Ao invés de nos contentarmos apenas com o que vem das ciências humanas, ou de qualquer ciência, ganharíamos todos se nos ocupássemos mais da literatura. Literatura como conhecimento. Esbarro numa passagem de Dostoievski, retirada d’ Os Irmãos Karamázov, um livro, essa é a definição de um clássico, que não tem como ser esgotado. A obra é conhecida, foi publicada nas décadas finais do século XIX e apresenta, com maestria literária apaixonada, uma discussão que, vinda de mais longe, atravessa a história espiritual do Ocidente. O desejo da suficiência humana. Diz o texto: “O homem alcançará sua grandeza imbuindo-se do espírito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem-deus. Vencendo, a cada hora, com sua vontade e ciência, uma natureza já sem limites, o homem sentirá assim e a cada hora um gozo tão elevado que este lhe substituirá todas as antigas esperanças no gozo celestial.” Se o cerne da modernidade é esse desejo de um domínio absoluto, o que a Ivan Karamázov parece evidente, não é menos verdade que o nosso personagem é atormentado pela percepção de que esse projeto talvez venha a se apresentar com uma face inversa à esperada. Estamos diante de um drama histórico, com forte significado na Rússia de então, e de um problema com largo e permanente alcance metafísico.
O projeto assinalado na citação acima se torna dia a dia mais real e as esperanças depositadas nas tecnologias de alto impacto social e humano são crescentes. O sonho de um homem-deus, para usar a expressão do autor, é uma utopia bem desejada, uma esperança acalentada no silêncio dos laboratórios. Entretanto o nosso receio diante desse cenário não é menos real. Não é de modo algum evidente que os benefícios esperados do incremento de nosso poder não tragam conseqüências capazes de relativizar, e muito, a esperança depositada no desenvolvimento tecnológico. Assim, não é difícil nos reconhecermos na temática do texto e basta um pouco de atenção ao que se passa à nossa volta para aceitar que, como é costume dizer hoje, somos – ou deveríamos ser - todos Ivan Karamázov.
Tratar o problema na vivacidade e na polifonia do texto literário dá margem a uma densidade que ultrapassa de muito a limitação e a assepsia própria de textos mais próximos das normas que imperam nas ciências. Vale a pena conferir.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Se falamos tanto de ética é porque, na prática, ela se tornou rara. Estivesse mais presente, não falaríamos tanto. É o que corre por aí. Pode ser, o que não quer dizer que se silenciássemos a ética estaria de volta. Não, é preciso discutir, clarear, debater. Não é exagero dizer que onde houver vida humana haverá uma dimensão ética. Ética tem a ver com valores, com o que vale, com o que nos guia, já que do nosso acervo instintivo recebemos apenas uma meia instrução. A esse quase silêncio da natureza em nós, acrescentamos o que defendemos, o que acreditamos, o que consideramos que torna a vida digna, valiosa, e, na medida do que for possível, feliz. Ética brota da liberdade, esse intervalo, essa incerteza onde nos constituímos através de nossas ações. E chamamos de ação aquilo que, tendo feito, poderíamos não fazer. Ou tendo optado por não fazer, poderíamos ter feito. Supressa essa dimensão e aceita a postulação de que somos determinados inequivocamente por algum fator, já não cabe falar em vida ética.
Nesse sentido, apenas nós, os humanos, agimos, apenas de nós pode ser cobrada responsabilidade. Responsabilizar a natureza pela ocorrência de tsunamis ou culpar a vaca do vizinho pela destruição da nossa horta é mera tolice. Ao contrário, cabe a nós seja cercar melhor a horta, seja reconhecer o vínculo entre nossas ações e o que se passa na natureza. Se agimos e nossas ações estão ligadas a valores, mesmo que isso nos passe despercebido, vale a pena que nos dediquemos a explicitar valores, os que defendemos e os defendidos pelos nossos opositores. Já é um bom começo notar a existência de valores ali onde os acontecimentos pareciam decorrer de um destino. Mas valores são tudo? A adesão a valores, mesmo os valores que reconhecemos como justos ou sempre preferíveis, é tudo? Talvez não, mas isso já é assunto para a próxima coluna.
Ricardo Fenati
Equipe do site
Mapas, esses mapas singulares que são os existenciais, são decisivos porque o que realmente importa, à maneira dos tesouros, quase sempre está mais do que escondido. É a existência que desconhecemos, é a singular estranheza da vida que, desde sempre, tem dado origem a mapas. Se os mapas nos ajudam, são eles que, ao mesmo tempo, nos fazem reconhecer a supremacia do território sobre o qual se debruçam, permanecendo como uma indicação que conta com a porção de aventura que cabe a cada um de nós.
Mapas estão nas histórias, ou seja, nos mitos, na poesia, nos romances, nas artes, na religião e, às vezes, na filosofia. O que vem desses campos é um ensinamento que respeita a incerteza de que somos feitos, a fragilidade que compartilhamos e as esperanças presentes nos nossos corações. Daí sua perenidade, daí a sua onipresença. Mas o acolhimento da incerteza, da fragilidade e da esperança, que lembram, cada uma a seu modo, a nossa finitude, exige dos humanos e das culturas a que pertencem uma disposição para a coragem – ou para o desejo - que nem sempre está à mão. Por isso, precisamos de histórias.
É disso que as histórias falam, da inevitável e, muitas vezes, involuntária partida de um estado de conforto, da imersão num deserto que apenas muito lentamente aprendemos a ver como uma travessia e dos atos de enfrentamento que de nós são esperados. É preciso lembrar que tudo isso se passa à meia luz e na infinita diversidade que nos constitui a todos?
Histórias espelham a vida, permitem que nos reconheçamos, geram significado e beleza. Sem histórias, sem acesso ao acervo simbólico que elas guardam, ficamos privados dos instrumentos que permitem a chegada a nós mesmos.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Prometi, na coluna passada, tratar de uma pergunta que, vejo agora, excede de muito o que posso fazer. O padecimento nos humaniza? Era essa a pergunta, a dúvida sobre o que nos humaniza. E o que está em jogo não é simples.
Há os que acham que nos humanizamos por nós mesmos, autoartífices completos que podemos ser. A recusa, aqui presente, de uma transcendência que venha, de alguma forma, a se sobrepor à cena humana é uma temática antiga, celebrada nos mitos muito antes de ser objeto da reflexão na modernidade. Voltados sobre nós mesmos e cortados os laços com qualquer alteridade, seríamos capazes, enfim, de estabelecer o melhor mundo possível, ou, para alguns, o melhor dos mundos. Obtida a transparência plena, não caberia falar de padecimento, de uma zona que permanecesse velada. Mesmo que difuso ou inconfessado, esse mote está presente na contemporaneidade.
Há os que acham, e esse é outro lado, que somos, pensando nas questões mais radicais, os que escutam, não os que fabricam. A existência não chega até nós como uma tela branca, à espera da nossa digitação. Chega ao modo de um rumor de fundo, propondo perguntas que, como marcos, delimitam, de forma obscura ou sombreada, o terreno a que pertencemos, a morada que recebemos, o padecimento a que estamos circunscritos. E, nesse caso, cabe a nós o ofício da atenção, a convivência com a interrogação e com o esforço continuado da resposta. O rio corre, é certo, mas a fonte permanece oculta. Disso brotam os mitos, as artes, a religião e a filosofia, saberes inseparáveis da incerteza e da ambigüidade.
Se aceitarmos a pergunta lá de cima, resta saber a qual dos dois caminhos, que não precisam ser pensados a todo tempo como mutuamente excludentes, cabe a prioridade
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
O prometido era continuar a conversa sobre padecimento, mas como esbarrei numa oração da Etty Hillesum, que não do nosso tema, é ela que transcrevo. Data da manhã de um domingo, 12 de Julho de 1942 e está publicada no seu Diário, que cobre o período de 1941 a 1943, ano de sua morte no campo de concentração.
“São tempos temerosos, meu Deus. Esta noite, pela primeira vez, passei-a deitada no escuro de olhos abertos e a arder, e muitas imagens do sofrimento humano desfilavam perante mim. Vou prometer-te uma coisa, Deus, só uma ninharia: não irei sobrecarregar o dia de hoje com igual número de preocupações com relação ao futuro, mas isso custa um certo exercício. Cada dia já tem sua conta. Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência. Mas torna-se cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, que nós é que temos de te ajudar, e ajudando-te, ajudamo-nos a nós próprios. E esta é a única coisa que podemos preservar nestes tempos, e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus. E talvez possamos ajudar a pôr-te a descoberto nos corações atormentados dos outros. Sim, meu Deus, quanto às circunstâncias pareces não ter lá grande influência sobre elas, é “evidente que fazem parte indissolúvel desta vida”. Também não te chamo à responsabilidade por isso; tu é que podes mais tarde chamar-nos à responsabilidade. E quase a cada batida do coração, torna-se-me isto mais nítido: que tu não nos pode ajudar, que nós devemos ajudar-te e que a morada em nós onde tu resides tem de ser defendida até às últimas.”
Ps. O texto está na tradução portuguesa do Diário (Assírio & Alvim, Lisboa, 2009)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Não haverá qualquer coisa a ser recuperada sob essa palavra que já não usamos ou, quando o fazemos, nós a igualamos a sofrimento, que, imaginamos, é sempre algo a ser evitado? Padecer tem a ver com o que sentimos, com a presença em nós de alguma coisa sobre a qual não temos autoria ou mando, alguma coisa a que, talvez, pertençamos. Padecimento é a experiência existencial do que nos excede nesse mundo onde o eu, ou os eus, se esforçam por parecerem, sempre, senhores. Se algo se contrapõe ao padecimento, é, de um lado, a resistência a sentir, insensibilidade, e de outro a sofreguidão para agir. Nesses nossos dias tão avessos à dor, tão sequiosos de divertimento, tão afeitos à distração, tão seduzidos pelas certezas, cabe defender a existência de alguma positividade na experiência do padecimento, que é, entre outras coisas, uma experiência de insuficiência? Não falo do padecimento de ordem social, decorrente da injustiça ou da desigualdade. Esse permanece injustificado e inadmissível. Também não me refiro ao padecimento procurado ou cultivado, com o qual, ilusoriamente, nos protegemos dos combates que a vida solicita.
Falo do padecimento como uma virtude, capaz de resistir a essa vontade de não sofrer, esse sabor de estar sempre no comando da vida, essa recomendação para sorrir sempre. Não é difícil ver que há algo de patético na negação continuada do lugar da dor na vida humana. Negações desse tipo, mesmo que ruidosas, não são lá muito convincentes, o que nos obriga a prestar um pouco mais de atenção no lugar do padecimento na existência humana. Há padecimentos que nos humanizam? Voltaremos a isso na próxima coluna.
Para conversar na quinzena:
“Quando Deus soprou sobre meu barro para dar-lhe alma, deve ter soprado forte demais. Nunca pude refazer-me desse sopro divino, e continuei sempre oscilante como uma vela a vacilar entre dois mundos”. (Marie Noel)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Filosofia, como sabemos todos, é a junção numa palavra de duas fontes, amor e sabedoria, amor à sabedoria. Paixão pelo conhecimento, gosto pelo saber, confiança na nossa capacidade de decifrar, lançando mão da razão, do que se passa à nossa volta, o que se passa em nós mesmos. Distancia-nos do que é mais imediato, do que é costumeiro, da tradição e escolhe o caminho mais longo da dúvida, da análise, da compreensão. E, nesse sentido, mais do que uma disciplina, é uma atitude, um modo de estar no mundo. E com isso somos nós os que ganhamos, já que o mundo, quase nunca, se oferece a um primeiro olhar ou pode ser capturado na rotina que o reveste.
Entretanto, como tudo que leva a marca humana, nem mesmo um bem, ainda que inequívoco, se subtrai à possibilidade do descontrole, da desmedida. Despregadas das urgências do dia a dia, as ideias correm soltas e não poucas vezes, esquecidas do calor da vida, perdem-se narcisicamente em si mesmas ou num confronto meramente barulhento. Sem o sustento das travas de onde brotam e para onde devem retornar, a vida na sua infinita riqueza, flutuam num vácuo onde tudo é igualmente plausível. A distância, de início tão necessária, torna-se extravio estéril.
Diluído o nosso pertencimento às pessoas e ao mundo, esquecida nossa filiação originária, pouco ou nada pode contar o conhecimento. É de nossa mundaneidade, é dos laços que unem amorosamente à existência que brota e permanece o melhor de nós mesmos. É dessa terra fértil que também nasce o conhecimento no que ele encerra de mais legítimo e de mais libertário. Então, quem sabe não é hora de reequilibrar nossas duas fontes, philia e sofia?
Para discutir na quinzena:
“Longe de ter que salvar sua alma, o homem deve ganhá-la na paciência”.
(France Farago, a propósito de Kierkegaard)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola-BH
O que mesmo que nos impede de tomar a sério nossas reclamações sobre o atual formato do Natal? A julgar pelo que ouvimos, não estamos, não digo entediados, mas entristecidos, com a perspectiva do Natal que se aproxima? Não é preciso abrir mão dos presentes, mas não caberia, também, na noite de Natal, que é mais alongada, que nos aventurássemos a ensaiar uma comunidade, ainda que momentânea? E o que faz de um ajuntamento de pessoas uma comunidade? A palavra trocada, as histórias compartilhadas, o interesse pelo outro, a delicadeza da escuta, a alegria da solidariedade.
A noite de Natal com as pessoas em volta de uma mesa é uma reiteração, nos nossos tempos, de um costume imemorial, perdido na noite dos tempos, a refeição em torno de uma fogueira capaz de aquecer os corpos e de histórias, contadas e ouvidas, capazes de aquecer a alma.
Afastados os papéis que a vida cotidiana nos leva a desempenhar, não poderíamos, dessa vez, partilhar nosso destino comum, o de homens e mulheres comovidos e perplexos diante da imensidão da vida?
Para a noite de Natal:
“ É verdade que à mesa não nos alimentamos apenas ao mesmo tempo e dos mesmos alimentos. Alimentamo-nos uns dos outros. Somos uns para os outros, na escuta e na palavra, no silêncio e no riso, no dom e no afeto, um alimento necessário, pois é de vida ( e de vida partilhada) que as nossas vidas se alimentam”. (José Tolentino de Mendonça)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola de BH
Um dito medieval, "Deus só conta até um", dá o que pensar. Assinala, sem retoques, a extensão e a profundidade de nossa singularidade, esse território sem fim que habitamos. Singularidade que, mesmo diante de Deus, portanto, diante do que quase absolutamente nos excede, continua sendo uma experiência aguda. Surgidos do gesto criador de Deus – e toda criação é uma retirada, um recuo, a geração de um espaço -, estamos na existência a sós, de forma irreversível, sem retorno. Cada um dos lugares que ocupamos ao longo de nossas vidas, e que fazem parte da aventura humana, assenta-se sobre essa estranha abertura que nos funda e que, mesmo explorada permanecerá sempre um enigma para nós.
Singularidade que, entretanto, não se dissolve na solidão, no encerramento em si mesmo. Se na existência somos, cada um, o que mais ninguém é, somos, também, atraídos uns pelos outros, solidários na mesma origem a que pertencemos e inquietos, lado a lado, diante da vida que nos cabe, a todos, cotidianamente tecer.
Para pensar na quinzena:
“ Continuo a não conseguir encontrar o tom certo para aquele sentimento de firmeza e felicidade que há em mim, onde também se incluem todo o sofrimento e tristeza. Ainda uso um tom de filosofia livresca, exatamente como se tivesse inventado uma teoria consoladora para tornar a minha vida um pouco mais agradável. Por enquanto, é melhor aprender a calar-me e a ser” (Etty Hillesum)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Leio em Tomás Halík ( A noite do confessor, editado pelas Paulinas de Portugal) uma antiga história, mais do que apropriada para esses nossos tempos – ou quaisquer tempos – nos quais o ódio, uma vez mais, volta a ser cultivado com fervor. São, infelizmente, muitos os que acreditam que a identidade de um grupo, partido ou cultura depende da exclusão dos que pensam e sentem diversamente. Segue a história:
Rabi Pinchas perguntou aos seus discípulos como é que se reconhece o momento em que acaba a noite e começa o dia. “É o momento em que há luz suficiente para distinguir um cão de um carneiro?”, perguntou um de seus discípulos. “Não”, respondeu o rabi. “É o momento em que conseguimos distinguir uma tamareira de uma figueira?” perguntou o segundo. “Não, também não é esse momento”, replicou o rabi. “Então, quando chega a manhã?”, perguntaram os discípulos. “É no momento em que olhamos para o rosto de qualquer pessoa e a reconhecemos como nosso irmão o nossa irmã”, replicou o rabi Pinchas. E concluiu: “Enquanto não o conseguirmos, continua a ser noite”.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Ideias são quase tudo o que temos para lidar com a realidade. Diferentemente de outras espécies, sempre socorridas pelos instintos, nós, os humanos, fomos expatriados, despossuídos dessa cola com a existência que parece tão abundantemente distribuída pelas outras espécies. Sem o amparo dos instintos, as ideias, esse acervo simbólico que não cessa de crescer, são nossas tentativas de aproximação da realidade. Indicam a esperança de atravessar a opacidade das coisas, de saciar nossa sede de compreensão, de abrandar o enigma que pesa sobre nós. Toda a cultura – das ciências às artes, da filosofia à tecnologia, da religião aos costumes, das múltiplas faces do trabalho aos rituais do lazer – são outras tantas tentativas de interpretar o nosso entorno de modo a que o deserto diminua e que a hostilidade seja abrandada.
Mas não é tarefa fácil essa nossa. Daí que, compreensivelmente, encantados com nossas ideias, nos esqueçamos de que são ideias e passamos a tomá-las por aquilo que elas não são, a realidade. Essa é sempre mais rica, mais arguta, mais cheia de reentrâncias do que gostaríamos. Ora, tomar nossas ideias pela realidade, tomar nossas representações pelo real, tem, por princípio, a amarga conseqüência de ver as ideias alheias, naturalmente distintas das nossas, como erros imperdoáveis, interesses inconfessados ou coisa ainda pior. Do fato de nenhuma ideia esgotar o que ela visa, a realidade, não devemos deduzir sejam todas equivalente. Pelo contrário, nem todas têm o mesmo valor.. Não cabe aqui nenhum relativismo, que, aliás, rapidamente se degenera em desinteresse pela diferença.
Não dá para ser assim. Ideias são provisórias, tentativas humanas de compreender o que há de compreensível no mundo. Portanto, devíamos esperar de nós, os que se interessam pelas ideias, uma conduta mais modesta, mais capaz de aprender com quem pensa diversamente. Deveríamos apreciar um pouco mais o dissenso. Dissentir significa que, mesmo discordando, respeitamos o nosso oponente e nos sentamos à mesa com ele. Preferir, ao invés do dissenso ativo, a indiferença disfarçada de tolerância ou a beligerância furiosa revela, quase sempre, nossas dificuldades com a finitude que, inevitavelmente, nos habita.
Talvez seja proveitoso pensar um pouco sobre isso nesses dias que nos separam de mais uma eleição presidencial.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola de BH
A propósito de uma eleição presidencial, como a que teremos no próximo mês, não seria de se esperar a proliferação de debates, a contraposição de ideias, o exame animado das propostas apresentadas, o teste dos programas partidários junto à situação que o País atravessa? Haveria ocasião mais propícia para a controvérsia e o posicionamento? Não estaremos cada um de nós, e o Brasil como um todo, concernidos pelo resultado do pleito?
Se as coisas são assim, por que assistimos, quase sempre, a uma mera troca de acusações, à boataria generalizada, à veiculação de um ódio que parece desconhecer qualquer limite? Os partidos não são distintos, não é diverso o que propõem, a singularidade de sua filiação ideológica não é marcante? Então porque o debate é tão decepcionante? São, certamente, muitas as razões, arrisco, entretanto, a hipótese de parte da causa se deve ao crescente empobrecimento da discussão de ideias. Desconfiamos das ideias, da sua capacidade de decifrar a realidade, preferimos o calor de nossa opinião. Ideias constituem o lugar onde, longe da nossa particularidade, encontramos as outras pessoas. Ideias pertencem ao espaço público, lugar da tolerância trabalhosa e da disposição de cotejarmos junto aos outros o que defendemos. Privados de ideias, esquecidos de que apenas somos juntos uns aos outros – animais políticos – só nos restará, como reação ao esvaziamento, esbravejar o nosso ódio. O que é uma tolice, porque as ideias seguirão o seu curso cheio de conseqüências.
Para pensar na quinzena:
“Narciso acha feio o que não é espelho” (Caetano Veloso)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Estou às voltas com a leitura do Diário de Etty Hillesum, na edição da portuguesa Assírio & Alvim, que cobre os anos de 1941 a 1943. Etty Hillesum é uma mística holandesa, de origem judaica, morta no campo de concentração antes de completar 30 anos, da qual, além do Diário, foram publicadas, pela mesma editora, inúmeras cartas, datadas do mesmo período. O Diário é a história da estonteante presença de Deus numa vida, e numa época, vitimadas por uma perversidade que não conheceu limites. Não é, mesmo, uma leitura que se possa deixar de fazer.
Longe de recorrer a Deus como uma explicação sempre à mão, em Etty Hillesum Deus é uma provocação, uma interrogação que é incessantemente dirigida a nós e que nos cabe, se desejarmos permanecer humanos, escutar, perscrutar. Mas é preciso saber se merecemos Deus, um merecimento que não é da ordem da moral, da servidão a um conjunto específico de regras, ou da nossa argúcia conceitual.
Deus é, a todo tempo, um excesso, do qual só nos aproximamos na medida em que formos capazes de aceitar o que em nós também é excesso, o que é desconhecido, o que é, como o mistério, terrível e fascinante. Que Deus, para Etty Hillesum, brote no improvável, no inesperado, no quase impossível, indica a Sua desmedida e a extensão do abandono, tantas vezes doloroso, que de nós é esperado. Sem essa acolhida, nos faltaria o merecimento.
Para pensar na quinzena:
“E assim é a vida: um caminhar de um momento de redenção para o outro... às vezes uma pessoa brada pela redenção, sem que interesse a forma”. (Etty Hillesum)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola de BH
O próprio de uma conversa, de uma conversa efetiva, é que ela não se encerra. Contínua, cheia de curvas, incessantemente recomeçada, sempre renovada, a conversa é fiel à complexidade e diversidade do mundo da vida. Se a conversa cotidiana decorre da busca, tão humana, de auto-expressão, não é menos verdade que constitui um exercício tão necessário quanto impossível de decifração do mundo. Assim, a conversa é, em igual medida, uma prova de confiança e de humildade. Sabemos alguma coisa, mas sabemos pouco, sabemos pouco, mas sabemos alguma coisa.
A atividade chamada conhecimento, à qual de dedicam instituições como universidades, é o prolongamento, muitas vezes refinado, da conversa milenar da humanidade. E mais: garantida pela liberdade, distanciada das urgências da vida, geradora de uma riqueza cultural sempre em expansão, o conhecimento remove muitas das barreiras que cercam e limitam a leitura habitual do mundo, essa de que vivem as conversas. Desse modo, parecem ter razão os que, na esteira do iluminismo, associam conhecimento e liberdade pessoal, maioridade e cultivo da razão.
Entretanto, se, de um lado, a atividade chamada conhecimento confirma o acerto da audácia de conhecer, por outro lado, costuma, com freqüência, perder de vista um traço inseparável da conversação, o reconhecimento da inevitável incerteza que cerca tudo o que sabemos. Quando instalada em supostas verdades incontroversas, imunizadas contra qualquer discussão, a atividade do conhecimento perde o que mais a identifica, a fidelidade à riqueza do mundo, o acolhimento da finitude a que pertencemos. Certezas incontroversas, apesar de ilusórias, são outras tantas fontes de opressão e desmentem o que torna o conhecimento uma atividade humanizadora, a saber, o acolhimento do mistério que, vindo da vida, nos interroga sempre.
Diante disso, talvez seja uma tarefa de nosso tempo a recuperação do sentimento da infinitude do mundo, traço precioso que a conversação, a conversação efetiva, sempre preservou.
Para pensar na quinzena:
“ O teu desejo deve ser como um navio lento e majestoso, navegando no oceano infinito e não à procura de um local onde largar a âncora. E de súbito, inesperadamente, dar de cara com um local onde ancorar por um momento.” (Etty Hillesum)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Na coluna passada, falamos da tese de que a educação é a fronteira por onde o País pode avançar. O que é correto, mas que, ao mesmo tempo, deve abrir um debate que concerne a todos nós. É preciso esclarecer o que entendemos por educação, senão estaremos correndo o risco de nos contentarmos com um clichê, o que é sempre empobrecedor e destituído de conseqüências. Boas escolas, professores bem formados e corretamente remunerados, escolas de tempo integral, políticas de Estado e não de governo, isso, como sabemos todos, é o alicerce sobre o qual há pouca ou nenhuma discordância. Vivemos, e viveremos cada vez mais, nas chamadas sociedades do conhecimento. Dada, então, a onipresença do conhecimento, uma educação qualificada é condição de cidadania e deve ser entendida como um dos direitos de última geração. Privados do conhecimento, estaremos privados dos benefícios disponibilizados pelo desenvolvimento. Carreiras profissionais, para citar um exemplo, exigem cada vez mais o domínio de tecnologias decorrentes do conhecimento, sempre com algum grau de sofisticação. Até aqui parece claro o que deve ser feito: estender a faixas cada vez mais amplas da população o acesso á educação continuada e de nível satisfatório.
Embora esse desafio seja, por si só, gigantesco, outro desafio, de proporções ainda maiores, o acompanha. Para além da educação voltada para áreas de aplicação mais imediata, nas quais o consenso é bem possível, outra dimensão da educação se impõe. A que se refere a valores, ideais ou normas, capazes de dar origem a pactos que viabilizem a uma convivência menos violenta do que do que a habitual. Se restringirmos os nossos acordos aos campos onde o consenso é mais fácil, capitulando diante da ideia de que nas questões mais propriamente humanas o relativismo se impõe necessariamente, será inevitável um crescente e cada vez mais insuportável rompimento do tecido social.
Talvez a demanda por mais educação se refira, mesmo que involuntariamente, a esse receio de que, na ausência de um compartilhamento mais espalhado de valores, estaremos condenados a uma vida humanamente miserável, mesmo que materialmente próspera. Não há, por ora, solução à vista, mas a percepção do problema já é um passo significativo.
Para pensar na quinzena:
“Os homens nasceram uns para os outros: educa-os e padece-os” (Marco Aurélio)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Conferir ou descobrir sentidos é parte constitutiva da condição humana, despossuída do conforto propiciado pela intensidade da pressão instintiva que caracteriza as outras espécies. Para nós, a dimensão instintiva, mesmo que a expressão soe inadequada, está presente, mas aguarda uma leitura de nossa parte, espera de nós uma interpretação. Práticas alimentares, afetividade, vida espiritual, trabalho e linguagem ocorrem num horizonte desenhado por nós e ganham o colorido do tempo e do espaço a que pertencem. Tudo isso, e muito mais, constitui o âmbito da cultura, esse meio em que vivemos e que nos apresenta o mundo. É a partir dos recursos disponibilizados pela cultura que podemos viver, de modo pessoal e significativo, a aventura da existência. Rompida a relação entre o que singulariza cada um de nós e o que a cultura oferece, é inevitável uma dose suplementar de sofrimento, acompanhada da percepção, sempre dolorida, do estreitamento da vida.
Falamos sem cessar, com razão, em mais cidadania, mas quase sempre nos atemos às suas dimensões mais materiais. O que é importante, sem dúvida, mas não deve nos distrair de que a indigência simbólica é tão cerceadora e restritiva quanto qualquer outra. Privados dos recursos simbólicos, dos instrumentos com os quais podemos nos aproximar do que a vida humana tem de mais permanente, o mundo aparecerá como um lugar hostil, marcado apenas pelo que a vida tem de mais brutal.
Talvez os que insistem na importância da educação e na tese de que essa é, agora, a fronteira por onde o País pode avançar tenham razão. Mas certamente é preciso discutir o que entendemos e o que esperamos da educação. Mas isso é assunto para a próxima coluna.
Para pensar na quinzena:
“Cultura é o que nos salva do naufrágio vital, o que permite ao homem viver sem que sua vida seja uma tragédia sem sentido ou um aviltamento radical. (Ortega y Gasset)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Em cada circunstância histórica, não importa a singularidade do enredo, nos vemos sempre diante do drama que nos constitui, a exigência da decifração do que somos. Essa é uma obra que foi sempre vista como inacabada e, em última instância, a ser realizada na solidão de cada um de nós. O seu percurso é incerto, sujeito a reviravoltas e, muitas vezes, opaco.
Ora, nossas sociedades oferecem, ao que parece, uma contrapartida para tudo isso. A nós, a cada um de nós, é proposta uma regra para uma tal decifração, o estabelecimento de uma meta clara de chegada, uma corrida de acumulação, suscetível de sucesso. Nossas carências são entendidas como objetiváveis e sua satisfação é sempre vista como possível. Podemos ser medidos, compreendidos e classificados – hierarquizados seria uma palavra melhor – de modo que uma espécie de plena transparência funciona como um imenso regulador social.
Outras épocas sempre tiveram em conta o sentimento do limite, a impossibilidade de circunscrever inteiramente a experiência humana, a percepção de uma insuficiência estrutural. Traços para os quais a cultura, na variedade de suas formas, se voltava. E, curiosamente, é desse reconhecimento dos limites que brota, e sempre brotou, a profusão das obras que constitui esse acervo simbólico que chamamos Ocidente, o lar mental a que pertencemos.
Talvez valha a pena investigar, no nosso dia a dia, as repercussões disso que a nossa época parece propor, as vantagens e desvantagens dessa tentativa do completo delineamento da experiência humana.
Para pensar:
Rostos particulares em lugares púbicos
É coisa mais gentil e sensata
Do que, em lugares particulares, rostos públicos. ( W.H. Auden)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Retomo a conversa da quinzena passada.
Itinerários, os que aqui nos interessam, são formas de chegar até nós mesmos, esse território sempre por explorar. E se nossa disposição, como vimos, for de lançar mão do que ainda não está pronto, acolhendo e respeitando a singularidade que nos constitui, é hora de partir. Sem receio de nos escutarmos, mas, também, sem dispensar a boa companhia dos que já percorreram regiões mais remotas ou caminhos muito inusitados. Não os físicos, mais os existenciais. De nós, sabemos um pouco, mas que boa companhia é essa? Onde está o que, sem fazer o que apenas a nós cabe fazer, pode ser de valia? Sugiro a poesia, mas pode ser a literatura ou a arte de uma forma geral. Se a poesia é um bom mapa, é porque aponta caminhos que a todos dizem respeito, ao poeta e aos leitores, a todos, enfim. Sem nos uniformizar, nos aproxima. Sem usurpar a nossa solidão, nos deixa a todos próximos uns dos outros. A poesia sempre nos põe em cena de uma forma sempre nova porque originária e lembra que somos melhores quando não nos escondemos. Portanto, se estamos de partida, e sempre estaremos, saibamos ou não, o melhor é se valer da poesia, esse mapa que enriquece o território.
Um mapa para a quinzena:
Kant (relido)
Duas coisas admiro: a dura lei
cobrindo-me
e o estrelado céu
dentro de mim.
(Orides Fontela)
Itinerários brotam da percepção de que os caminhos disponíveis já não nos satisfazem ou já não nos parecem suficientes. Havendo um bom caminho, trilhado, percorrido, demarcado, quem pensaria em itinerários? Temos, aqui e ali, é certo, estratégias bem sucedidas e boa parte do nosso esforço consiste em continuar respondendo aos desafios que o mundo, na diversidade de seus aspectos, não cessa de nos apresentar. Multiplicamos assim os caminhos e afastamos, na medida do possível, as dificuldades. Mas se devemos lidar com o mundo que nos rodeia, não é menos verdade que somos, também, uma oficina debruçada sobre nós mesmos. E, nesse caso, a incerteza é maior, a inconstância é mais premente, o trabalho é mais alargado. Intérpretes do real que somos, quando a existência é a nossa a paisagem não é tão clara, o enredo é intrincado e o sentido parece, sempre, nos ultrapassar.
Estará sempre disponível a sedução de delegar a outros esse ofício. Aos que nos rodeiam, às instituições a que nos vinculamos, aos valores do tempo ou da sociedade a que pertencemos ou, enfim, ao mais fácil de nós mesmos. Mas, assim procedendo, não estaremos nos distanciando do que é o mais real, a experiência de nossa singularidade, daquilo que diz respeito apenas a nós?
Diante de nós mesmos, sem indicações que nos sejam entregues, que mais podemos fazer senão redobrar a atenção e, aos poucos, reconhecer o desejo de que somos feitos? É isso que se chama um itinerário?
Para pensar na quinzena:
“É preciso salvar a qualquer preço tua alma de peregrino” (D. Hélder Câmara)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola de BH.
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