Na coluna anterior, lembrando nosso pertencimento ao Ocidente enquanto aventura espiritual, vimos que a experiência da fé exige de nós o acolhimento de uma inquietação que, ao invés de estreitar o espaço humano, o amplia. Mas como a razão também é parte deste legado espiritual, é preciso ver o que se passa no seu âmbito. Se nós pensarmos no momento em que essa relação se pôs de forma mais evidente, a era medieval, não custa lembrar que data daí a fundação da Universidade, instituição que brotou do reconhecimento de um espaço próprio da razão.
Entretanto, há os que opõem fé e razão. Se a fé nos deixa insatisfeitos, dada a incerteza que a envolve, não podemos esperar que a razão nos brinde com a certeza? O constante avanço das ciências, a sua chegada nas áreas as mais diversas, a proliferação tecnológica delas decorrente, com os inegáveis benefícios que envolve, tudo isso não basta para dar razão aos que consideram dever a razão ocupar a totalidade do espaço? E não nos enganemos: as ciências incluem as ciências humanas, mesmo porque é nelas que a febre de certeza parece, hoje, ainda mais aguda. Não é assim que as pessoas citam os chamados mestres da suspeita?
Mas a ciência é, de fato, esse paraíso da certeza? Não é verdade, e esse reconhecimento vem dos estudos contemporâneos sobre a ciência, que as grandes teorias científicas, não obstante a sua fecundidade, ultrapassam em muito o que é dado na experiência? As pressuposições básicas que abrem o campo das ciências, como a pressuposição de um mundo ordenado, não se assemelham mais a uma aposta do que a uma certeza? A própria história das ciências não nos ensina o caráter progressivo e inacabado do conhecimento? As grandes teorias não são, senão mortais, pelo menos sempre sujeitos a revisões pronunciadas?
Parece não ser razoável a atitude dos que defendendo a certeza imaginam receber apoio das ciências. A ciência, ao contrário, se acha melhor hospedada nos espaços abertos dos enigmas a serem decifrados, no desvendamento permanente dos problemas sempre renovados, na contínua reforma de nossas ilusões, como dizia Bachelard.
Se assim é, não podemos aproximar os dois fundamentalismos, o que vem da fé e o que vem da ciência, já que ambos imaginam, cada um a seu modo, que é possível a nós, os humanos, uma palavra final?
Para pensar na quinzena:
Em geral, durmo melhor ninado pelo mistério do que pelas certezas (Contardo Calligaris)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.03.2013
Pertencemos, simultaneamente, a duas tradições, a que vem da Bíblia e a que vem dos gregos, junção que faz com sejamos espiritualmente ocidentais. Se qualquer uma delas vier a se apagar, é todo um estilo civilizatório que desaparecerá. O texto bíblico, revelado que é, solicita de nós a experiência da fé e a aventura da razão, impulsionada em terras gregas, escora-se na experiência reflexiva. Abrindo mão de uma ou de outra ou reduzindo um à outra, fé e razão, estaríamos abandonando um percurso já mais do que duplamente milenar. Mas é sempre hora de nos voltarmos para nós mesmos e ver há quantas anda a herança que recebemos. Até porque não dispomos de nenhum acerto sobre a repartição adequada entre esses dois campos, que é sempre dinâmica e sofre o assédio irregular da história. Aqui nos ocupamos, com a brevidade que a coluna permite, da fé. Na próxima quinzena, vamos falar da razão.
Diante do horizonte sempre aberto da existência humana, o texto revelado se oferece à nossa confiança, assinalando o nosso limite e, ao mesmo tempo, o pertencimento ao que nos excede. Aproximando de alguma forma esses dois pontos, percepção do limite e sentimento de pertencimento, a experiência da fé, longe de apequenar ou restringir o espaço humano, o estende mais e mais, permitindo que convivamos, ainda que de modo sempre inquieto, com o que nos habita sob a forma de um excesso.
A inquietação, entretanto, é uma companhia dolorida, sendo, por isso, mais do que compreensível a nossa propensão para capitular. Incapazes de suportar a porção de silêncio e de impotência que nos envolve, corremos numa direção redutora, substituindo o silêncio pelo palavreado eufórico, o que, de sobra, parece, apenas parece, derrotar a impotência.
Mas procedendo assim, teremos, ao final, menos e não mais. Se o exercício do silêncio e o acolhimento da impotência deixam aberto o espaço para a experiência da fé, a palavra impaciente apenas nos devolve a nós mesmos.
Para pensar na quinzena:
“ O raciocínio deixa facilmente na sombra o que desejamos conservar oculto.” (George Bernanos)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
14.02.2012
Começo de ano, hora de planos, que, na sua maioria, não serão cumpridos. Não importa, a esperança ganha da experiência, o que é sempre louvável, e, encorajados, listamos intenções. Podemos fazer isso, mas também, quem sabe, não é hora de nos voltarmos para aqueles valores que, valendo para ano que se inicia agora, valem, entretanto, sempre? A calma do começo do ano, o descanso das comemorações, desperta em nós uma disposição contemplativa, o que favorece um olhar menos preocupado com a urgência que vem do cotidiano.
E que valores são esses, que reclamam permanência? Vou falar de dois. O primeiro deles, acredito, é o senso de que alguma coisa nos ultrapassa, de que o mundo não começou conosco e não cessará quando partirmos. O senso de que somos criaturas. O que nos excede, entretanto, não é uma mera distância muda, indiferente à nossa inquietação, à nossa insuficiência. Pelo contrário, pertencemos, de alguma forma, ao que nos excede, estamos, também, onde nos desconhecemos. Portanto, sejamos fiéis a isso.
O segundo valor é o gosto da comunidade. Que não suprime nossa solidão e nem nos obriga a abdicar de todo silêncio. Mesmo que os tempos sejam difíceis, a reclusão em nós mesmos e o desprezo pelos outros nunca é justificável. Como escreveu Santiago Kovladoff, “ um mundo que provoca repulsa em quem aspira afastar-se dele é, sempre, um mundo que venceu a quem o impugna. É, em suma, um mundo que mantém encarcerado a quem se considera em condições de deixá-lo para trás”. Não nos esqueçamos que o mundo à nossa volta, na variedade de suas formas – mundo social e universo físico - é nossa oficina: nele nos formamos para nosso destino maior. Nossa mundaneidade, mais do que uma escolha, é uma vocação. Portanto, também a isso sejamos fiéis.
Para pensar, a mais, na quinzena:
“A experiência sobrenatural da nossa contingência é a humildade que ama e valoriza, sobretudo, nosso estado de impotência metafísica e moral diante de Deus” (Thomas Merton)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.02.2013
Para começar o ano com Carlos Drummond de Andrade:
RECEITA DE ANO NOVO
Para você ganhar um belíssimo Ano Novo
Cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintando de novo, remendando às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens, passa telegrama?)
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta,
não precisa chorar de arrependimento
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
30.12.2012
Se a morte nos intriga, e não poderia ser diferente, não é menos verdade que o nascimento é igualmente rodeado pelo mistério. São múltiplos os nascimentos que, sem cessar, nos interrogam: o nascimento do mundo, o nosso próprio nascimento, o nascimento de uma criança, o nascimento de uma nova sociedade, o nascimento de uma coragem ali onde sequer era esperada, de um horizonte inimaginável, de uma resistência súbita onde a capitulação parecia inevitável, a doçura de uma amizade, a irrupção da solidariedade ao invés do costumeiro egoísmo, o amanhecer de um amor, o espetáculo de um poema.
Entretanto, a força do hábito nos distrai, torna-nos cativos da repetição e desvia nosso olhar do que está sempre irrompendo. Pressionados pelas urgências do cotidiano, obrigados a reiterar comportamentos, interpomos entre nós e a experiência uma camada espessa que dissipa a novidade e dificulta o espanto. Ainda assim, prossegue a permanente brotação da realidade, o eterno movimento do mundo, rebelde aos nossos esforços de aprisioná-la, diverso de nossas expectativas.
Daí que a surpresa sempre pode ocorrer, acreditemos ou não. É que chegamos depois dos começos, quando a fonte já corria e porque é próprio do mistério envolver, e nutrir, cada nascimento. Pertencentes ao mundo, quem sabe aprenderemos a acolher essa disposição para os nascimentos e a cultivar a coragem dos recomeços.
Criados um dia, nos foi dada, no horizonte de nossa humanidade, a potência de criar. Que neste natal o nascimento do Menino nos lembre disso.
Para pensar na quinzena:
“Então, o que não somos,
escuridão,
silêncio,
ausência,
é um lugar exato
para sentir
como todo o novo
começa.”
Benjamin Gonzáles Buelta sj
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.12.201
Neste momento em que a questão ética está novamente em cena, é mais do que apropriado perguntar pela dimensão ética do cristianismo. Do ponto de vista público, por motivos os mais variados, a ética e a moralidade associados ao cristianismo são reduzidas, quase sempre, a um conjunto de proibições, todas impeditivas do florescimento humano. Num cenário que se proclama libertário, como esse em que vivemos, isso tende a impedir que o cristianismo tenha uma presença significativa nos debates em curso no campo da ética. Mas reduzir a ética cristã a uma lista de interdições é aceitar a plausibilidade de uma caricatura mais do que empobrecedora. Diante disso, cabe um reiterado esforço para conferir mais credibilidade à perspectiva cristã da ética, seja assentando-a em bases mais próximas das fontes cristãs substantivas, seja mostrando sua capacidade de enfrentar questões inéditas, próprias do nosso tempo.
É possível ver nos debates éticos a polarização entre o que se poderia chamar de expressivismo ético - cada um de nós é o fundamento e a garantia da legitimidade das nossas ações - e o recurso às ciências, como se delas pudesse provir a sustentação de uma ética. Nenhuma das duas alternativas, ao que me parece, é satisfatória e nenhuma delas é compatível com o pensamento cristão. Talvez haja aí um intervalo, um espaço vazio que permita o aparecimento de alguma alternativa, próxima ao cristianismo, que possa ser pensada. Não pode ser essa a direção do esforço acima indicado?
Para pensar na quinzena:
"Se nós não falarmos do homem tal como ele é (na sua) fragilidade, de quem ou do que estaremos falando?" (Adolphe Gesché)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.12.2012
A coluna anterior, partindo do reconhecimento da diversidade, versava sobre a possibilidade da escuta mútua das diferenças e defendia o princípio da aproximação cuidadosa entre povos e tradições distintas, todos irmanados na mesma condição humana. Como exemplo dessa possibilidade, segue uma oração originária da cultura esquimó, distanciada de nós, mas na qual, com facilidade, nos reconhecemos.
“Sim, eu creio em um ser poderoso que chamamos Hila.
Não podemos, porém, explicá-lo com palavras ordinárias.
Ele é um espírito poderoso,
que guarda o universo,
regula as estações do ano
e mesmo toda a vida do homem.
Ele é tão grande que sua palavra não pode ser ouvida
de maneira ordinária.
Ele fala pelas tempestades,
pelas nevascas,
pelos furacões dos mares,
por todas as forças que intimidam o homem.
Mas ele tem também outra maneira de revelar-se.
Ele se manifesta no tempo ensolarado,
pela calma do mar,
ou então pelas crianças inocentes,
que brincam na neve.
As crianças entendem sua voz doce e familiar,
como a voz de uma mulher...
A mãe fala sussurrando, tão amavelmente,
que a criança não tem medo.
Assim fala Hila às crianças.
Voltando para casa, elas falam simplesmente
o que ouviram.
Então o feiticeiro interpreta, para nós,
suas palavras.
Quando tudo vai bem, Hila não fala aos homens.
Ele desaparece no Infinito e permanece escondido,
enquanto os homens respeitam a vida
e não abusam do alimento cotidiano.
Ninguém viu Hila!
Sua morada é misteriosa.
Ele está, ao mesmo tempo,
longe e perto de nós.
(In Muraro, R. e Cintra, Frei R., As mais belas orações de todos os tempos. Rio de Janeiro, Ed. Rosa dos Tempos, 1993)
Para pensar na quinzena:
“Ouvir, mais do que estar disposto, é estar exposto” (Santiago Kovadloff)
Ricardo Fenati
Professor de filosofia e membro da equipe do Centro Loyola-BH
15.11.2012
Cada geração tem seus termos próprios, expressões caracterizadoras de sua singularidade e de sua identidade. Diversidade, pluralidade são termos da nossa hora, bem vindos porque indicam a disposição de acolher a diferença e de se abrir ao outro. Chegam com a força da realidade, quebram comportamentos, inauguram caminhos. E é assim que deve ser. A diversidade decorre da misteriosa amplitude da experiência humana, seja a dos povos e das civilizações, seja a dos indivíduos. Colocar-se contra a diversidade é, desse ponto de vista, uma injustificada amputação. Entretanto, como é próprio das coisas humanas, incorporado o que o tempo traz, vale a pena refletir um pouco.
Partir da diversidade significa reunir, com boa vontade, perspectivas diversas em torno de um tema, por exemplo, a temática religiosa, a diversidade das religiões. Significa, igualmente, que podemos, uns aos outros, explicitar, na medida do possível, o modo como pensamos e vivemos a fé com a qual estamos comprometidos, a identidade a que pertencemos. Um benefício imediato é um ganho de clareza em relação ao que professamos, oriundo, muitas vezes, do que aprendemos com quem não pensa como nós. A riqueza da experiência religiosa, sempre além de qualquer endereço confessional específico, só tem a ganhar com essa mútua exposição, calçada na sinceridade. Não haverá pluralismo efetivo e conseqüente sem esse mergulho compartilhado na diversidade das identidades.
É justamente essa disposição para a conversação, para o acolhimento mútuo e cuidadoso das interferências que impede o pluralismo de ser o mero reconhecimento do que nos separa. Convém insistir na aceitação sincera da diversidade como um ponto de partida obrigatório, fiéis que devemos ser aos sinais do nosso tempo. Mas sem esquecer, em seguida, que, deveras, o que conta é o esforço sempre renovado em favor da escuta mútua e da aproximação entre nós, os humanos.
Para pensar na quinzena:
“A civilização é, antes de mais nada, vontade de convivência”. (Ortega y Gasset)
Ricardo Fenati
01.11.2012
Assim como temos um lar físico, que vai de nossa casa ao universo, também temos um lar mental/espiritual, constituído pelo conjunto de recursos simbólicos com os quais, sabendo ou não, andamos pela vida. Uma parte desses recursos pertence ao território da Ética, disciplina reflexiva que está relacionada ao campo da ação, ao modo como conduzimos nossas vidas e, mais basicamente, à liberdade que nos caracteriza enquanto humanos. Se nossas ações fossem equivalentes, se dessem origem às mesmas conseqüências ou se fôssemos presas de algum determinismo, a Ética seria desnecessária. Como nada disso acontece, a Ética se faz presente e se interessa pelo tipo de ação ou conduta que torna a vida mais legítima, mais humana, mais defensável. Daí que acusar alguém de falta de ética é desaprovar o que ele faz, é se opor aos valores por ele defendidos.
Vamos resgatar uma palavra antiga, dessas que não usamos tanto, mas que sempre esteve associada à Ética. Na linguagem do dia a dia raramente aparece: virtude. Alguém se lembra de referir-se a um amigo/amiga como virtuoso/virtuosa? Difícil, não é mesmo? Virtude é, hoje, uma dessas palavras frias, das quais mantemos distância. Mas o que deve ser entendido como virtude? Não é o caso de nomear atos ou ações virtuosas. Seria interessante, mas não bastaria. Virtude tem a ver com a improbabilidade de agirmos na direção do que foi dito mais acima: na direção do que é mais humano, mais defensável, mais legítimo. Mas porque improbabilidade? É que um comportamento virtuoso é mais difícil, perde numericamente para comportamentos não virtuosos, que são mais prováveis. Nossa inclinação imediata é agir de acordo com nosso interesse mais corriqueiro, em obediência aos costumes do lugar onde vivemos, a partir de expectativas que os outros nutrem sobre nós e assim por diante. Ora, a virtude tem a ver com a suspensão desses caminhos, com a disposição de atuar em vista de um fim discernido de forma mais reflexiva, mais corajosa, mais custosa, em concordância com um valor escolhido mais livremente, não importando a quota de sacrifício envolvida. Nestes tempos onde todo mundo reclama por mais Ética, é bom nos lembrarmos dos custos associados à Ética, em tudo contrários à voracidade do imediatismo dos nossos dias. Se, de fato, a Ética é uma questão importante para nós, conversar sobre a experiência da virtude pode ser um bom começo.
Para pensar na quinzena:
“ Não se pode receber da verdade mais do que nela se investiu” ( Milorad Pavic, Dicionário Kazar)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.12.2012
Há uma reclamação generalizada, e justa, em favor da educação. Educação tem a ver com o fato de que não nascemos prontos, pelo contrário, somos, desde sempre, inacabados e é desse vazio que a educação se ocupa. Distraídos da tarefa da educação, permaneceremos cativos da pressão pela sobrevivência a mais imediata e dos interesses de curtíssimo alcance.
Educamo-nos a partir de um acervo de referências, resultado da experiência histórica da humanidade. Formamos novos físicos, por exemplo, a partir do conhecimento físico consolidado, o que favorece, ao invés de impedir, a constante expansão deste conhecimento. Nas áreas científicas, ciências humanas incluídas, o processo é mais ou menos este, guardadas as diferenças de campo a campo. Entretanto, se as ciências ocupam, e devem ocupar, parte do espaço aberto a ser cultivado pela educação, não é desejável reservá-lo apenas a elas. Esquecer dos outros campos simbólicos – artes, filosofia, religião, mitologia – e das possibilidades que lhes são inerentes é mera e injustificada mutilação. Porém, falando de uma forma mais geral, tais campos são, hoje, esvaziados de sua dimensão objetiva e perversamente transferidos para o domínio privado. Confinados aí, perdem qualquer possibilidade de atuar como oportunidades e instrumentos de formação. Imaginar, entretanto, que a tarefa da formação humana possa ser conduzida à revelia desses campos é malhar em ferro frio. É hora, acredito, de voltarmos nossa atenção para o material pertencente a cada um dos campos acima mencionados. Talvez, assim, nos sentíssemos menos solitários diante dos enigmas, os tristes e os alegres, que a existência não cessa de nos propor.
Este, a meu ver, é um ponto a ser discutido para que a reclamação, inteiramente justa, por mais educação possa se aproximar um pouco mais do objetivo proposto. E vale a pena ressaltar que, aqui e ali, começam a proliferar instâncias de formação dispostas a aproximar a demanda tão contemporânea por formação da multiplicidade dos recursos simbólicos forjados ao longo da história humana. Não me parece exagero lembrar que é nessa fronteira que também o Centro Loyola, modesta mas persistentemente, procura atuar.
Para pensar na quinzena:
“Os homens nascem uns para os outros; educa-os, padece-os” (Marco Aurélio)
Obs. Não dá para não indicar um livro sobre educação, de onde, aliás, retirei a frase de Marco Aurélio: Savater, Fernando, O valor de educar, publicado pela Editora Martins Fontes.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.10.2012
Reclamamos, muito freqüentemente, a favor dos direitos da natureza e dos direitos das outras espécies, companheiras da nossa. E, indo além, insistimos no nosso retorno à natureza, pátria original da qual nos distanciamos num doloroso exílio. Mas vejam bem que o nosso pertencimento à natureza tem lá sua singularidade. Somos, sim, bichos da terra, irmanados por uma complexa evolução, mas somos, também, um tanto estrangeiros. O encaixe não acontece, alguma sede permanece, algum desejo nos inquieta, a conta não fecha. E não é que nos tenha sido tirada algo, pelo contrário, é mais provável que alguma coisa a mais nos tenha sido entregue. O sortimento na literatura ou na filosofia é grande, como mostram Guimarães Rosa (“Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto.”) e Pascal (“ Malgrado a visão de todas as misérias que nos tocam, que nos agarram pela garganta, temos um instinto que não podemos reprimir, que nos eleva”).
Mas como o que sobra incomoda e dói, é freqüente nos esforçarmos para arredondar as arestas ou polir o que parece embaçado, impacientes com o que nos resiste. Quem sabe não é hora de inverter a estratégia e começar a ver se a dor, ela mesma, ainda que venha do passado longínquo, não é por onde o futuro pode chegar?
Para pensar na quinzena:
“ No fundo das nascentes tudo se passa com lentidão” (Nietzsche)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.09.2012
Uma das formas de compreender a modernidade ocidental é notar que, à medida que ela se desenrolava, a vivência religiosa cristã caminhava sempre com mais velocidade, para a esfera privada da consciência. Certamente que a marcha não foi a mesma em todos os países e, particularmente entre nós, no Brasil, esta privatização é mais recente. Estamos longe, entretanto, de perceber todas as conseqüências desse processo, parte do qual é inevitável. Entretanto, resignando-se ao insulamento na esfera privada, a religião só tem a perder numa civilização marcada pela ampliação incessante da esfera pública. Sem falar no essencial: sempre foi parte da tradição cristã a conversação com a cultura e desta conversação, como sabemos, brotou um acervo simbólico do mais amplo espectro.
Para ficar num exemplo, entre tantos outros possíveis: a proposta de uma infinita maleabilidade humana, ontem defendida por um culturalismo exacerbado – e hoje alardeada pelos entusiastas da engenharia genética – parece colidir com a lembrança cristã que nós, os humanos, existimos a partir de um fundo para sempre inatingível e sobre a qual nunca teremos um domínio exaustivo. Este problema, o da maleabilidade humana, o cristianismo pode se furtar a enfrentá-lo? Não, já ele põe em cena um interesse cristão. Outros exemplos podem ser citados, não importa, lembrariam a mesma coisa: a massa da qual a vida pública no Ocidente é feita repõe em cena, necessariamente, o cristianismo.
Para pensar:
“Ilhas perdem os homens” (Carlos Drummond de Andrade)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.09.2012
Esbarro numa citação do poeta e ensaísta T.S.Eliot (1888-1965) e não resisto à tentação de fazer dela a coluna desta quinzena. É suficientemente intrigante, o que faz com que cada um de nós, ao dar com ela, se sinta interrogado ou, ao menos, inquieto. Segue sem mais:
“Uma vez que somos humanos, o que fazemos deve ser bom ou mau; já que fazemos o bem ou o mal, somos humanos; é melhor, paradoxalmente, fazer o mal a nada fazer: ao menos existimos. É verdadeiro dizer que a glória do homem é a capacidade de salvação; também é verdade dizer que sua glória é a capacidade de condenação às penas eternas. O pior que pode ser dito da maioria dos malfeitores, de estadistas a ladrões, é que não são homens o suficiente para merecerem a condenação eterna(...). Baudelaire percebeu que o que realmente importava era o pecado e a redenção(...) e a possibilidade de condenação eterna é um alívio tão grande em um mundo de reforma eleitoral, plebiscitos, reforma dos sexos e do vestuário, que a própria danação é uma forma imediata de salvação – salvação do tédio da vida moderna, porque, ao menos, dá algum significado para a vida” (citado in, Kirk, R., A era de T.S. Eliot, São Paulo: É Realizações, 2011).
Para pensar na quinzena:
Para concordar, para discordar, temos aí material suficiente para pensar na quinzena.
Ricardo Fenati
Equipe Centro Loyola
15.08.2012
O modo como usamos as palavras na vida cotidiana é sempre um bom ponto de partida para a reflexão. Palavras não são inocentes. Carregam, pelo contrário, modos de ver e ser no mundo que por estarem, muitas vezes, fora do domínio da consciência não são, por isso, menos influentes. O gesto mais incisivo e a ação mais conseqüente têm início numa palavra, no universo de sentimentos que as palavras disparam ou interrompem. Somos animais simbólicos, para o bem e para o mal, o que torna aconselhável que prestemos atenção nas palavras que nos enredam.
Problema e mistério, duas palavras vizinhas, dão margem a uma boa conversa. Num primeiro momento, parecem intercambiáveis, com o problema levando, ultimamente, alguma vantagem sobre o mistério: mistério não é um problema que ainda não solucionamos? E mais: fazer mistério de alguma coisa não é, propositadamente, jogar poeira sobre os nossos olhos, escondendo o que, de fato, é claro e não dá margem a dúvida? E nosso vitorioso debatedor joga a pá de cal: cita Marx sem saber quando diz que a humanidade só se propõe problema que pode resolver. Não tem mistério.
Mas talvez isso não seja tudo. Um filósofo francês, já falecido, Gabriel Marcel propôs uma distinção mais do que interessante. Dizia que há uma distinção aguda entre problema e mistério. Problema é o que está diante de nós, fora de nós, e que, por princípio, é suscetível de resolução, já que sabemos o que seria uma solução aceitável. A composição do solo de Netuno? Um pouco mais de tempo e certamente saberemos. Veículos menos poluidores? Já estamos quase lá. Estratégias pedagógicas que otimizem a aprendizagem? Não há porque descrer de uma solução com o tempo. Não importa sua diversidade, os problemas cabem na mesma caixa. São resolúveis, hoje ou amanhã. Ou depois.
Mistério é outra coisa. O que consideramos mistério não está diante de nós, não pode ser objetivado. Pertencemos ao mistério, sem saber onde está, nesse caso, a fronteira onde começa o nosso território. Matéria temporal que somos, não somos capazes de compreender o tempo. Estamos na existência como quem está numa terra estrangeira, cuja língua, afora uma ou outra palavra, desconhecemos quase inteiramente.
Não somos sequer capazes de imaginar o que, no caso do tempo ou da existência, contaria como resolução. Portanto, não estamos aqui diante de problemas.
Claro, podemos fazer uma grande confusão, chamando de mistério o que, de fato, é problema, e de problema o que estaria mais em casa no domínio do mistério. Mas não é verdade que conversamos para tornar as coisas, na medida do possível, um pouco mais claras?
Para pensar na quinzena:
“Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? ( Guimarães Rosa)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.08.2012
Ter uma opinião e, mais do que isso, manifestar uma opinião pode ser considerado um costume contemporâneo e mesmo um direito a ser defendido nos dias que correm. Pesquisas cujos resultados orientam tomadas de decisões de amplas conseqüências estão escoradas em opiniões. Um percentual de 70% por cento a seu favor atesta a correção ou a oportunidade de A frente aos escassos 30% obtidos por B. O exercício da opinião parece indissociável da democracia: todos se manifestam a todo o tempo. Não ter uma opinião é sinal de menoridade ou de submissão inaceitável a uma autoridade. E mesmo no terreno mais estritamente pessoal, no domínio dos sentimentos o cenário é parecido: o que sentimos é, pelo fato de o sentirmos, é inquestionável. “O que você acha?”, mais do que uma pergunta, é entendido como um poderoso instrumento de aferição da realidade.
Será mesmo? Não é hora de percebermos que a riqueza da vida ultrapassa de muito a ansiedade de opinar ou a pressão do primeiro sentimento? A opinião que quase sempre evita a controvérsia e dispensa o argumento não é mais um sinal desta curiosa infantilização que parece não ter fim em torno de nós? A opinião que se irrita quando contestada, o sentimento que não admite a réplica, não reiteram o mesmo protesto da primeira infância diante da hostilidade inicial do mundo? E, coisa curiosa, a opinião que, dizem, é uma reafirmação dos direitos do indivíduo, não é, no final das contas, o lugar privilegiado da conformidade social?
Para pensar na quinzena:
“A gente deveria ser sempre um pouco improvável” ( Oscar Wilde)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.07.2012
Ideias ou a preocupação com ideias costumam não ter boa reputação entre nós. Celebramos os homens práticos, insistimos que “na prática a teoria é outra”, transferimos os que pensam para o mundo da lua e, colados no dia a dia, classificamos como utopia qualquer consideração que não vá na direção costumeira. Mas é preciso mesmo que seja assim? Não custa lembrar que para nós, os humanos, passar sem ideias é uma destas intenções das quais o inferno está cheio. Somos animais simbólicos, o que quer dizer que vivemos no horizonte das ideias: o que comemos, como amamos, o modo como trabalhamos, a maneira como organizamos o nosso lazer, nossas relações familiares, enfim, nossas vidas são o que são pelas ideias a que, sabendo ou não aderimos.
Pertencer a uma sociedade humana é compartilhar ideias. Ideias, literalmente, nos humanizam. Desprovidos da imediateidade dos instintos, despossuídos das respostas com que contam as demais espécies, ideias representam o esforço com que procuramos dar conta do vazio e do desamparo que, sem cessar, nos interrogam. Cultura é o nome deste esforço e não há qualquer sociedade que tenha prescindido, ou possa prescindir, desta tarefa. Portanto, não se trata de escolher entre uma vida à luz de ideias ou uma vida, vamos chamar assim, prática. Pelo contrário, a escolha é outra: entre as várias ideias, ou melhor, entre as várias vidas possíveis, a que vida, a que tipo de vida iremos dar nossa adesão?
Para pensar na quinzena:
“Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência.” (Guimarães Rosa)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.07.2012
Retomo a conversa da coluninha anterior, a que versava sobre a experiência humana da cidade. Nela, era simples o que se defendia: somos feitos para a proximidade, na variedade de suas formas. E possibilitar isto é esta a virtude maior das cidades. Mas nossas cidades, de uma forma geral, cumprem, hoje, apenas parte desta função. Por motivos que vão da desigualdade social ao gigantismo das metrópoles, da troca da convivência das ruas pela solidão das casas, da devoção à TV à sensação generalizada de insegurança, nossa existência se passa, na quase totalidade do tempo, em espaços privados. Desconhecemos os diferentes de nós, receamos, parodiando o verso de Caetano Veloso, o que não é espelho. Isto quando não descambamos para o ódio. Estamos, e aqui eu exagero um pouco, revertendo o movimento que deu origem às cidades medievais e voltando aos novos feudos, que dos antigos repetem, sobretudo, o que havia ali de limitação. Saímos pouco de nossas casas de nossos prédios, de nossos bairros, de nossos condomínios e por aí afora. Há uma privacidade que é mera privação, desistência que estiola e avilta o horizonte das possibilidades humanas.
Cabe esperar alguma mudança neste cenário? Certamente, não suportaremos isto por muito tempo mais, não somos capazes de permanecer para sempre tão reticentes e defensivos. Aqui e ali, movimentos variados começam a apontar para a necessidade da reconstrução de espaços públicos que, podendo ser de todos, não pertencem a ninguém em particular. Ainda não sabemos bem porque fomos para tão longe uns dos outros e nem será simples reverter a situação, mas, como temos pouco a perder, é hora de lembrar, uma vez mais, que a diversidade, quando aproxima, humaniza e, quando distancia, leva à indiferença.
Para pensar na quinzena:
“Sou homem: não julgo alheio a mim nada do que é humano” (Terêncio, 195/185 – 159 a.C)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.06.2012
Pode alguém desconhecer o que é uma cidade? Não vivemos desde muito tempo em cidades, portanto não sabemos já o que é uma cidade? Pode ser, mas mal não fará olhar mais de perto. Cidades são, antes de mais nada, lugares de encontro, da convivência variada e da proximidade com a diferença. Basta a existência lado a lado de muitas pessoas para que se multipliquem experiências, brotem novidades e apareçam oportunidades. Foi para isto que, um dia, saímos do campo e do que, nele, parecia insuficiência e limite. Outra coisa não defende Aristóteles: nós, os humanos, somos animais políticos. Calma, políticos, no caso, quer dizer animais que vivem na polis, na cidade. Não somos deuses ou animais, ou seja, não estamos prontos, somos uma obra meramente iniciada, cujo acabamento dependerá da abertura que formos capazes de manter diante dos outros, o que a cidade, mais do que tudo, possibilita. Recusando a cidade, recusando a presença dos outros, é a nós mesmos que estaremos privando do essencial. Então é isso: esculpimos uns aos outros, somos os nossos melhores educadores. Resta ver, primeiro, se Aristóteles está mesmo certo no que diz e, em seguida, se é assim que as cidades dos nossos dias estão sendo habitadas por nós. Não custa, daqui a quinze dias, continuar esta conversa.
Para pensar na quinzena:
“Os homens nasceram um para os outros; educa-os e padece-os” (Marco Aurélio)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.06.2012
Abra uma dessas revistas de "famosos", como se diz, ou veja uma coluna social (isto ainda existe) de um jornal qualquer. Certamente, as pessoas estarão sorrindo, não importa a situação. A proximidade de um fotógrafo gera sorrisos aos montes. Talvez seja assim mesmo, as pessoas andam felizes e, por via de consequência, sorridentes. Será? Pode ser que sim, mas pode ser que não. Penso, mas não afirmo sem mais, que estamos diante de um fenômeno da nossa época: ninguém quer parecer triste, sisudo ou preocupado. Essas imagens não vendem, desagradam, afastam. Não importa se, de fato, estamos tristes, se preferimos um pouco de solidão ou se precisamos tomar decisões que nos levam a franzir a testa (cuidado com as rugas!). Assim como uma mercadoria deve vir bem embalada, é melhor que saibamos cuidar de nossa estampa, mesmo porque as relações quase sempre param por aí mesmo, na superfície. O sorriso é um aviso, indica que seu portador é daqueles que não estão dispostos a qualquer discussão, que concordam com tudo e que, se a coisa aperta, dizem que não têm nada contra, que cada um deve levar a vida como achar melhor. Contrariamente ao que se recomendava à mulher de César, o imperador, não se precisa ser alegre, basta parecer.
Protegendo-se da dor, disfarçando o desejo, passando ao largo da própria alma, acabam como vítimas. Forçadas ao sorriso automático, perdem a chance da alegria efetiva, a que brota da coragem de ser o que somos. Alma ou desejo, é disto que vivemos, é disto que devemos cuidar ou então nos tornaremos, de fato, o que estamos tentando ser: sonâmbulos sorridentes e monstruosamente tristes.
Para pensar na quinzena:
“Não por orgulho meu, mas antes me faltar o raso da paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e fácil se contentam.” (Guimarães Rosa)
Ricardo Fenati
15.05.2012
Seguramente, uma das passagens filosóficas mais conhecidas é a Alegoria da Caverna de Platão. Tal texto se encontra em seu não menos famoso A República. Nesta passagem, a coisa se dá mais ou menos da seguinte forma: havia um grupo de homens que foram criados no interior de uma caverna, acorrentados de costas para a entrada, de modo que tudo o que conseguiam ver do mundo exterior eram as sombras, refletidas no fundo da caverna, das pessoas e dos objetos que passavam em sua entrada. Certo dia, alguém entra nessa caverna, liberta um dos prisioneiros que lá se encontrava, e o força a sair. Após relutar muito e não conseguir se opor à pessoa que o arrastava de lá, o prisioneiro finalmente chega ao lado de fora. No começo, tem grande dificuldade de conseguir enxergar as coisas. Por fim, seus olhos se acostumam à claridade, e ele passa a ver as coisas como elas são. Nisso, ele se dá conta de que o mundo real, verdadeiro, era o que estava fora da caverna, que lhe era, até então, desconhecido e contra cujo conhecimento lutara o tanto quanto pôde. Na visão de mundo de Platão, tal coisa, o conhecimento da verdade, significaria automaticamente a virtude (no campo do agir ético) e a plena realização possível da existência humana.
O dado do sentido da vida não era propriamente uma questão para os gregos. O foco, na Alegoria de Platão, é sobretudo o conhecimento da verdade em si, da ordem subjacente às coisas, da sua essência. Do modo como temos hoje, a busca pelo sentido da vida, que se processa em uma vertente muito mais individual, já que é o sujeito sozinho que busca o sentido para a sua própria existência (ainda que esse sentido possa também ser partilhado, em algum nível, com outras pessoas), é uma invenção recente: no ocidente europeizado, desponta mais fortemente na segunda metade do século XIX.
Se pudéssemos usar uma imagem, pegando emprestado o exemplo da Alegoria, é como se, posto para fora da caverna, o ser humano tivesse sucumbido da contemplação da verdade, do bem e do belo, em Platão, para o desabrigo e o desalento, em nosso tempo. Não foi a essência das coisas aquilo a que acabamos chegando, mas ao aparente vazio de sentido da existência. A impressão que se pode ter é que, para além da caverna que nos protege, mas que, como preço para isso, mantém-nos infantilizados, vedando-nos o acesso à realidade, o que nos resta é o descampado vazio, estéril, infeliz. Usando uma imagem judaico-cristã, parece, muitas vezes, que estamos diante de dois extremos irreconciliáveis: o Éden da plenitude, do sentido, da vida – do qual fomos expulsos (e que talvez também por isso, por ser lugar interditado à nossa presença, afigura-se-nos tão atraente e vivificante) – e o mundo da contingência, do trabalho, da caminhada ao qual fomos lançados, mas que, na concepção de muitos, emerge como um desterro, o lugar da provação e da purificação, espaço da não-vida, antessala expiadora da redenção, lugar da culpa por alguma razão desde sempre merecida e que deve ser purgada, posto que se a felicidade é para alguma criatura, definitivamente não deveria ser para seres precários e imperfeitos como nós.
Não deixa de ser curioso que, ao dar um passo efetivamente difícil, o de abandonar um útero de seguranças e sentidos, o ser humano se ressente da possibilidade de crescer e amadurecer, praguejando contra sua situação de desalento, sonhando com as cebolas do Egito. Nisso, acabamos por nos comportar como aquela criança birrenta, que, ao ser contrariada em algum de seus caprichos, passa a empenhar-se em fazer-se infeliz e aos demais à sua volta, não querendo tolerar o bem possível, enraivecida que está com a interdição ao bem absoluto que desejava.
O fato de sermos expulsos do útero divino (se pudéssemos ler dessa forma a simbologia do Éden), do mesmo modo como o fomos do materno, talvez não seja punição, mas condição de possibilidade para que possamos existir enquanto pessoas, enquanto seres humanos. Contudo, diante do frio e da necessidade imperiosa de passarmos a existir a partir do exercício, consciente ou não, de nossa liberdade, muitas vezes nos portamos como a tal criança birrenta.
A opção ao sentido absoluto, à verdade última não precisa ser necessariamente o niilismo, o não-sentido. Na verdade, nunca é, por mais que tentemos acreditar no contrário. Não é que optemos por algum sentido para a vida; existir, de um modo ou de outro, cria necessariamente um, pressupõe, ainda que inconscientemente, um. Podemos, é bem verdade, dizer-nos que tal sentido não é bom, que deveria haver um melhor, etc. Podemos também, ao nos darmos conta de que algo como uma verdade última, como um novo grande útero seguro e imobilizador não existe, dizer que nenhum outro sentido existe.
No entanto, ao meu ver, ao fazermos isso, não é que estaríamos desvelando a face da realidade em si; realidade supostamente vazia de sentido. Estaríamos, talvez mais propriamente, reagindo à precariedade de qualquer significação e de qualquer realização possível, que são, inevitavelmente, parciais e limitadas no tempo. É essa a realidade mais dura no que concerne à questão do sentido e da realização de nossas vidas: jamais estaremos saciados, jamais chegaremos a um ponto a respeito do qual poderemos dizer “meu caro, você possui um bom estoque, uma reserva para muitos anos; descanse, coma e beba, alegre-se” (Lc 12, 19b). A condição humana de nossa existência tem, associada a si, o insuperável da nossa incompletude e do nosso desejo de sempre mais.
O trágico nisso tudo é que, tão aferrados a nos fazermos infelizes, ante a frustração de não termos o absoluto sonhado e desejado, não nos damos conta do belo que é a fome que nos impele a seguir sempre buscando mais vida. Algo como o trecho daquele belo refrão cristão: “(...) só nossa sede nos guia”. É porque o nosso corpo está vivo, que temos fome, e é porque queremos mantê-lo assim, que comemos. Por que será, entretanto, que ao lidarmos com a fome do espírito, fome de sentido e de realização, e sua insuperável não saciedade, não conseguimos suportar tal ordem de coisas, preferindo apequenar nossa existência, abstendo-nos de caminhar?
Ante o sonho da perfeição e a realidade da vida possível, acabamos muitas vezes por abortar esta, por não conseguirmos nos libertar da ilusão onírica. E porque padecemos a realização apenas contingente do desejado e o conhecimento apenas transitório de um sentido último, preferimos minar ainda mais as condições de possibilidade de nossa vida humana, negando-nos este sentido que já temos, mas que menosprezamos, no afincado exercício imaturo de nos fazermos infelizes.
Cristiano C. Cruz
01.05.2012
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