João Delicado
“A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o abismo...”. Assim começa a narração do Livro do Gênesis, permitindo uma analogia com o atual momento político do Brasil. A política partidária instalou incontestavelmente o caos na sociedade. Está perdida a capacidade para o diálogo que gera consensos e entendimentos. Não paira, absolutamente, o Espírito de Deus no mundo da política. É uma escuridão que fomenta o caos - um “salve-se quem puder” que passa por cima do bem comum como um trator. Não há esperança de que a política partidária consiga, rapidamente, oferecer contribuições para os rumos da nação. A lista de desmandos, escolhas absurdas, interesseiras e manipulações é interminável. Comenta-se, em muitas esferas da sociedade, sobre a expectativa do surgimento de um líder político capaz de gerar agregação e apontar novas direções. Isso parece ser difícil de ocorrer, justamente pelo atual cenário vivido pela política partidária. Quem seria capaz, agora, de reverter essa difícil situação? O mundo da política partidária no Brasil configura-se como um devastador desastre humano à semelhança das incidências horrendas que ferem o meio ambiente.
A deterioração da esfera política e o tratamento inadequado das questões ambientais se desenvolvem a partir da mesma raiz. Aqui vale relembrar as palavras do Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica Alegria do Evangelho, quando se refere à nova idolatria do dinheiro. O caos vem dessa idolatria. É inexistente a nobreza de fazer política pelo bem comum, com o objetivo de ajudar a nação a alcançar patamares de civilidade e de funcionamentos que promovam, sem populismos, os seus cidadãos. A falta dessa nobreza é resultado de carência na formação humanística que ilumina intuições, capacita para o bem, muito acima do interesse de enriquecimentos ilícitos. O Papa Francisco afirma que “uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e nossas sociedades”. Essa verdade explica os desajustes no tecido da cultura, que delineia a identidade da sociedade e influencia suas direções.
O Papa Francisco oferece a chave de interpretação desse caos instalado que produz, por exemplo, a crise financeira que pesa sobre os ombros de todos. A base da desordem é a negação da primazia do ser humano. Esse colapso antropológico tem muitas feições. Descompassa relações, articulações de grupos e segmentos na sustentação de uma sociedade que deve se mover no horizonte da justiça e da solidariedade. É triste constatar o que ocorre na política partidária. O desejo de ocupar cargos públicos não vem acompanhado do sentido cidadão mais profundo de ajudar decisivamente na construção de uma sociedade solidária e justa. Trata-se de interesse doentio pelo dinheiro, para alimentar ilusórias sensações de poder e segurança. Uma ambição que produz essa economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano.
Ora, a idolatria do dinheiro é perigosa, gera ilusões e desgasta o mais nobre sentido da política, que é promover o bem comum. Essa idolatria é tão terrível que faz crescer, de modo generalizado, a sensação de que não há mais tempo para fazer o que é necessário. Isto fica explícito nas muitas lamentações e ladainhas exaustivamente propaladas. O interesse mesmo é ganhar sempre mais, produzir menos. Nada de sacrifícios e esforços para alcançar o bem de todos. Uma luz precisa brilhar para iluminar essas trevas. E de onde ela pode vir? Em primeiro lugar, da corresponsabilidade e seriedade cidadã de cada indivíduo. Sistemicamente, essa luz pode e precisa brilhar com o fortalecimento, em seriedade e audácia, dos diferentes segmentos da sociedade - empresarial, religioso, judiciário, acadêmico e intelectual, artístico e outros mais. Cada setor, pela seriedade e honestidade, tem o dever de dissipar as trevas que preenchem o abismo onde está inserida a sociedade brasileira. Que venha de todas as pessoas e grupos, pelo compromisso com o bem, a justiça e a verdade, essa a luz que tem a força para resgatar o país do caos.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
In: Opinião e notícias
18/03/2016
Assim se chama o livro de Christiane Singerque que nos desafia a encontrar um ângulo, primeiro cultural e depois civilizacional, para olharmos para as crises que todos atravessamos, quer se conjuguem no plural, quer simplesmente se declinem no singular. A autora propõe essencialmente três coisas.
1. Que num tempo em que escasseiam os mestres, e todos estamos mais ou menos entregues a uma autogestão (para não dizer a um isolamento) devorante da própria vida, as crises «são realmente os grandes mestres que têm alguma coisa a ensinar-nos». Não escutar, a fundo, o que as crises nos dizem é desperdiçar a ocasião para aceder àquela profundidade que pode devolver sentido à vida. Mesmo sabendo que uma crise é sempre um austero mestre para o qual raramente nos consideramos preparados.
2. Numa sociedade que tantas vezes concorre para afastar-nos daquilo que é importante e vital, as crises funcionam quase como um rito secularizado de iniciação à liberdade e à verdade de Ser. Christiane Singer relata o que um seu amigo antropólogo lhe disse ter escutado a um aborígene: «Não senhor, nós não temos crises, nós temos iniciações». As nossas sociedades modernas e democráticas têm um elevado ideário para a realização humana: basta pensar nessa tricolor herança da liberdade, igualdade e fraternidade. O problema, porventura, não é o das metas, mas o dos caminhos. Como é que se faz a aprendizagem dos valores que melhor nos podem expressar a nós próprios, nesta dinâmica construção do que é viver e viver com os outros? Aí é que surgem os hiatos, os bloqueios, as incertezas, as demissões. Só os ritos de passagem, desenvolvam-se eles em que quadro for, é que nos colocam realmente em contato com a vida e com a morte, isto é, com a inteireza do destino humano.
3. Por fim, talvez precisemos compreender que no curso do nosso caminho, coletivo e pessoal, as crises «nos acontecem para que seja evitado o pior». E o que é o pior? Singer escreve: «O pior é ter tido a infelicidade de atravessar a vida sem naufrágios, é ter ficado apenas à superfície das coisas, ter dançado um baile de sombras, ter ficado a chapinhar no pântano do diz que diz, das aparências» e nunca ter habitado uma vida que lhe pertencesse.
Pe. José Tolentino Mendonça
Você já se sentiu infinitamente pequeno diante de algo imenso e infinito? Já percebeu o quão frágil é tudo à sua volta, inclusive, e principalmente, você? Já pensou que um dia o sol se apagará e tudo que você conhece deixará de existir?
Já pensou que em meio a tantas pessoas que transaram desde a mais distante ancestralidade humana, a “cadeia de orgasmos” entre elas é a causa eficiente da sua existência hoje? Já imaginou quanta coisa podia ter dado errado e você não existir? Aqui não estamos muito distantes do silêncio que muitas vezes se impõe quando testemunhamos uma criança vir ao mundo. Esse silêncio é nossa consciência ancestral de que devemos nossas vidas a todos os que viveram, lutaram e morreram antes de nós. A primeira palavra que devíamos aprender a falar é “obrigado”. Uma cultura que não cultiva o respeito pelos ancestrais é uma cultura de ingratos. Deveríamos assistir ao parto de joelhos.
Bastava uma dorzinha de cabeça numa das fêmeas ancestrais ou uma brochada num dos machos ancestrais ou um dos dois ser comido por algum predador, e você não estaria hoje aqui lendo a Folha.
Logo, é quase um milagre esse instante em que nos encontramos. Assim como toda a cadeia de eventos que envolve a sua vida e a de cada um de nós.
Diante de tantas variáveis infinitas, muita gente sente um certo agradecimento por ter nascido e pelas coisas que giram à nossa volta, tornando possíveis nossas vidas.
Nossa atitude deveria ser uma de completa reverência diante de tudo isso. Esse tipo de reverência desapareceu do nosso repertório porque somos uns mimados que acham que o universo é “um direito” cósmico. E que todos que transaram em nossa longa cadeia de ancestrais o fizeram “por nossa causa”.
Essa humildade diante da simples existência não é muito distante da ideia de graça no cristianismo (e também no judaísmo e islamismo). Dai que qualquer teólogo competente sabe que toda boa teologia começa agradecendo. Coisa pouco comum hoje em dia. Uma sociedade dominada pela ideia de “direitos” é necessariamente uma sociedade que cultiva a ingratidão. Nada mais distante da espiritualidade semita (das três religiões abraâmicas citadas acima) do que uma teologia que “pede”. A teologia começa agradecendo o fato de respirarmos. Ou, como diria Santo Agostinho (354-430), devemos agradecer pela língua que temos para falar.
Toda espiritualidade séria começa com a consciência do quão improvável é a nossa existência e a de todas as demais coisas à nossa volta. A fina relação entre essa enorme improbabilidade e nossa ínfima existência é que produz o sentimento de milagre, agradecimento e graça.
Que nenhum ateu inteligentinho queira me dar uma lição de estatística ou de acaso cego. Guarde-as para ateus inseguros e de alma tosca. A cegueira do acaso apenas torna a beleza do mundo ainda maior.
O que vem a ser a religião? Essa pergunta não é fácil de responder. Muitos tentam buscar uma resposta que sirva pra todas as religiões, mas isso não é evidente.
Entretanto, existem algumas ideias interessantes sobre essa busca de um “denominador comum” para as religiões que funcionam razoavelmente bem. E algumas delas passam justamente por esse sentimento de agradecimento pelo simples fato de sermos capazes de testemunhar toda essa beleza, ao mesmo tempo frágil e imensa. E de nos sentirmos de alguma forma dependentes dela.
O teólogo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834), fundador da hermenêutica, disciplina que estuda os modos de interpretação de culturas e textos, é considerado o pai fundador dos estudos não religiosos das religiões. A história desses estudos é longa e não vou me ater a todas as controvérsias que a matéria exige.
O que me interessa aqui é o “denominador comum” que Schleiermacher pensava estar presente em todas as religiões. Para ele, as religiões são o fruto dessa percepção profunda de nossa dependência para com esse infinito que nos sustenta e, ao mesmo tempo, nos lembra o quão efêmero isso tudo é. Como o pó que se vai com o vento, mas que é capaz de ver o rosto de Deus.
Luiz Felipe Pondé
Folha de São Paulo – 29/2/2016
Estava na casa dos meus pais e ouvi do quarto a apresentadora Sônia Abrão falar que “quem tem 5 amigos pode se considerar um milionário”. Eu já não gosto do trabalho dela – principalmente depois do modo com que tratou a morte de uma ex-aluna minha, explorando o assassinato e a miséria humana com fins de audiência – e ouvir tal sentença me deixou incomodado. Como é próprio de programas medíocres que são produzidos com a intenção de atingir as camadas empobrecidas da população e aliená-las, cria-se sempre um clima de desesperação e desesperança. Será que a amizade é algo tão raro?
O problema de postulados e sentenças como estas me parece duplo. Uma face se dá na dificuldade de comprovação. Falta pesquisa consistente que avalie a qualidade e a quantidade das amizades. A segunda diz respeito à origem dessas falácias. Geralmente elas brotam de experiências ruins, carecendo de objetividade. Um coração machucado pode muito bem turvar a visão. O fato de um grande amigo ter se mostrado mau não quer dizer que todos os outros o serão.
Eis uma das frases de pessoas feridas: “Quando a gente precisa de ajuda, não aparece ninguém”. Julgo infeliz, na maioria das vezes, tais percepções. Geralmente estou disposto a ajudar amigos e desconhecidos. Contudo, não tenho condições humanas de ligar para todo mundo que gosto e perguntar com regularidade se está bem e se eu posso ajudar com alguma coisa. A coisa mais fácil é que aquele que precisa vá buscar ajuda e não quem pode ajudar fique buscando alguém necessitado entre seus amigos. Aliás, a melhor maneira de se viver a segunda opção é se inscrevendo como voluntário de algum trabalho social ou sendo um sócio colaborador que deposita frequentemente uma parte de sua renda para tais ações. Agora, quem diz que não encontrou ninguém numa hora de necessidade, por acaso, procurou todos os seus amigos um a um?
Imagino alguém que tenha 5000 pessoas nos círculos sociais dos quais faz parte. São eles pessoas da faculdade, do trabalho, do bairro, da Igreja, do clube etc. Em cada um desses lugares, suponhamos, que esse alguém tenha 3 pessoas mais próximas, totalizando umas 21. Não obstante, sua presença pode ter criado antipatias que, somadas, resultem em 70 pessoas. Ou seja, há 4909 pessoas com as quais esse alguém tem uma relação amistosa, ainda que pouco profunda, e que lhe nutrem algum afeto positivo. O grau de amizade pode até não ser alto, mas a maioria pode estar numa disposição boa em relação a ela. De algum modo, essa massa é considerada como neutra, e as 21 amizades passam a significar 5. Ora, porque 21 vira 5? Como todo mundo tem família, trabalho, questões de saúde e cuidado pessoal etc., não dá para se fazer presente na vida de todo mundo com a intensidade que o afeto manda, mas só na daqueles que a rotina facilita a presença.
Somemos aqui o olhar ferido. Há pessoas para quem uma fala dura roube a alegria do dia. Basta um olhar atravessado para mudar a cor do dia de alguém. Daí os 70 inimigos ocuparem mais espaço na mente de quem se sente odiado ou perseguido. Para olhares pessimistas, os amigos próximos são menos do que realmente são e os inimigos maiores. O problema aumenta com a paranoia. Imagine alguém que se isola por medo de se relacionar. A solidão somada ao medo pode adoecer as pessoas.
Talvez algumas pessoas saibam construir relações melhores que outras. Quem sabe eu não tive a sorte de conhecê-las e por isso considere ter muitíssimo mais que 5 amigos? Tudo bem que há uma gradação no nível de amizade e que não pode ser medida só pela profundidade da partilha de vida, de favores trocados ou de afetos demonstrados. Há muita variação nisso. Há pessoas a quem o carinho não se mostra em palavras ternas e afagos, mas em presença efetiva. Julgar que uma pessoa assim é menos amiga é um tanto temerário. A ausência também pode não significar muita coisa. Afinal, quem nunca reencontrou alguém que não via por muito tempo e atou uma conversa que deixou o sentimento de nunca terem se apartado?
Melhor que a lamúria de não ter amigos é parar para pensar nas relações que se tem e atentar para uma simples realidade: quem eu quero e quem me quer bem? Lembrar-se dos rostos e das histórias vividas juntos pode trazer o conforto para a alma de que não se está sozinho. O segundo passo é ir ao encontro de quem se ama e celebrar a amizade. Aliás, tem mais amigo quem amigo se faz.
Gilmar P. da Silva sj
(texto originalmente publicado no site www.domtotal.com
A Bíblia proíbe imagens esculpidas e fundidas que representem Deus sob formas humanas ou animalescas, por causa dos falsos cultos dos povos que Israel devia expulsar da “terra santa”. A Bíblia nunca proibiu outras imagens, só aquelas que representassem Deus e fossem adoradas como se fossem divindades. E também não quer privar-nos de uma imagem de Deus, já que a Deus não se pode “ver” (ter experiência imediata) nesta vida. Mas nossa “imaginação” precisa ter uma imagem dele.
Quando dizemos “Deus” pensamos na primeira e última instância de nossa vida, o alfa e ômega do alfabeto com o qual escrevemos as linhas de nosso viver. Daí colocarmos Deus no início (Criação) e no fim (Juízo) de nossa História. Mas isso também é imagem, metáfora. Não se trata de afirmar cientificamente que Deus criou o mundo em seis dias e depois descansou (a melhor coisa dessa história!) – para em nome disso negar, estupidamente, aquilo que Darwin cuidadosamente pesquisou! Tampouco se trata de calcular a data do fim do mundo. Nem Jesus pretendia conhecer essa data (Marcos 13,32). Não são tais os objetivos das expressões a respeito de Deus. As metáforas com as quais balbuciamos a respeito de Deus servem para orientar o nosso viver e para nós mesmos realizarmos o projeto de nossa vida: sermos imagem e semelhança d’Ele! (Gênesis 1,26). O ser humana não precisa inventar imagens esculpidas ou fundidas de Deus. Deus forneceu sua imagem no próprio ser humano.
Ser humano é realizar na vida a imagem de Deus, já que Deus não é uma entidade separada de nós e fora de tudo aquilo que existe, mas antes, “nele vivemos, nos movemos, e somos” (segundo a citação de Paulo em Atos 17,28). Ora, precisamos de um modelo, de um protótipo para realizar essa nossa vocação. Esse modelo é Jesus de Nazaré, “primogênito da criação” (Colossenses 1,15). Conforme a visão do autor de Colossenses, Deus tinha Jesus diante dos olhos quando criou Adão e Eva “à sua imagem e semelhança”. Imagem e semelhança de quem? De Deus ou de Jesus? Encontrei a resposta na catedral de Chartres. No portal norte da catedral aparece, como coluna angular, uma escultura emocionante: Deus criando Adão, na estatura de um adolescente, olhando para o rosto de seu Criador. Os traços de seu rosto são os de Jesus, que, por sua vez são os traços do próprio Criador. O rosto do Pai e Criador se espelha no rosto de Adão-Jesus. Jesus nos veio mostrar como é Deus, para que nós sejamos como Ele... Jesus... Deus. Somos deiformes. Jesus como modelo perfeito, nós como fracas imitações, mas no caminho de nossa vida Deus completa sua escultura em nós pela sua graça.
O evangelista João, como já a literatura sapiencial de Israel, busca sua metáfora não na escultura, mas na literatura, na linguagem. Antes de encetar o trabalho, Deus fala uma palavra para si mesmo, concebe um projeto para orientar seu afazer: a Memra (em aramaico), o Logos (em grego). “No princípio era a Palavra”. A Deus mesmo, ninguém o pode ver, mas sua palavra é o que ele mesmo é, exprime perfeitamente o que ele é para nós. “A Palavra estava junto de Deus... era deus”. E ela nos dá a conhecer tudo o que nos cabe conhecer a respeito de Deus. “A Deus, ninguém jamais viu; o Unigênito que é deus, aquele que está virado para o seio do Pai, ele no-lo deu a conhecer” (João 1,18). Assim como é esse “Unigênito”, esse único entre os muitos “gerados de Deus” (pois é assim que João, diversas vezes, chama os que creem em Jesus), assim é Deus. E na hora de dar sua vida por amor, ele diz; “Quem me viu, viu o Pai” (João 14,9). Assim é Deus: amor até o fim (1 João 4,8). E quem ama como Jesus amou, conhece Deus, porque participa na prática dele (1João 4,11).
Não me interessa provar que Deus existe no sentido como entendem aqueles que O negam... Interessa-me saber como Ele é, para saber como eu devo ser.
Johan Konings
(texto publicado na sua coluna no site Dom Total 23/12/2015)
Creio que nas próximas décadas, e nas que se lhes seguirão, e ainda naquelas que virão, por muitos milênios, a humanidade saberá o que pensar. Não faço parte do exclusivo clube dos pessimistas históricos; os discursos sobre a decadência aborrecem-me; assim como, confesso, os otimismos me desconcertam. Os fios com que se coze a história não são descendentes nem ascendentes: são apenas fios; aqueles que se encontram na vida de cada tempo e cada geração. E a coisa mais importante é que os fios resistem de modos infinitos, tanto nas catástrofes como nos sucessos (e sabe Deus quanto é difícil renascer depois de uns e de outros!). Por isso creio que a humanidade do futuro saberá certamente o que pensar. Não é difícil imaginar que os saberes, mesmo em novos contextos, se desenvolverão e que em muitos casos representarão para nós uma surpresa total, mais não seja por os termos tido durante tanto tempo debaixo do nariz e não os termos aproveitado. Talvez não tivesse chegado ainda o seu momento. Ou talvez tivesse e nós o tenhamos clamorosamente falhado, facto que deveremos admitir. Não é difícil conjeturar que surgirão novas gramáticas para compreender o mundo e intervir nele, e que algumas nos confirmarão no que fomos, enquanto outras se oporão, reinventando radicalmente métodos e propósitos.
Mas no fundo, que importa? Serve pouco agarrarmo-nos aos nossos pontos de chegada, como se fossem os únicos legítimos, quando deveremos começar antes de tudo com a bênção ao futuro que nos declara superados. Bendito o futuro que rirá de nós porque confundimos tudo: uma mudança com a viagem, uma aproximação com o encontro, a posse das coisas com o seu uso, a acumulação de bens com o seu saudável usufruto. Bendito o futuro que nos criticará por termos produzido tanto e distribuído tão mal, por termos andado na Lua e depois resistir tanto, mas tanto, a chegar ao conhecimento do nosso próprio coração. Bendito o futuro em que as tecnologias deixarão de ser um fetiche nas mãos do mercado, como já acontece em larga medida, e se tornarão um instrumento melhor para a vida de todos, como aconteceu, por exemplo, com o arado ou a roda. Bendito o futuro que nos inspirará estilos de vida mais essenciais, mais atentos aos outros seres humanos, mas também a todas as outras criaturas que conosco partilham esta misteriosa aventura, e das quais sabemos tão pouco. O futuro saberá encontrar o espaço e a expressão do seu pensar.
Há uma coisa, porém, que supera todo outro desejo: que a humanidade que virá habitar aquele que para nós é o futuro se dê conta, muitas vezes, de não saber o que pensar. Que se deixe desconcertar pelo inexplicável esplendor de cada aurora; que permaneça sem palavras diante do mar, como aqueles que o viram pela primeira vez; que se sinta irresistivelmente atraída pelas variações das cores, dos volumes e dos odores da paisagem diurna e noturna; que se sinta atravessada por um frémito ao primeiro contato com a água; que mantenha a capacidade de se espantar diante do modo como o vento leva para longe as nossas vozes felizes; que olhe do mesmo modo indefeso a chuva, os campos alagados em silêncio, as coisas mais pequenas e vastas, o tráfego das nuvens, a disseminação das papoilas que nos campos se assemelham a palavras que sonham. Desejo ardentemente que a humanidade do futuro saboreie o embaraço por aquilo que permanece inacabado, não por insuficiência mas por excesso, e não se apresse a catalogar, a descrever ou aprisionar. Que o seu modo de compreensão seja uma outra maneira de manter intacto (ou até de o amplificar) o espanto.
José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins - Publicado em 14.11.2015 pelo SNPC
Há quase trinta anos (1987), com o refrão “Que país é esse?”, o Legião Urbana, sintomaticamente gestado em Brasília, cantava a perplexidade de uma geração que, nascendo sob o regime militar, experimentava os primeiros passos da nossa até hoje frágil democracia.
A modo de denúncia, a música explodia sua indignação já nos primeiros versos proféticos:
“Nas favelas, no Senado, sujeira pra todo lado.
Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação.
Que país é esse no qual ‘mar de lama’ deixou de ser metáfora, transformou-se em realidade, e volta, todos os dias, a ser metáfora da realidade, desta vez política, que se vê no país?
Que país é esse no qual um deputado investigado no Supremo por peculato, formação de quadrilha, crimes de responsabilidade e homicídio “simples”, continua deputado e simplesmente faz parte do Conselho de Ética da Câmara Federal?
Que país é esse em que o presidente da mesma Câmara Legislativa usa as prerrogativas e privilégios do cargo para impedir que seja apeado do mesmo cargo, sob uma coleção de acusações e constatações que não deixam a ele outro adjetivo senão “bandido”?
Que país é esse em que, um degrau acima na escala do poder, a presidência do Senado é ocupada por um sujeito que tem mais folha corrida que biografia? Sua excelência, há exatos oito anos, em dezembro de 2007, teve que renunciar para não ser cassado, numa manobra usada por muitos parlamentares que, flagrados no ato, apostam na ignorância de uns e no oportunismo de muitos, para voltar ao poder de onde, na verdade, nunca saíram.
Subindo mais um pouco, que país é esse em que uma presidente eleita se submete a proclamar as mentiras preparadas pelo marqueteiro de plantão, para ganhar uma reeleição e garantir um projeto de poder?
Que país é esse em que um partido eleito para ser diferente e fazer diferença, acolhe em seu meio bandidos que só estão lá para fazer o que sempre fizeram, roubar dinheiro e esperanças?
Que país é esse em que um amigo paga as passagens da lua de mel de um dos expoentes dessa mesma política, além da hospedagem numa suíte no luxuoso Waldorf Astoria, em Nova York? Pensou no amigo do Lula? Não, estou falando do banqueiro André Esteves, atualmente dando expediente numa cela de Bangu 8, de pijama vermelho e cabeça raspada. Quem foi o noivo feliz que recebeu o mimo? Aécio Neves.
Que país é esse em que bandido de alto escalão, não conseguindo explicar cada milhão, na Suiça ou não, diz que vendeu carne moída ou, da vaca, o embrião?
Que país é esse?
Que continua acordando, todo dia, de madrugada, enfrentando ônibus, metrô, trem de subúrbio, patrão (quando há), desemprego, subemprego, inflação, custo de vida nas alturas, salário no bueiro?
Que país é esse em que o pequeno empresário, o empreendedor, o agricultor, tem que dar piruetas, pra pagar os salários dos funcionários e mais os impostos dos seus sócios, federal, estadual e municipal? E se não pagar, vai pru pau!
Que país é esse, moçada?
É o nosso, e, ao contrário do que pregou o Tiririca, pior ele fica se a gente ficar só na reclamação, no espanto, no desencanto.
Já vivi um tiquinho a mais. E vi demais, e coisa pior. Na ditadura, da qual alguns idiotas dizem ter saudades, havia tudo isso e mais a mordaça. O pau, era de arara, e cada um que se opunha, virava inimigo, preso, torturado, banido, desaparecido.
Confesso que estou vendo coisas que não imaginava ver. Só meus netos, talvez. Em Brasília, ‘barata voa’ só de ver um japonês. O Judiciário, com seus muitos e graves pecados, está fazendo valer a lei. Só precisa fazer valer o pau que dá em Chico, pra pegar também o Francisco.
Que país é esse? É o país que está aprendendo a diferenciar o que é favor do que é direito, o que é promessa do que é conquista. O País que está aprendendo que democracia precisa ser participativa. Não basta eleger e esquecer.
O país só aprende se a gente aprender. Porque esse país, somos nós.
Eduardo Machado
é educador e escritor
16/12/2015
«Não precisamos de mais nada a não ser um espírito vigilante.» Este apotegma do abade Poemen, um Padre do Deserto, exprime bem o caráter essencial que reveste a vigilância na vida espiritual cristã.
O Novo Testamento opõe a vigilância ao estado de ebriedade e ao da sonolência; define-a como a sobriedade e a atitude de ter os olhos abertos daquele que tem um propósito preciso a atingir e do qual se poderia distrair se não fosse, precisamente, vigilante.
Dado que o propósito a perseguir, para um cristão, é a relação com Deus através de Jesus, a vigilância cristã está totalmente em relação com a pessoa de Cristo, que veio e que virá.
Basílio de Cesareia termina as suas "Regras morais" afirmando que a «especificidade» do cristão apoia-se na vigilância ligada à pessoa de Cristo: «O que é próprio do cristão? É vigiar a toda a hora do dia e da noite e de permanecer pronto na perfeição que agrada a Deus, porque sabe que o Senhor vem à hora que ele não espera».
A insistência sobre a dimensão temporal, neste texto, não é obra do acaso. O vigilante é arquétipo do profeta, aquele que procura traduzir o olhar e a Palavra de Deus no hoje do tempo e da história.
A vigilância é, por isso, lucidez interior, inteligência, capacidade crítica, presença na história, não distração e não dissipação. Unificado pela escuta da Palavra de Deus, interiormente atento às suas exigências, o homem vigilante torna-se responsável, ou seja, radicalmente não indiferente, consciente de tomar cuidado de tudo e, em particular, capaz de vigiar sobre os outros homens e de os guardar.
«Ser "episcopus", bispo», escreve Lutero, «significa olhar, ser vigilante, vigiar atentamente.» A vigilância é por isso uma qualidade que exige grande força interior e produz um equilíbrio: trata-se se pôr em prática a vigilância não somente sobre a história e sobre os outros, mas também sobre si, sobre o seu próprio ministério, sobre o seu próprio trabalho, sobre a sua própria conduta, em suma, sobre toda a esfera das relações que se vive. De modo que sobre tudo reine o senhoria de Cristo.
A dificuldade da vigilância consiste precisamente no fato de que é sobre si, antes de tudo, que é preciso vigiar: o inimigo do cristão está nele próprio, não fora dele. Tende cuidado convosco e velai: que os vossos corações não se tornem pesados com a devassidão, a embriaguez e as preocupações da vida, diz Jesus (cf. 21, 34.36).
A vigilância exige o preço de uma luta contra si próprio: o vigilante é o resistente, aquele que combate para defender a própria vida interior, para não se deixar levar pelas seduções mundanas, para não se deixar vencer pelas angústias da existência; em suma, para unificar fé e vida e para se manter em equilíbrio e em harmonia.
O vigilante é aquele que adere à realidade e não se refugia na imaginação, na idolatria, que trabalha e não cai na preguiça, que se coloca em relação, que ama e não é indiferente, que assume com responsabilidade o seu compromisso na história e vive-o na espera no Reino que virá. A vigilância é, portanto, a fonte da qualidade da vida e das relações e está ao serviço da plenitude da vida; ela combate as seduções que a morte exerce sobre o homem.
Paulo adverte os cristãos de Tessalonica com estas palavras: «Não durmamos, pois, como os outros, mas vigiemos e sejamos sóbrios» (1 Tessalonicenses 5, 6). Na simbólica bíblica, mas também noutras culturas, cair no sono significa entrar no domínio da morte.
Vigiar, por seu lado, é uma atitude própria do homem atento e responsável, mas adquire uma significação particular para o cristão que coloca a sua fé em Cristo morto e ressuscitado. A vigilância é assumir, de maneira íntima e profunda, a fé na vitória da vida sobre a morte.
Desta forma, o vigilante opõe-se ao homem adormecido e embrutecido que amacia os seus sentidos interiores, que permanece na superfície das coisas e das relações; ele torna-se também um homem de luz, capaz de irradiar a luz.
«Iluminados» pela imersão batismal, os cristãos são «filhos da luz» chamados a iluminar: «Que a vossa luz brilhe diante dos homens, a fim de que eles vejam as vossas belas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus» (Mateus 5, 16).
Não se trata de exibicionismo espiritual, mas sobretudo do efeito transbordante da luz que, permanecendo num coração vigilante, não pode ficar escondida, mas emerge por ela própria e se difunde.
Em certo sentido, a vigilância é a única coisa absolutamente essencial ao cristão: ela é a matriz de toda a virtude, ela é o selo de toda a ação, a luz dos seus pensamentos e das suas palavras. Sem ela, todo o agir do cristão arrisca-se a ser pura perda. O abade Arsénio diz: «Todo o homem deve vigiar as suas obras para não trabalhar em vão».
Enzo Bianchi
In "Les mots de la vie intérieure", ed. Cerf
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 01.12.2015 no SNPC
«Escrevi o teu nome na areia, mas a onda apagou-o. Gravei o teu nome numa árvore, mas a cortiça caiu. Esculpi o teu nome no mármore mas a pedra desfez-se. Tomado pelo desespero, escondi o teu nome no meu coração, e nele o tempo o conservou.»
Não sei quem escreveu estas palavras. Encontrei-as algumas vezes nos livrinhos que os noivos preparam para o seu matrimónio religioso, dando aos parentes e amigos a oportunidade de seguir a liturgia nupcial.
É verdade que as frases são algo enfáticas e sentimentalistas, mas o sentimento, em certos momentos, não estraga, sobretudo quando colhe um fundo de verdade humana e espiritual. O tema é simples e pode tocar quer o amor de casal quer todo o género de relação interpessoal e, em sentido mais lato, todo o compromisso de entrega ao próximo.
As promessas de amor exterior são significativas mas, como se sabe, os belos discursos deixam marcas frágeis, mesmo quando são frementes e incisivos. É a entrada no santuário da consciência, no profundo da vontade, na seriedade da vida que torna o amor sólido e constante.
As muitas palavras, a denguice, as expressões retóricas deixam o tempo que encontram, apesar de terem a sua função. O que conta e permanece é a escolha do coração, ou seja, da interioridade, que se consagra ao outro com verdade e intensidade.
Infelizmente, a educação para viver deste modo o amor é rara, acontecendo aquilo que, ceticamente, o príncipe Fabrizio, de "Il Gattopardo", de Tomasi di Lampedusa (1896-1957) observava: «Amor: fogo e chama por um ano e cinzas por trinta!».
P. (Card.) Gianfranco Ravasi
Trad.: Rui Jorge Martins in: SNPC 27.10.2015
Podem tornar-se instantes de graça todos os instantes da vida? Ou, pelo contrário, não: há instantes límpidos, incomparáveis, de que não conhecemos as regras, e só estas são portadores da possibilidade de sentido e redenção para a vida?
Não fiz sondagens, mas direi sem muitas hesitações que a maior parte de nós tende para esta segunda hipótese. A vida normal goza de má imprensão, sobre ela recai um imutável descrédito, como se vivêssemos a descobrir que o que nos falta está noutro lado.
Olhamos os dias, o curso dos seus instantes reputados como sem história, estranhamento seguros de que deles não virá o que procuramos. Seduz-nos muito mais o extraordinário: pensamos que, no fundo, a felicidade depende da experiência não habitual, descontínua, de uma visita esporádica, de um lampejo que não se detém.
Se tivéssemos de assinalar, entre as práticas artísticas, um exemplo desta sensibilidade dominante, poderíamos citar as fotografias (extraordinárias, ainda para mais) de Henri Cartier-Bresson.
Na introdução ao primeiro livro de imagens que publicou, ele propõe uma tese precisa sobre o que chamava «o instante decisivo». Hoje é impossível pensar na sua fotografia e, em certo sentido, no que é a fotografia em geral, sem revisitar esse texto que o tempo tornou cada vez mais influente.
O ponto de partida de Cartier-Bresson é uma epígrafe extraída dos volumes de memórias do cardeal de Retz: «Não há nada neste mundo que não tenha um momento decisivo». E o que diz, em síntese? Que quando o olhar do fotógrafo considera o mundo, sabe que exercita um poder: pode modificar perspectivas, colocar a máquina fotográfica próxima ou afastada do sujeito, realçar um detalhe ou recompor a realidade.
Mas ao fotógrafo ocorre também dar-se conta de que estão reunidos todos os elementos para uma excelente fotografia, e todavia ainda falta alguma coisa, e não sabe o quê. Até que acontece alguma coisa de imprevisto a atravessar a cena. O fotógrafo põe-se então a acompanhar o movimento por trás da sua máquina e espera, espera, espera.
Quando, por fim, carrega no botão, sente confusamente que captou algo. Mais tarde, no laboratório, revelando aquele material, dá-se conta de que o que captou era o instante decisivo. Fixou o instante sem o qual aquela imagem seria banal, não possuiria a mesma forma, intensidade, pulsão, mistério e vida.
Por isso, a atividade do fotógrafo e do artista pode apenas consistir numa espera aberta ao momento extraordinário. Será também assim para nós? Será que é isto que talvez suceda no labor interno que desenvolvemos, na vida espiritual que se ativa em nós?
Os ingredientes estão lá todos, mas ainda não é suficiente. O quotidiano é opaco, demasiado preso àquilo que conhecemos, que nos é familiar. «De Nazaré pode vir alguma coisa de bom?» (João 1, 46), perguntamos incessantemente. Consumimo-nos na espera difusa daquilo que virá, preferimos sempre o distante ao próximo, o futuro ao presente, e tornamos a existência uma ficção de si própria.
Mas se não é agora, é quando? Se a graça não atravessa precisamente estes instantes cinzentos e contraditórios, esta montanha de emoções dispersas, este movimento que nos parece demasiado concreto, demasiado denso, demasiado obtuso, dificilmente a graça se manifestará de outra forma.
Também aqui o caso de Henri Cartier-Bresson nos pode ajudar de novo. Porque a sua história é, no fim de contas, mais complexa. A curadora de uma grande mostra sobre a sua obra trouxe à luz elementos novos relativos ao seu modo de trabalhar, até então desconhecidos.
Aquilo que a sua investigação nos mostrou é que, mais do que um «instante decisivo», trata-se com mais verdade de uma «escolha decisiva», pois o fotógrafo fazia vários disparos da mesma cena, por vezes em grande número, mas escolhia só um e eliminava os outros.
O instante decisivo não é, então, um momento exterior irrepetível, nem essa epifania que encontra espaço num fugitivo piscar de olhos: é um instante, qualquer instante, que eu faço tornar decisivo, por nele investir deliberadamente a minha esperança.
José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 27.09.2015 no SNPC
O papa acentuou este sábado, em Filadélfia, a necessidade de os leigos e, em particular, as mulheres, serem encorajados a uma participação mais ativa da Igreja, tendo citado a pergunta que o papa Leão XIII dirigiu a Santa Catarina Drexel: «E tu, que farás?».
«Sabemos que o futuro da Igreja, numa sociedade em rápida mudança, exigirá – e já agora o exige – um compromisso cada vez mais ativo por parte dos leigos», afirmou Francisco na missa, a que presidiu, com o clero, religiosos e religiosas do estado norte-americano da Pensilvânia.
As palavras endereçadas a Santa Catarina Drexel (1858-1955, canonizada em 2000 por S. João Paulo II), oriunda de Filadélfia, recordaram-lhe que «cada cristão recebeu, em virtude do Batismo, uma missão», sublinhou o papa.
«"E tu, que farás?" É significativo que estas palavras do papa já idoso tivessem sido dirigidas a uma mulher leiga», apontou Francisco, acrescentando que «um dos grandes desafios que a Igreja tem pela frente» é «promover, em todos os fiéis, o sentido de responsabilidade pessoal pela missão».
Esta tarefa «exige criatividade para se adaptar às situações em mudança, para levar avante a herança do passado, não primariamente mantendo estruturas e as instituições que também são úteis, mas acima de tudo estando disponíveis para as possibilidades que o Espírito abre».
O propósito de integrar mais os leigos na missão da Igreja não significa, segundo o papa, que o clero venha a «transcurar a autoridade espiritual» que lhe foi confiada, «mas discernir e usar sabiamente os múltiplos dons que o Espírito concede à Igreja».
«De forma particular, significa valorizar a contribuição imensa que as mulheres, leigas e consagradas, deram e continuam a oferecer na vida das nossas comunidades», apontou Francisco.
O repto que Leão XIII lançou a Santa Catarina Drexel impeliu-a «a pensar no trabalho imenso que havia para realizar e a dar-se conta de que também ela era chamada a fazer a sua parte».
«Quantos jovens, nas nossas paróquias e escolas, têm os mesmos ideais elevados, generosidade de espírito e amor a Cristo e à Igreja! Perguntemo-nos: somos nós capazes de os pôr à prova? Somos capazes de os guiar e ajudar a fazer a sua parte?», perguntou o papa ao clero e religiosos.
Um dos muitos campos de ação da Igreja em que a contribuição de voluntários leigos é imprescindível consiste no apoio a pessoas detidas; Francisco, que como arcebispo de Buenos Aires era visitante frequente de prisões, encontrou-se este domingo, em Filadélfia, com reclusos do Instituto Correcional de Curran-Fromhold.
«[Cristo] vem ao nosso encontro para nos calçar de novo com a dignidade dos filhos de Deus. Quer ajudar-nos a recompor o nosso andar, retomar o nosso caminho, recuperar a nossa esperança, restituir-nos a fé e a confiança. Quer que regressemos às estradas da vida, sentindo que temos uma missão; que este tempo de reclusão nunca foi sinônimo de expulsão», declarou.
Depois de afirmar que é «penoso» constatar como por vezes «se geram sistemas prisionais que não procuram curar as chagas, curar as feridas, criar novas oportunidades», o papa acentuou que o período na prisão «só pode ter um objetivo: estender a mão para retomar o caminho, estender a mão para que ajude à reintegração social».
«Todos temos alguma coisa de que ser limpos, purificados. Que a consciência disto nos desperte para a solidariedade, para nos apoiarmos e procurarmos o melhor para os outros», assinalou Francisco.
Também neste domingo, último dia da visita aos EUA, o papa reuniu-se, à margem do programa da visita previamente divulgado, com três mulheres e dois homens que foram abusados sexualmente quando eram crianças.
«As palavras não podem exprimir cabalmente o meu lamento pelo abuso que sofrestes. Vós sois filhos preciosos de Deus que deveriam sempre esperar a nossa proteção, o nosso cuidado e o nosso amor. Lamento profundamente que a vossa inocência tenha sido violada por aqueles em quem confiastes. Em alguns casos a confiança foi traída por membros da vossa própria família, noutros casos por padres que tinham a responsabilidade sagrada pelo cuidado da alma. Em todas as circunstâncias, a traição foi uma terrível violação da dignidade humana», disse Francisco às vítimas, em declaração divulgada pela Rádio Vaticano.
«Para aqueles que foram abusados por um membro do clero, lamento profundamente as vezes que vós ou a vossa família falou do caso para reportar o abuso, mas não vos ouviram ou acreditaram. Por favor, saibam que o Santo Padre ouve-vos e acredita em vós. Lamento profundamente que alguns bispos tenham falhado na sua responsabilidade de proteger as crianças. É muito perturbador saber que, em alguns casos, houve bispos que foram mesmo abusadores. Peço-vos que sigam o caminho da verdade até onde ele conduzir», afirmou.
«Peço-vos humildemente, e a todos os sobreviventes dos abusos, que fiquem connosco, que fiquem com a Igreja, e que juntos, como peregrinos no percurso da fé, possamos encontrar o nosso caminho para o Pai», concluiu Francisco [tradução SNPC].»
No encontro que teve, a seguir, com prelados, Francisco prometeu que «todos os responsáveis pelos abusos sexuais a menores serão punidos», e declarou que sentia «vergonha» que esses crimes.
Missa do Papa com clero, religiosos e religiosas - Filadélfia, 26.9.2015 (publicado no SNPC 27.09.2015)
«Apesar de tantas dificuldades que afligem hoje as nossas famílias, não nos esqueçamos, por favor, disto: as famílias não são um problema, são sobretudo uma oportunidade; uma oportunidade que temos de cuidar, proteger, acompanhar.»
Este foi um dos apelos que o papa lançou às famílias reunidas na catedral de Nossa Senhora da Assunção, em Santiago, no último dia da viagem a Cuba(22/09/2015).
Selecionamos algumas das passagens da intervenção do papa Francisco, com subtítulos acrescentados pela redação da página do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal.
O casamento, colheita de uma vida doada
As bodas são momentos especiais na vida de muitos. Para os "mais veteranos", pais, avós, é uma ocasião para recolher o fruto da sementeira. Dá alegria à alma ver os filhos crescerem, conseguindo formar o seu lar. É a oportunidade de verificar, por um instante, que valeu a pena tudo aquilo por que se lutou. Acompanhar os filhos, apoiá-los, incentivá-los para que possam decidir-se a construir a sua vida, a formar a sua família, é um grande desafio para todos os pais.
O casamento, festa da alegria e da esperança
Os recém-casados, por sua vez, encontram-se na alegria. Todo um futuro que começa; tudo tem «sabor» a coisas novas, a esperança. Nas bodas, sempre se une o passado que herdamos e o futuro que nos espera. Sempre se abre a oportunidade de agradecer tudo o que nos permitiu chegar até ao dia de hoje com o mesmo amor que recebemos.
Jesus, presença à (nossa) mesa
É no seio dos nossos lares que Ele [Jesus] incessantemente continua a inserir-Se, e deles continua a fazer parte. É interessante observar como Jesus se manifesta também nos almoços, nos jantares. Comer com diferentes pessoas, visitar casas diferentes foi um lugar que Jesus privilegiou para dar a conhecer o projeto de Deus. Vai à casa dos seus amigos – Lázaro, Marta e Maria -, mas não é seletivo: não lhe importa se são publicanos ou pecadores, como Zaqueu. (...) Bodas, visitas aos lares, jantares: algo de «especial» hão de ter estes momentos na vida das pessoas, para que Jesus prefira manifestar-se aí.
A refeição, hora sagrada
Lembro-me que, na minha diocese anterior, muitas famílias me explicavam que o único momento que tinham para estar juntos era, normalmente, o jantar, à noite, quando se voltava do trabalho e as crianças terminavam os deveres da escola. Era um momento especial de vida familiar. Comentava-se o dia, aquilo que cada um fizera, arrumava-se a casa, guardava-se a roupa, organizavam-se as tarefas principais para os dias seguintes. São momentos em que uma pessoa chega também cansada, e pode acontecer uma ou outra discussão, um ou outro "litígio". Jesus escolhe estes momentos para nos mostrar o amor de Deus, Jesus escolhe estes espaços para entrar nas nossas casas e ajudar-nos a descobrir o Espírito vivo e atuante nas nossas realidades quotidianas.
Família, escola de vida
É em casa onde aprendemos a fraternidade, a solidariedade, o não ser prepotentes. É em casa onde aprendemos a receber e agradecer a vida como uma bênção, e aprendemos que cada um precisa dos outros para seguir em frente. É em casa onde experimentamos o perdão, e somos continuamente convidados a perdoar, a deixarmo-nos transformar. Em casa, não há lugar para "máscaras": somos aquilo que somos e, duma forma ou doutra, somos convidados a procurar o melhor para os outros. Por isso, a comunidade cristã designa as famílias pelo nome de igrejas domésticas, porque é no calor do lar onde a fé permeia cada canto, ilumina cada espaço, constrói comunidade; porque foi em momentos assim que as pessoas começaram a descobrir o amor concreto e operante de Deus.
Sem família, a vida torna-se vazia
Em muitas culturas, hoje em dia, vão desaparecendo estes espaços, vão desaparecendo estes momentos familiares; pouco a pouco, tudo leva a separar-se, a isolar-se; escasseiam os momentos em comum, para estar juntos, para estar em família. Assim não se sabe esperar, não se sabe pedir licença ou desculpa, nem dizer obrigado, porque a casa vai ficando vazia: vazia de relações, vazia de contatos, vazia de encontros. (...) Sem família, sem o calor do lar, a vida torna-se vazia; começam a faltar as redes que nos sustentam na adversidade, alimentam na vida quotidiana e motivam na luta pela prosperidade.
A família ensina a ser para os outros
A família salva-nos de dois fenômenos atuais: a fragmentação (a divisão) e a massificação. Em ambos os casos, as pessoas transformam-se em indivíduos isolados, fáceis de manipular e controlar. Sociedades divididas, quebradas, separadas ou altamente massificadas são consequência da ruptura dos laços familiares, quando se perdem as relações que nos constituem como pessoa, que nos ensinam a ser pessoa. A família é escola da humanidade, que ensina a pôr o coração aberto às necessidades dos outros, a estar atento à vida dos demais. Apesar de tantas dificuldades que afligem hoje as nossas famílias, não nos esqueçamos, por favor, disto: as famílias não são um problema, são, sobretudo, uma oportunidade; uma oportunidade que temos de cuidar, proteger, acompanhar.
Família, centro e futuro de humanidade
Discute-se muito sobre o futuro, sobre o tipo de mundo que queremos deixar aos nossos filhos, que sociedade queremos para eles. Creio que uma das respostas possíveis se encontra pondo o olhar em vós: deixemos um mundo com famílias. É certo que não existe a família perfeita, não existem esposos perfeitos, pais perfeitos nem filhos perfeitos, mas isso não impede que sejam a resposta para o amanhã. Deus incentiva-nos ao amor, e o amor sempre se compromete com as pessoas que ama. Portanto, cuidemos das nossas famílias, verdadeiras escolas do amanhã. Cuidemos das nossas famílias, verdadeiros espaços de liberdade. Cuidemos das nossas famílias, verdadeiros centros de humanidade.
Eucaristia, Pão de Vida das famílias
Não quero concluir sem fazer menção da Eucaristia. Tereis notado que Jesus, como espaço do seu memorial, quis utilizar uma ceia. Escolhe como espaço da sua presença entre nós um momento concreto da vida familiar; um momento vivido e compreensível a todos: a ceia. A Eucaristia é a ceia da família de Jesus, que, de um extremo ao outro da terra, se reúne para escutar a sua Palavra e alimentar-se com o seu Corpo. Jesus é o Pão de Vida das nossas famílias, quer estar sempre presente, alimentando-nos com o seu amor, sustentando-nos com a sua fé, ajudando-nos a caminhar com a sua esperança, para que possamos, em todas as circunstâncias, experimentar que Ele é o verdadeiro Pão do Céu.
Pedir pela Igreja e pelas famílias
Daqui a alguns dias, participarei juntamente com famílias do mundo inteiro no Encontro Mundial das Famílias e, dentro de um mês, no Sínodo dos Bispos, cujo tema é a família. Convido-vos a rezar especialmente por estas duas intenções, para que saibamos todos juntos ajudar-nos a cuidar da família, para que saibamos cada vez mais descobrir o Emanuel, o Deus que vive no meio do seu povo fazendo das famílias a sua morada.
Papa Francisco
Edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 22.09.2015 no SNPC
Ao que parece, durante anos, o compositor John Cage sondou a possibilidade de elaborar uma obra completamente silenciosa, mas impedia-o duas coisas: a dúvida se uma tarefa assim não estaria, desde logo, votada ao fracasso, porque tudo é som; e a convicção de que uma composição tal seria incompreensível no espaço mental da cultura do Ocidente. Contudo, encorajado pelas experiências que se realizavam já nas artes visuais, construiu a sua peça intitulada 4’33’’.
A proposta de Cage era completamente insólita: os músicos deviam subir ao palco, saudar o público, sentar-se ao instrumento e permanecer, em silêncio, por quatro minutos e trinta e três segundos, até que, de novo, se levantassem, agradecessem à plateia e saíssem. Na assistência instalou-se a polémica e choveram as vaias. Mas ao longo de toda a sua vida, John Cage referiu-se a essa peça com sentida reverência: «A minha peça mais importante é essa silenciosa; não passa um só dia que não me sirva dela para a minha vida e para tudo o que faço. Recordo-a sempre que tenho de escrever uma nova peça».
Quando penso no contributo que a experiência poética ou religiosa possa dar num futuro próximo à humanidade, penso francamente que mais até do que a palavra será a partilha desse património imenso que é o silêncio. Na palavra fazemos a experiência da diferenciação, experiência certamente fundante, mas também ela parcial e insuficiente. Precisamos do auxílio de outra ciência, a que recorremos pouco: o silêncio. Isaac de Nínive, lá pelos finais do século VII, ensinava: “A palavra é o órgão do mundo presente. O silêncio é o mistério do mundo que está a chegar”. Creio que é absolutamente urgente revisitarmos com outro apreço os territórios dos nossos silêncios e fazermos deles lugares de troca, de diálogos, de encontros. O silêncio é um instrumento de construção, é uma lente, uma alavanca.
As nossas sociedades investem tanto na construção de competências na ordem da palavra (e pensemos como a escolarização está ao serviço da capacitação dos indivíduos em ordem a um funcionamento eficaz com a palavra) e tão pouco nas competências que operam com o silêncio. Somos analfabetos do silêncio e esse é um dos motivos porque não sabemos viver na paz.
O silêncio é um traço de união mais frequente do que se imagina, e mais fecundo do que se julga. O silêncio tem tudo para se tornar um saber partilhado sobre o essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar, para cada um enquanto indivíduo e para todos enquanto comunidade, os modos possíveis de nos reinventarmos. Mas para isso precisamos de uma iniciação ao silêncio, que é o mesmo que dizer uma iniciação à arte de escutar.
Na sociedade da comunicação há um défice de escuta. Numa cultura de avalanche como a nossa, a verdadeira escuta só pode configurar-se como uma re-significação do silêncio, um recuo crítico perante o frenesim das palavras e das mensagens que a todo o minuto pretendem aprisionar-nos. A arte da escuta é, por isso, um exercício de resistência. Ela estabelece uma descontinuidade em relação ao real aparente, à sucessão ociosa do discurso, à enxurrada que a telenovelização do quotidiano (seja ele político, económico ou cultural) comporta. A escuta constitui uma cesura, um corte simbólico, uma deslocação.
Pense-se em como o silêncio mostra o patrimônio de uma amizade. E a pergunta é: como percebemos que dois desconhecidos são amigos? Pela forma como conversam? Certamente. Pelo modo como se riem? Claro que sim. Mas ainda mais porque nitidamente acolhem o silêncio um do outro. Entre conhecidos o silêncio é um embaraço, sentimos imediatamente a necessidade de fazer conversa, de ocupar o espaço em branco da comunicação. Com os amigos o silêncio nada tem de embaraçoso. O silêncio é um vínculo que une.
José Tolentino Mendonça
In "Expresso", 13.6.2015
O diálogo é o único caminho para se conquistar a efetivação da paz, em todos os níveis, instâncias e segmentos da sociedade. No fundamento do diálogo, está o enorme desafio do entendimento. Os desajustes nas dinâmicas que levam ao entendimento prejudicam a busca pela verdade, não possuída, em caráter absoluto, por ninguém - por nenhuma autoridade religiosa ou sistema político-ideológico. Só se aproxima da verdade quem dialoga. Essa constatação se aplica na administração de situações que ocorrem no ambiente doméstico, nas que se relacionam ao ambiente profissional, ao exercício da cidadania e também nas grandes tratativas de relações políticas internacionais. Buscar a paz acima de tudo é abrir-se ao diálogo. Só o entendimento conquistado pelo diálogo possibilita o avanço na direção da paz. O distanciamento desse dom de Deus é resultado da incompetência para o diálogo. Nesse ponto, há um detalhe de grande importância a ser observado para que o dialogar permita o entendimento e, consequentemente, o aproximar-se da verdade. Trata-se da superação das visões de mundo estreitas, que impossibilitam os avanços necessários para se alcançar a paz a partir do diálogo.
É interessante pensar, como exemplo que clarifica essa análise, em um conflito de ordem familiar, baseado nas diferenças entre gerações. A velocidade das mudanças culturais e tecnológicas que afetam de modo mais intenso os jovens, localizando-os numa dinâmica muito peculiar de vida e de compreensão, não raramente colide com as visões, posturas e escolhas da geração adulta. O convívio de diferentes perspectivas requer boa administração para que o diálogo não fique comprometido e, consequentemente, falte paz às famílias. A competência para o diálogo é necessária na articulação do conhecimento, no uso das tecnologias e na compreensão das mudanças culturais.
Caminhar rumo à paz, a partir do diálogo que leva ao entendimento, exige sensibilidade social e política. O tipo de orientação que se dá à vida no exercício das próprias responsabilidades tem consequências que podem ser graves. Pode-se avaliar, entre as diversas e importantes situações, a reunião de um grupo em determinado parlamento. Se a visão de mundo desses representantes do povo for equivocada, se agirem orientados a partir de interesses cartoriais - o que indica pouco compromisso com o interesse do povo -, somente serão capazes de oferecer respostas medíocres diante das muitas necessidades sociais.
Concretamente, pode-se pensar no projeto de reforma política desenvolvido no ambiente parlamentar sem a devida escuta da sociedade civil e, também, na proposta de diminuição da maioridade penal. Iniciativas que escancaram as limitações dos que se posicionam e votam de modo favorável a essas mudanças. A consequência é desastrosa, atrasa processos e inviabiliza o desenvolvimento da sociedade. O que se passa na esfera política não é muito diferente do que ocorre no âmbito religioso. O horizonte de compreensão, muitas vezes, torna-se estreito pela rigidez, pela hegemonia do conservadorismo ou pela falta de preparo intelectual. É alto o preço pago por se “rifar” projetos e pessoas - o outro que deve estar na ponta do diálogo que salva.
A referência ao diálogo como caminho para a paz emoldura o conjunto de outros âmbitos e incursões que precisam permanentemente ser bem tratados. Do diálogo entre diferentes culturas, passando pelo respeito aos direitos humanos, a responsabilidade no cuidado ambiental - livre da ganância, em parâmetros de verdadeira sustentabilidade -, até o primordial combate à pobreza, como condição indispensável na construção e conquista da paz.
Curioso é que o instrumento contemporâneo das redes sociais e toda a tecnologia digital à disposição, eivadas de informações, podem ter sua força de serviço enfraquecida e comprometida por conta da incompetência individual de dialogar em busca da verdade. Mal maior forma-se quando desmorona o mais importante santuário de cada pessoa: a sua consciência. Esse importante lugar para o diálogo, em função de interesses, com o objetivo de elaborar justificativas e de esconder razões espúrias, torna-se ambiente em que mentiras ganham aparência de verdades. Corrompida a consciência, não haverá mesmo saída para a paz.
A incompetência para o diálogo que constrói a paz impossibilita que sejam alcançadas as muitas soluções necessárias, induz a sociedade a pensar, erroneamente, que a solução de suas crises depende apenas dos números e cifras. Perpetua uma dinâmica cultural da dependência e da mediocridade. É hora de investir na educação para o diálogo a partir da convicção incontestável de que ele é o caminho para a paz.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte
«No último dia de janeiro de 1915, sob o signo de Aquário, num ano de uma grande guerra, na fronteira com a Espanha, à sombra dos montes franceses, vim ao mundo. Feito à imagem de Deus, e por isso livre por natureza, fui todavia escravo da violência e do egoísmo, à imagem do mundo em que nasci. Aquele mundo era o quadro do inferno, cheio de homens como eu, que amavam Deus e contudo o odiavam, e, nascidos para o amar, viviam no temor e no desespero de apetites contrários.» Assim escreveu Thomas Merton no início daquele que é, talvez, o seu trabalho mais conhecido, “A montanha dos sete patamares”, de 1948, evocando o dia do seu nascimento, em Prades, de Owen, neozelandês, e de Ruth Jenkins, norte-americana, pintores “globe-trotter”.
Um aniversário a assinalar por vários motivos que encheram uma vida de apenas 53 anos mas que foi intensa e original, como a sua espiritualidade. Escritor que evoca o visionário William Blake, Merton foi protagonista de um corajoso compromisso pela paz (fonte de diatribes com os superiores, depois valorizado por João XXIII e Paulo VI, com quem trocou correspondência), e também ponto de referência para o movimento não violento pelos direitos civis, preconizando uma paz fundada em argumentos evangélicos e confiada ao testemunho («uma parte essencial da Boa Nova é que as medidas não violentas são mais fortes do que as armas: com armas espirituais a Igreja primitiva conquistou todo o mundo romano»), que permanece hoje com toda a atualidade, como mostra o seu ensaio “Paz na era pós-cristã”.
Antes, ainda, Merton foi sobretudo um monge inquieto, mas que transformou o eremitério, com a pena, num púlpito sem fronteiras, e, com a oração, num tabernáculo onde guardava, juntamente com a Eucaristia, cada irmão; um trapista defensor da vida monástica eremítica e comunitária, convicto de «ter viva no mundo moderno a experiência contemplativa e manter aberta para o homem tecnológico dos nossos dias a possibilidade de recuperar a integridade da sua interioridade mais profunda». Até transformar a sua própria parábola numa narrativa incessante da procura de Deus, vivendo-a entre solidão e comunhão, contemplação e ação.
Além disso, Merton é recordado como homem do ecumenismo e do diálogo, respeitador das diferenças e concentrado no essencial. No diálogo inter-religioso, mais explorativo que funcional, foi pronto a abrir-se a hinduístas, budistas, judeus, islâmicos, a procurar as fontes vitais das outras religiões («se me afirmo como católico apenas negando tudo que é muçulmano, judeu, protestante, hindu, budista, no fim descobrirei que me não resta muita coisa com que me possa afirmar como católico. Certamente não terei o sopro do Espírito com o qual possa afirmá-lo»), e com uma forte atenção às expressões orientais: vejam-se as suas reflexões reunidas por William H. Shannon (“A experiência interior”), ou a recolha em que reinterpreta um dos pais do taoismo (“A via de Chuang-Tzu”).
Merton distingue-se também pelo diálogo com os não crentes, declinado na capacidade de ver sinais de «fé inconsciente» nos ateus, ou de «ateísmo inconsciente» nos crentes («o grande problema é a salvação daqueles que, sendo bons, pensam que já não têm necessidade de serem salvos e imaginam que a sua tarefa é tornar os outros bons como eles»). Uma vida contemplativa, a sua, nunca isolada da realidade. E uma vida consagrada concebida como porta aberta ao amor.
Ficando órfão ainda criança, com o irmão John Paul (perde a mãe em 1921 e o pai dez anos depois), Thomas passa parte da infância nos EUA, e da sua formação na França e na Inglaterra passa a Nova Iorque em 1934, completando os estudos na Universidade de Columbia. Chegado ao catolicismo em 1938, deixando para trás a busca de prazer («a minha conversão foi ajuda de Deus, como cada conversão, e da minha parte foi estudo e procura»), três anos depois, durante a Segunda Guerra Mundial, entra na abadia de Nossa Senhora do Getsémani, no estado do Kentucky, entre os Cistercienses de Estrita Observância. Em 1949 é ordenado padre.
Uma “meta” após um percurso marcado por estudos, viagens, desorientações, encontros, pelo contínuo interrogar-se sobre o sentido da vida, até à atração pelo claustro. Um percurso cujas etapas se refletem em muitas páginas, por vezes atormentadas, mas orientadas na direção da Graça, espalhadas entre “Nenhum homem é uma ilha” (1953), “O sinal de Jonas” (1952), “Sementes de destruição” (1966), sem esquecer “Sementes de contemplação” (1949), e outros escritos, onde a vida contemplativa nunca é fuga do mundo, mas entrada num diálogo profundo com o ser humano.
Enquanto se aguarda que um editor se disponibilize a publicar a versão integral dos seus diários, poder-se-á ler “Merton na intimidade: sua vida em seus diários”, organizado pelos irmãos Patrick Hart e Jonathan Montaldo, síntese que segue o percurso traçado pelo diário que Merton escreveu desde os 16 anos até à morte.
Desde o apartamento no n.º 35 de Perry Street, em Manhattan, e das câmaras de abrigo em Miami e Cuba, até ao “bungalow” de Banguecoque, onde um ventilador o fulminou, a 10 de dezembro de 1968 (encontrava-se lá para um congresso sobre monaquismo, e, como documenta o “Diário da Ásia”, estava bem preparado), passando pelos espaços a ele familiares na abadia do Getsémani (a enfermaria, a cripta dos livros raros, onde escrevia, o depósito escolhido como dormitório), a sequência irradia os pensamentos do monge «viandante de reinos» nascido há cem anos. Tão distante e tão próximo.
Marco Roncalli
In "Avvenire"Começou dia 20 deste mês (sexta-feira) a "Semana de Mobilização pela Reforma Política Democrática". Seu objetivo é conseguir um 1,5 milhão assinaturas para a proposição do Projeto de Lei de Iniciativa Popular pela Reforma Política e Eleições Limpas.
Esse movimento de apoio ao projeto foi lançado no final de agosto do ano passado, pela Conferên-cia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), pela Plata-forma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político e por mais 98 entidades da sociedade civil. Poucos dias depois – isto é, a 9 de setembro de 2014 –, numa entrevista que dei à Imprensa, a Arquidiocese de São Salvador da Bahia anunciou sua adesão a esse Projeto de Lei.
Para quem ainda não tomou conhecimento, a Reforma Política Democrática defendida por essas entidades pode ser resumida em quatro pontos: 1) financiamento das campanhas dos candidatos; 2) eleição em dois turnos: um para se votar em um programa e outro, para se votar em uma pessoa; 3) aumento de candidaturas de mulheres para cargos eletivos; 4) regulamentação do Artigo 14 da Constituição, com o objetivo de se melhorar a participação do povo brasileiro nas decisões mais importantes, por meio de Projetos de Lei de iniciativa popular, de plebiscitos e de referendos, mesclando a democracia representativa com a democracia participativa.
Os pontos defendidos pelas entidades e grupos que assumiram essa proposta poderiam, naturalmente, ser diferentes, em maior número ou mais amplos. No entanto, a proposta final foi a síntese a que elas chegaram, depois de inúmeras reuniões e debates. Se tais pontos não resolvem todos os problemas que nos preocupam no momento atual, servirão, no entanto, para darmos um importante passo para um novo tempo. As notícias que entram diariamente em nossas casas, a respeito do desvios de enormes quantidades de dinheiro para o financiamento de eleições, nos mostram que é melhor procurarmos o possível, já que o ideal é mais difícil. Afinal, como diziam os romanos, há 2 mil anos: "O ótimo é inimigo do bom". No futuro, outros passos poderão ser dados para o aperfeiçoamento de nossa Democracia. Não exagero ao afirmar que, nesse campo, a CNBB poderá oferecer uma preciosa contribuição, como a deu no tempo da Constituinte, com o texto "Por uma nova ordem constitucional".
É bom frisar que o Projeto de Lei que está esperando assinaturas – a sua, inclusive –, para poder ser apresentado em Brasília, não está vinculado a nenhum partido político, embora não haja restrição ao apoio de bons políticos. Os que já assinaram demonstraram estar convictos de que uma verdadeira reforma política melhorará a realidade política brasileira e possibilitará a realização de várias outras reformas necessárias ao país como, por exemplo, a tributária.
Quem quiser conhecer melhor o Projeto de Lei em questão, pode acessá-lo pela internet, onde pode ser baixado, inclusive, o Formulário de coleta de assinaturas e o endereço para onde deverá ser encaminhado. Por ele, também pode ser obtido e assinado em sua Paróquia. Em qualquer circunstância, é importante que você tenha em mãos o título de eleitor porque, além da assinatura, você deverá anotar dados como número desse documento, a zona, a seção e o nome do município onde você vota.
Enfim, como lembrou Dom Joaquim Mol, Bispo Auxiliar de Belo Horizonte e coordenador da Comissão da CNBB para o Acompanhamento da Reforma Política, "Precisamos fazer isso com alegria, com esperança, iluminados pela nossa fé em Jesus Cristo, que veio para que todos tenham vida em abundância. Por isso precisamos rezar e celebrar nesta intenção em nossas comunidades".
Mãos à obra, pois!
CNBB, 20-03-2015.
*Dom Murilo S. R. Krieger é arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil.
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