratava-se quase sempre de textos onde de vez em quando se ia até metade da linha, ou onde por vezes apareciam aqui e ali rimas. Ingenuidade, certamente, mas por trás das quais havia duas intuições importantes.
A primeira é que para fazer uma “poesia” é preciso que as palavras respirem em “espaços de silêncio”, que era a zona “branca” em que estavam imersas. A prosa, a narrativa, e também a descrição, podem ocupar toda a linha: a poesia não, porque a emoção de que nasce precisa de ser “protegida” de espaços de não-palavra.
Também a rima – eis a segunda intuição – tem a sua importância, porque a poesia deve, de alguma forma, “cantar”, e como consegui-lo sem fazer tilintar as sílabas umas sobre as outras? Mais raro é o aparecimento naquelas folhinhas de vestígios de ritmo, mas o essencial estava lá: é o importante é que o silêncio é pedido para fazer cantar os momentos fortes que queremos confiar à poesia.
A outra memória é musical. Aconteceu-me duas vezes nestes meses de escutar na rádio, entre o ofício da Vigília e o das Laudes, um magnífico prelúdio de Debussy, sugestivamente intitulado “De spas sur la neige” (passos sobre a neve), uma música que parece feita de ar, macia como uma névoa luminosa, leve como a própria inconsistência da neve, e – sensibilizou-me pela primeira vez – uma pequena célula de duas notas que se repete com a insistência confortante de uma presença familiar, ou que talvez faz pensar numa pessoa que caminha com ligeireza na neve.
Uma “só” pessoa, todavia, como a pega negra que faz de fulcro à sinfonia de brancos na belíssima “Pie” (a pega) de Monet. Soube depois que o pianista era o grandíssimo Arturo Benedetti Michelangeli. Não me tinha enganado: a execução era demasiado bela, mágica, quase uma experiência visionária! E aqui a ideia do silêncio colou-se a mim sobre aquela de uma leveza delicada, de uma solidão feliz e, ao mesmo tempo, de uma profundíssima paz.
É tempo, agora, de tentar sintetizar alguns significados do silêncio, e portanto o lugar que tem, que pode ou que deve ter na nossa experiência de vida. Terminei recentemente um ensaio sobre a “retórica do silêncio” como “linguagem para dizer Deus” na poesia de R.S.Thomas, e não é difícil fixar algumas conclusões.
O silêncio como entorpecimento
Há momentos na vida em que nos tornamos “mudos”, diante dos quais é-nos instintivo dizer: «Estou sem palavras!». Podem ser uma grande alegria ou um grande sofrimento: o elemento comum é a intensidade da emoção que nos deixa como inebriados, dolorosamente ou alegremente.
Pense-se no que acontece quando um luto imprevisto, a morte trágica ou precoce de uma pessoa querida nos tira a palavra, e a comunicação é deixada para os olhos ou para os abraços.
Pense-se quando, quiçá numa volta da estrada, ou após uma curva na montanha, nos encontramos imprevistamente diante de uma paisagem arrebatadora, que nos deixa sem palavras, ainda que talvez se balbuciem ou se “exclamem” monossílabos sem sentido.
Que sentido tem este silêncio? Porque tem sentido. E diga-se já: recorda-nos a pobreza, a “miséria”, para o dizer com S. Bernardo, das nossas “palavras” (veja-se o esplêndido n. 111 dos “Sermões vários”), quando somos excedidos por alguma coisa de tão grande, que o vocabulário, por muito volumoso que seja, se revela um pobre trapo inútil. É um silêncio que nos ensina a humildade, e que denuncia desapiedadamente a radical futilidade de muito falatório que hoje grassa em todo o lado. Paradoxalmente, é o silêncio a ensinar-nos que a palavra é uma coisa séria.
O silêncio como opção
Se se faz a experiência dos “benefícios” do silêncio, chega-se ao ponto de o escolher até ao ponto, em certo sentido, de o programar. Entre as vantagens do silêncio, acompanhado como irmã natural da solidão, há a de nos fazer “atentos” e/ou de nos colocar à “escuta”, não só através dos ouvidos, mas também dos olhos, que nos fazem ler os outros no seu rosto e nos seus gestos, além do que nas suas palavras.
Silêncio como ir ao encontro. Seja evocada a família dos termos que têm o verbo “tender” (do latim “intedere”) como coração: “atender/atenção” (cuidar de, ter em consideração, estar com atenção), “estender” (do interior par o exterior), “entender” (tender para o interior, apossar-se do sentido), “protender” (estender para a frente, alongar), incluindo-se as versões negativas de “contender” e “pretender”, em que a “tensão” se torna belicosa e agressiva.
Este estender-nos para aquilo que é outro e fora de nós é protegido e bem governado só pelo silêncio, essa “pausa” que perscruta sentimentos, instintos, objetivos que evitem recontros ou equívocos, sobretudo com as pessoas para as quais nos “estendemos”.
O silêncio como antena
É outra modalidade da anterior, e trato-a à parte porque não diz respeito tanto à relação com as pessoas (escuta), mas com as coisas e os acontecimentos. Nasce da habituação ao silêncio físico e à solidão como lugar no qual se reencontra, por um lado, o seu centro, e, por outro, como capacidade de colher esses momentos imprevistos e imprevisíveis a que chamamos “epifanias”. Só se não estivermos distraídos pelo ruído, externo e interno, chegaremos sem esforço, impercetivelmente, a descobrir um raio de beleza numa florzinha amarela, grande quanto uma ponta de dedo que desponta da fenda de uma parede de cimento, e talvez nos sugira uma reflexão sobre a força da vida.
Recordo que há alguns dias, durante uma leitura bíblica, o olhar escapou-me para um vaso de flores aos pés do altar, sobre o qual naquele momento tinha chegado da janela um raio de sol que as acendeu, isolando-as da penumbra. Instintivamente disse-me: que belo! A “palavra de Deus” não me dizia nada naqueles instantes, mas Deus estava a falar-me nas flores acesas pelo Sol.
Gostaria de acrescentar que – é sempre o poeta R.S.Thomas que o recorda –, como a solidão, também a lentidão é irmã do silêncio, permitindo-nos dirigir o olhar “para o lado”, onde está a acontecer um milagre. Cada um pense em como, além do ruído, a pressa é outra desgraça do nosso tempo…
O silêncio “con-centração”
Ruído e pressa são duas das coisas, entre muitas, que nos trazem para fora (dis-traem-nos) daquele centro em torno do qual devemos construir a unidade interior da nossa pessoa. O remédio é encontrar a maneira de nos con-centrarmos, porque só assim é possível navegar entre as tempestades da vida.
Quando parece que nos afogamos, pode caminhar-se com a cabeça fora da água que nos envolve apenas se os pés se apoiam sobre um fundo sólido. Esse fundo é garantido pelo silêncio, um “lugar” a construir e enriquecer com uma série de recursos que cada um deve saber encontrar. Porque um “silêncio vazio” é insuportável, e tem como fruto apenas a procura espasmódica de distrações, num círculo vicioso sem saída.
Os recursos são aquelas formas de “contemplação” que permitem povoar o silêncio até o apreciar, até sentir dele uma necessidade física. São a arte, a literatura, a música, que chamam o silêncio e ao mesmo tempo o alimentam, epifanias de beleza saboreadas a sós ou em conjunto, para lhes partilhar o bem-estar que delas deriva, e cimentar assim a amizade.
O silêncio repouso
Quando se percebe toda a potencial riqueza do silêncio, não é difícil compreender que ele “envolve” a palavra no sentido que é o terreno fecundo que a gera e, simultaneamente, o ponto de chegada mais alto da comunicação, quando as “palavras” acabam por ser inúteis, e até fastidiosas.
Num belo livro dedicado à figura do Card. Martini, intitulado “História de um homem”, o autor, Aldo Valli, conclui reconhecendo quanto é verdade que «amigo é aquele com quem se pode estar em silêncio». Sem embaraço, sem necessidade de mais». É o silêncio em que a ausência de palavras define com felicidade não um vazio, mas um espaço de comunhão profundamente partilhado em que se está bem.
Na poesia “The gap”, R.S.Thomas evoca um Deus que se defende da “agressão” dos homens que pretendem chegar até ele com uma “torre de palavras”. Aqui o silêncio rima com “mistério”, a entender como aquele espaço de sentido que nunca acabaremos de explorar.
O tempo e as férias
Estamos em tempo de férias, e aqui surge-me outro paradoxo, que na realidade é apenas aparente, como o que se declarou ao início na expressão “falar do silêncio”.
E é esse duplo significado que tem em latim o verbo “vacare”, que em francês deriva em “vacance” e em italiano em “vacanza”. Enquanto hoje o termo indica, na maior parte dos casos, um “vazio”, ou um tempo “livre do trabalho”, no latim não se tratava só de uma “liberdade de”, mas sobretudo de uma “liberdade para”, como que a dizer que a primeira podia ser condição para a segunda.
E o segundo sentido de “vacare” era o de ocupar-se de alguma coisa com toda a concentração possível para criar/produzir alguma coisa de belo e de útil. Torna-se assim significativo o contraste tantas vezes evocado na literatura monástica medieval entre “vacatio” e “vagatio”: a primeira é condição para usar melhor o tempo, a segunda é um fútil e estéril perder-se e desgastar-se naquela vã curiosidade que contrasta com a sã.
Não será o caso, antes de ir “de férias”, de perguntar-se, talvez, no silêncio, que uso entendemos fazer do tempo?
Nico Guerini
In Settimana News
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 31.07.2019 no SNPC
Inácio de Loyola foi um homem da mudança, da transição no tempo, dos tempos novos, agitados, turbulentos, de transbordantes novidades que punham em questão tudo o que até então ele recebera; mas não se fechou a elas e, sim, abriu-se ao diferente e novo. Um novo “movimento” começa em sua vida e Inácio passa a viver a aventura de contínuos deslocamentos, internos e geográficos. Torna-se o peregrino do Absoluto.
Sempre em marcha, sem encurtar os passos, o peregrino Inácio avança como homem livre, sem deixar-se aprisionar por nada nem por ninguém, aberto aos acontecimentos, pronto a servir a Deus ali onde O encontra. A peregrinação interna e geográfica o torna mais humano, com maior visão, grandes desejos.
A grande originalidade na história e na vida de Inácio não é a que ocorreu fora, mas a que aconteceu dentro dele mesmo. Sua principal contribuição à história da humanidade não é o que pessoalmente ele realizou em suas atividades de apostolado e de governo, ou sua obra exterior mais conhecida, a Companhia de Jesus, mas a descoberta de seu “mundo interior” e, através dela, a descoberta desse continente sempre inexplorado e surpreendente, que é o coração de cada ser humano, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa.
Imobilizado e impossibilitado fisicamente, Inácio se surpreende a si mesmo escavando e trazendo à tona toda sua capacidade de aventura neste continente inexplorado (o de seu mundo interior e o da ação de Deus nele). Enquanto seus contemporâneos aventuravam-se na descoberta de novas terras, seu descobrimento não é menos importante, e é de maior alcance humano que o daqueles. Sem ruído, sem galeões, sem dinheiro, sem pólvora, sem armas, sem sangue, sem violência, sem vencidos e humilhados, Inácio abrirá caminhos nesse continente interior, próprio e de cada ser humano, “conduzido, sabiamente ignorante” do que vai encontrar, deixando-se levar e observando como é levado.
A partir do seu percurso interior, inicia-se um movimento de itinerância geográfica. Mais que um simples se deslocar, trata-se de um modo de viver e de situar-se no mundo. Depois de ter posto materialmente seus pés sobre as pegadas de seu Senhor e beijar o solo que Ele havia pisado, Inácio compreende que a terra de Cristo era o vasto mundo de seu tempo. Desde então, para além do deserto e da peregrinação a Jerusalém, abre-se diante de seus olhos, outro caminho.
Iluminado pela luz divina, faz-se peregrino de Deus. Peregrinar é avançar pelos caminhos do mundo, conhecer povos e costumes, escutar ideias novas e opiniões diferentes, sentir-se solidário com outros caminhantes.
Assim se dilataram infinitamente seus horizontes.
Decididamente, Inácio se volta para o mundo, esse borbulhar de acontecimentos sócio-político-religiosos, no qual reconhece o lugar da Encarnação.
Buscando considerar todas as coisas em sua referência a Deus, Inácio quer servi-lo em toda circunstância. Dado que seu Criador e Senhor está presente e ativo em todo e qualquer lugar, ele se dirige ao mundo sem temor a nada, seguro de que cada um de seus passos o conduz ao lugar da adoração e do serviço.
Inácio contempla o mundo com Deus; longe de representar um espaço de perdição e de dispersão, o mundo é para ele o lugar do serviço. O olhar que pousa sobre a realidade reacende nele a saudade de Deus e o sentimento de sua presença.
A partir de então, o mundo o aproxima de Deus e a saudade de Deus não o afasta do mundo.
Àqueles que desejam segui-lo, Inácio lhes propõe um itinerário para “encontrar Deus em todas as coisas”: olhar a criação, acolher cada criatura e cada acontecimento como uma mensagem divina, aceitar a própria história e deixar-se levar por seu dinamismo.
Inácio de Loyola foi um homem universal: basco, castelhano, catalão, parisino, veneziano, romano e europeu. Seu coração era tão grande como o mundo, sempre livre para a maior glória de Deus.
Para fazer-se presente neste vasto mundo, de uma maneira original e criativa, decidiu “estudar”. Formou-se em Paris, onde conquistou o título de Mestre em Artes.
Ali se matriculou com um nome novo, no dizer de Ribadeneira, “por ser mais universal”: Inácio.
Mesmo durante o período de l541 até 1556, ano de sua morte, quando se instalou em Roma, continuou sendo o peregrino que escolheu ser. A partir de seu pequeno quarto, estava presente em todos os pontos do mundo onde algo novo brotava.
Suas preocupações e suas cartas estão cheias de nomes de toda a geografia universal até então conhecida, desde o Congo ao Brasil, desde Espanha até a China ou Etiópia.
O basco Inácio de Loyola alcançou, assim, sua plenitude humana e divina precisamente porque foi capaz de abrir-se à universalidade de todas as terras, de todos os povos e de todas as culturas, sem distinção de raças nem exclusão de ninguém. Foi norma sua que “o bem quanto mais universal, mais divino”.
Nestes novos tempos, tão conturbados e carregados de violência preconceituosa e intolerante, o Espírito continua chamando cada um de nós a uma presença mais aberta e livre, mais inspiradora e compassiva, no relacionamento com todos aqueles que são os outros. Afinal “somos pessoas para os outros e com os outros”.
A cultura do mundo no qual agora vivemos requer outro tipo de presença: “viver a cultura do encontro, frente à cultura da indiferença” (Papa Francisco)
Somos desafiados a “viver uma vida no mundo e no coração da humanidade” (P. Kolvenbach).
Tal desafio implica fidelidade à realidade que nos cerca, para poder descobrir a novidade de Deus numa experiência “mística” que nos faça tocar no mais profundo desta mesma realidade.
Não se trata de fugir da realidade, mas de perceber sua última dimensão, na mais profunda dinâmica, ali onde o Espírito de Deus e o nosso se fundem em uma combustão que nos torna criadores da novidade neste mundo.
Estes nossos tempos, novos e turbulentos, pedem de todos nós, críticos, inquietos e vigilantes, uma constante releitura dos novos “sinais” que surgem, a necessidade de viver em estado de atenção permanente, capaz de nos deixar impactar por tudo o que acontece e, no discernimento, assumir decisões mais ousadas e criativas.
Se alguém se mantém constantemente de olhos abertos diante do que está vivendo, como fez Inácio, se está aberto às novas formas de socialização que estão transformando o nosso mundo, se alimenta as novas esperanças de uma humanidade que é diferente, se valoriza as novas formas de expressar a experiência religiosa..., certamente estará assumindo uma atitude ativa e acolherá tudo o que humaniza e rejeitará tudo o que desumaniza.
Que S. Inácio nos inspire a “estar no mundo..., sem sair do mundo”, à maneira de Jesus, com o coração cheio de compaixão, com os pés sempre em movimento quebrando distâncias, com as mãos sempre abertas para o serviço solidário...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Amar é aceitar e respeitar. Mais do que esperar por mudanças ou tentar que elas aconteçam, amar é receber o outro como ele é, não como alguém que poderá ser melhor, mas sim como alguém que é bom tal como é.
Amar supõe humildade, uma grande humildade, uma vez que nunca me posso julgar ser melhor do que ninguém, até porque, na realidade, não o sou.
O que devo então fazer? Dar espaço e tempo para que quem eu amo possa ser quem é. Amar não é impor condições, é o contrário, aceitar sem exigências.
Amando, entregamos ar puro à vida do outro. Amando, lançamos luz sobre as escolhas de quem amamos, não para as censurar, mas para as tentar compreender. E, ainda que não as compreendamos ou que, mesmo compreendendo, não concordemos com elas, jamais o amor nos incentivará a interferir nas opções do outro.
O ser humano concreto é sempre livre. Quem não respeita esta verdade não terá capacidade para amar.
Amar não é admirar tudo no outro, é sim entregar-me a alguém que, tal como eu, vive uma vida autêntica. Com medos, erros e outra forma de escolher os caminhos melhores.
Mas o que posso fazer? Com simplicidade e de forma sincera, expressar a minha perspetiva e as minhas conclusões. Mas também tenho o dever de lhe declarar, vezes e vezes sem conta, o que sinto: o amor, revelando sempre o facto de ele ser incondicional.
Escolher um caminho é escolher as suas consequências. Quem decide amar, e o amor é mesmo uma escolha, consente a existência de um outro, diferente de si, na sua vida. Isso implica muitos desencontros, mas se se respeitarem, então hão de ser felizes. Porque se encontraram um ao outro e a si mesmos.
Dois iguais não se amam. É sempre mau quando se tentam mudar um ao outro, quando lutam para que o outro se torne mais semelhante a si ou, até, quando julgam que amar é instruir o outro. Amar é aceitar alguém, defender e promover o seu ser. Mesmo nas questões em que se diferencia de nós.
Amar é reconhecer a mais profunda dignidade que há em cada ser humano. A sua absoluta originalidade. Somos todos muito parecidos, mas não haverá, em toda a humanidade, duas pessoas iguais. E isso é bom. Faz-nos a todos mais fortes, porque nos podemos entreajudar.
E tudo isto faz quem ama, não para ser amado, mas para ser feliz!
Há uma verdade absoluta no que diz respeito ao amor: A humildade é o preço do céu.
José Luís Nunes Martins
In: imissio.net 26.07.2019
Há dores que nos fazem perder o sorriso, mas também nos secam as lágrimas, de tão profundas que são. A vida é dura, quase injusta. Chegam a ser incompreensíveis as tantas adversidades contra as quais estamos obrigados a lutar pela sobrevivência do que somos.
Há pessoas que se conseguem manter puras, apesar de terem de passar por vales tenebrosos. Guardam-se na esperança de que, mais adiante, haverá espaço e tempo para continuarem a ser quem são. Uma fé que é força. Uma bondade que é paciência. Um amor, não pelo que são, mas por aqueles a quem dão a sua vida.
Certos sofrimentos trazem o dom de nos revelarmos a nós mesmos como mais fortes. Despem-nos de todo o lixo que tantas vezes julgamos ser riqueza, proteção e beleza. O que fica? O que somos e podemos ser, o que persiste e resiste face à tempestade. Não é algo que a sociedade considere digno de contemplar, pois que a verdade crua é sempre algo em que é difícil fixar o olhar.
Há mudanças na vida, mais ou menos súbitas, que nos parecem tragédias, mas que depois se revelam como o exato ponto de partida de uma enorme aventura. Sim, quase sempre as longas viagens passam pelo menos um grande deserto árido.
O amor é a poesia da vida. Que cada um de nós se faça poema. Há instantes mais valiosos do que coroas de reis… são aqueles em que, de forma simples, chegamos a ser quem somos. Apesar das dores, por causa das dores ou para vencer as dores.
Podemos ser as asas invisíveis que outros sentem a elevá-los quando são amados.
Da janela que das trevas se abre para a luz pode contemplar-se uma beleza que parece resolver todos os problemas e mistérios da existência. Demora a encontrar. A escuridão tenta ocultá-la. Está no alto. É preciso construir uma escada e depois subi-la…
Pode a existência ter um sentido que não somos capazes de compreender? Sim. A inteligência humana é limitada sendo capaz de ter consciência da verdade de outras dimensões que ultrapassam o seu entendimento.
As asas que sinto ter, e aquelas que quase oiço à minha volta, dão-me a estranha certeza de que algo não deixa de ser verdade apenas porque não tenho provas.
Este mundo não é o todo. No entanto é nele que somos chamados a viver, a amar e a aceitar ser amados.
A vida quer viver. Sempre.
Desgraçado de quem julga que a vida é sua, que a verdade é determinada pela sua liberdade e que este mundo é tudo o que há.
O amor costuma despertar-nos com dores que animam.
In: imissio.net 16.02.2018
Na esmagadora maioria dos casos, a ansiedade é uma resposta racional e sensível aos acontecimentos e contextos estranhos, incertos e arriscados desta nossa vida.
O ser humano é frágil, a nossa constante atenção e capacidade de previsão são armas que visam proteger a nossa integridade, tanto a nível exterior como interior.
No entanto, a nossa imaginação e inteligência tendem muitas vezes a complicar o que, na realidade, é simples. O que nos faz pagar um preço alto, uma vez que a nossa própria paz é afetada sempre que nos enredamos em confusões que não existem senão dentro de nós, mas cuja criação não dependeu apenas da nossa vontade.
A verdade é que possuímos muita informação, mas é muito pouco e quase irrelevante para nos ajudar nas decisões concretas da nossa vida.
Mais, a sociedade segue a um ritmo tão acelerado que não há tempo para descansar. Parece impossível que alguém consiga parar, pensar e sentir, desfrutar ou sofrer… Como se a nossa existência acontecesse dentro de um comboio que anda sem parar. Tudo é passageiro, momentâneo… até o descanso não pode ser nunca mais do que isso.
Há quem perca a sua autenticidade, outros até a identidade, mas a maioria vive em confronto constante com esta dimensão aflitiva da vida. A inquietação permanente de uma presa exposta que não se pode distrair, sob pena do seu predador a caçar.
A ameaça é constante porque tudo pode mudar num breve instante.
Alguns colocam a sua felicidade na expetativa da admiração e amor dos outros, mas como não controlam nem as necessidades nem as esperanças dos outros, esta sede de ser amado torna-se uma inquietude sem fim. Alguns, quando sentem a afeição do outro a escapar-lhes, tentam impedi-lo de forma rude, como se fosse possível forçar alguém a amar quem quer que seja, menos ainda quem o toma por um degrau para uma satisfação egoísta.
Mais, quase todos passamos o tempo ansiosos e… preocupados com que isso não se perceba. Como seria bom que todos assumíssemos as nossas ansiedades quotidianas.
A ansiedade é um sintoma da existência. Vivemos mesmo dentro dos mistérios de um mundo estranho, desarrumado e ameaçador.
Talvez a solução seja parar. Descansar. E aceitar a ansiedade como parte da vida. Depois, à distância, compreender as suas causas concretas em cada um de nós e tomar a sua existência não como uma derrota, mas antes como algo inevitável que até pode ser colocado ao serviço dos nossos interesses mais profundos.
É a confiança que faz diminuir a ansiedade. Abraçando-a com aquela firme certeza de que, mesmo que sejamos ridículos, não perderemos a dignidade. Nunca.
Para surpresa de muitos que se julgam maduros e sábios, só quando, amando, somos capazes de deixar de ser o centro do nosso mundo e das nossas preocupações nos é dado a ver melhor o que somos e a razão dos nossos medos.
Vivemos na história, mas não somos o que nos acontece, somos a resposta que damos ao que nos acontece. Essa é a nossa história. Isso é o que somos.
Somos uma narrativa sem espaço para sucessos e fracassos, porque está cheia de vida. E a vida é uma fusão de alegrias e tristezas, onde podemos escolher ir aprendendo a confiar, a amar e a ser felizes, amando.
Somos muito mais do que gotas de água que nada podem contra correntes, ondas e marés. Por vezes, a ansiedade é um sinal simples de que é tempo de descansarmos e de deixarmos que o nosso espírito paire sobre as águas. Confiando.
In: imissio.net 19.07.209
Não somos fruto de pó de perlimpimpim, mas de um sonho maior e infinito d’Alguém que quer o nosso maior bem e nos ama infinitamente. Sempre!
Acredito profundamente que a cada um e a cada uma de nós foi dada a oportunidade de uma viagem – longa ou breve no tempo cronológico, mas única e irrepetível – de saborear a vida plena, numa matéria que é o nosso corpo.
E esta vida é feita de pessoas, escolhas, lugares, idiomas, cheiros, memórias, pensamentos, ações, sorrisos, lágrimas, encantos e desencantos, medo, coragem e determinação…tanto a inventariar!
Penso que o maior desafio que se nos coloca em cada dia é a possibilidade de nos (re)criarmos. Como no dia da nossa fecundação. Esse momento Divino!
(Re) criar passa pela decisão de não nos deixarmos envolver demasiado pelas pré-ocupações da vida, pela possibilidade de escolhermos não ser o exterior a determinar as nossas decisões mais íntimas e mais estruturantes. (Re) criar passa por manter a agenda da vida sem espaço para o que não lhe acrescenta vida. E sobretudo paz. (Re) criar passa por não corre o risco de viver adormecida, anestesiada ou apressada, sem tempo para que a vida manifeste as carícias das suas surpresas providenciais.
A vida tem uma melodia nem sempre harmoniosa, mas que, ainda assim, nos pode abrir sempre uma porta para o divino e o eterno. E é a escolha de entrar ou não por essa porta que nos pode ajudar a não viver…ou a viver! E ter como horizonte uma vida (com)sentida, porque fecunda!
Cristina Duarte
In: imissio.net
11.07.2019
O que nos torna semelhantes a Deus não será, certamente, o nosso subtrair-nos aos outros, mas, ao contrário, a descoberta da possibilidade de durar no amor, muitas vezes em contraposição com o primeiro juízo emitido pela razão ou com o peso daquelas que consideramos ser as evidências.
Cedemos com grande facilidade à tentação de fechar portas, consumar rupturas, resignarmo-nos a certas perdas (ou também, cinicamente, delas nos tranquilizarmos).
Se assimilarmos como regra de vida o pragmatismo da expressão «dos presentes não falta ninguém» (pragmatismo mais espalhado entre nós do que talvez tenhamos consciência), não poderemos compreender porque é que o pastor, na parábola de Jesus, deixa as noventa e nove ovelhas no deserto e parte à procura daquela perdida (Lucas 15, 4,7).
Nem compreenderemos porque é que a mulher se dá ao esforço (negligenciando, provavelmente, outros afazeres mais imediatos e urgentes) para encontrar a moeda que tinha perdido dentro de casa (Lucas 15, 8-10). Não tinha ela outras nove na bolsa?
Nos itinerários pessoais ou comunitários que estamos a fazer, há um dado que emerge com suficiente clareza: não nos aproximaremos do mistério da misericórdia se não pusermos dentro de nós aquilo que o grande teólogo Nicolas Cabasilas chamou «o amor louco de Deus pelos homens». A verdade de Deus e incindível do amor.
D. José Tolentino Mendonça
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 09.07.2019
Falta-nos, talvez, descobrir ainda quanto a escuta é um sentido adequado para acolher a complexidade daquilo que a vida é. A verdade é que escutamos tão pouco e, dentre as competências que desenvolvemos vida fora, raramente está a arte de escutar. Na Regra monástica de São Bento há uma expressão essencial, se quisermos perceber como se ativa uma escuta autêntica: “Abre o ouvido do teu coração.” Quer dizer: a escuta não se faz apenas com o ouvido exterior, mas com o sentido do coração. A escuta não é apenas a recolha da malha sonora do discurso. Antes de tudo, é uma atitude que se pode descrever como um inclinar-se para o outro, uma disponibilidade para acolher o dito e o não dito, uma abertura tanto ao entusiasmo do visível como ao seu avesso, à sua dor. O conhecimento de que mais precisamos provém dessa forma de hospitalidade que a escuta representa.
Sabemos que uma árvore que tomba faz mais barulho que uma floresta a crescer. E se um camião se desloca vazio ou com meia carga faz mais rumor do que se for realmente cheio. O vazio pode ser muito ruidoso e a plenitude completamente silenciosa. Um Padre do Deserto contava que a capacidade de escuta de um discípulo era tão grande que conseguia distinguir, à distância de muitos metros, uma agulha a cair. Ora, muitas vezes, nós nem a poucos centímetros somos capazes de ouvir a vida a tombar. A escuta pede, por isso, exercitação e treino. Numa cultura de avalancha como a nossa, ela configura-se como um recuo crítico perante o frenesim das palavras e das mensagens que a todo o minuto nos submergem. Os modelos de vida hoje em vigor são atordoantes, e a única compensação para as nossas existências extenuadas parece ser o entretenimento. Porém, a própria palavra ‘entreter’ fala por si mesma: entreter significa ter ou manter entre, numa espécie de suspensão que nos captura. E a dada altura, nessa terra de ninguém, não vivemos já em lado algum, nem em nós próprios.
Há uma outra história dos ditos e feitos dos Padres do Deserto (Edição Assírio & Alvim, 2004), que dá que pensar. Um mestre tinha doze discípulos e o seu preferido era o que se ocupava da caligrafia. Isso naturalmente gerava problemas aos restantes, que não percebiam aquela predileção. Então o mestre decidiu colocá-los à prova em conjunto. E, um dia, em que estavam todos ocupados a trabalhar, cada um em sua cela, o mestre clama: “Eia, meus discípulos, vinde a mim.” O primeiro que apareceu foi o discípulo calígrafo e só depois, pouco a pouco, chegaram os outros. O mestre levou-os então à cela do calígrafo e disse-lhes: “Vede, ele estava aqui a desenhar a letra ômega e interrompeu o desenho de uma pequena letra para acorrer ao mestre.” Então os discípulos responderam: “Percebemos agora. Amas aquele que verdadeiramente te escuta.”
Mas há, porém, um paradoxo com o qual temos de contar: é que a verdadeira escuta pede que nos tornemos surdos. Diz Evagro Pôntico, um antigo mestre espiritual: “Esforça-te por conservar o teu espírito surdo e só assim poderás rezar.” Que surdez é esta? É aquela que brota do abandono. A nossa escuta é permanentemente interrompida por urgências que se impõem, sobretudo falsas urgências, ficções que nos povoam e barram a experiência essencial. Sempre que a nossa escuta desiste de ir até ao fim, ela desiste de si. Por isso Evagro recomenda: “Torna-te surdo.” A verdade é que se não formos capazes disso, não mergulharemos no silencioso oceano da escuta. Convite paradoxal a se perder para encontrar-se. Teremos de aprender a trocar a potência do ruído pelo murmúrio do silêncio. E a ser como os rebanhos que nos campos seguem o sopro trémulo da flauta do pastor em vez do vento.
D. José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 29.06.2019
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