Como é sabido e, mais do que sabido, sentido, os tempos andam bicudos. Não se trata apenas da violência explícita de cada dia, mas também da violência invisível, a dos pequenos gestos e da indelicadeza generalizada, a violência excessiva, gratuita, que todos nós, sem perceber, cometemos. Diante desse quadro, o retorno da valorização da família enquanto refúgio material e psíquico é mais do que compreensível. Na família, tratamos e somos tratados com mais condescendência, nossas faltas são mais ignoradas, somos mais pacientes do que de hábito e nossa cotação é sempre superior a que encontramos cá fora.
Bem sei que não é sempre assim, mas, não importa, é essa a imagem responsável pelo lugar de honra ocupado pela família nas pesquisas sobre as instituições merecedoras de confiança em nossa sociedade. Mas para além da eventual incorreção desta imagem, vale a pena meditar sobre o papel do receio nesta corrida, mais do que compreensível, em direção à família. Talvez haja aí menos uma decisão esclarecida e mais uma capitulação. Entretanto, o preço cobrado pela proteção decorrente do medo costuma ser alto e só pode ser pago com a cessão da liberdade. E, destituídas de liberdade, nossas escolhas terão, sempre, um fôlego tão curto quanto contraditório.
Talvez seja melhor não cedermos tão facilmente ao receio e, ao invés de encurtar tão abruptamente o nosso espaço de convivência, devamos retomar a busca de ligações mais amplas, distanciadas da facilidade do contato familiar e capazes de favorecer a construção de relações diversificadas e humanamente mais generosas. Somos feitos para a convivência, para a vida enriquecida da polis, para aprender com os que diferem de nós. Restritos apenas ao que nos é familiar, estaríamos, afinal, privados de muito do que poderíamos ser. .
Para pensar na quinzena:
“Quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens. A pluralidade é a lei da Terra (Hannah Arendt)
Ricardo Fenati
30.03.2012
À primeira vista, a discórdia está hoje mais espalhada do que nunca. Vivemos em sociedades mais e mais complexas, o que traz como conseqüência inevitável a diversidade de comportamentos, a multiplicidade de pontos de vista e a afirmação generalizada dos direitos. Tudo isto, sem dúvida, é mais que louvável, já que garante a expressão de vozes às quais um silêncio penoso sempre foi imposto. Entretanto, se observarmos mais de perto, o espetáculo das diferenças, com freqüência, não vai muito longe, contenta-se apenas em garantir a satisfação das demandas próprias de cada grupo.
Curiosamente, esta proliferação das diferenças não dá lugar a quaisquer disputas de mais longo alcance e nem a posições que não se reduzam ao nosso interesse mais imediato. Permanecendo circunscritos ao nosso espaço privado ou do grupo a que pertencemos, perdemos a oportunidade de nos aproximarmos das questões que dizem respeito à humanidade como um todo, cujas respostas desenham as sociedades e indicam as balizas no interior das quais as civilizações se desenvolvem.
Trazidas à luz e cultivadas, estas grandes questões geram a discórdia proveitosa, na medida em que nos lançam no espaço público, em meio a combates nos quais está em jogo o que há de mais precioso na existência humana. Aqui a efetiva discórdia mostra todo o seu valor: discordamos não mais em nome do que nos singulariza enquanto indivíduo ou grupo, mas em nome do que, imaginamos, todos partilham. Os tempos atuais são difíceis: discordamos exaltadamente sobre a proibição das sacolas plásticas nos supermercados, mas guardamos um silêncio embrutecedor sobre o que torna feliz a existência humana. Optando pela discórdia que nos afasta, evitamos a discórdia que nos aproximaria.
Para pensar na quinzena:
“Ilhas perdem os homens” (Carlos Drummond de Andrade).
Ricardo Fenati
15.03.2012
Passado o carnaval, hesitamos entre dois sentimentos: a culpa pelos exageros cometidos e a recordação do prazer experimentado. Como, frequentemente, a culpa ganha do prazer, vou argumentar em sentido contrário. Carnaval é inversão da ordem. Por isto, senhores comumente engravatados vestem saias, mulheres sisudas gargalham, ricos ou pobres fingem ser o que não são no resto do ano, pululam príncipes e princesas revelando uma nobreza inexistente na república. E, sobretudo, o corpo alegra-se, liberto das correntes de sua identidade habitual.
E por que esta inversão, mais que desejada, é essencial? Porque nos lembra que nós, os humanos, enlouquecemos quando somos obrigados a confinar nossa amplidão nos limites de uma função qualquer. Somos professores, esposas, pedreiros, médicas, jornalistas, maridos, bancários, engenheiros, costureiras, cozinheiros, mães, pais e filhos durante o ano e isto é essencial para que a vida continue sendo possível. Mas ai de nós se insistirmos em esgotar nossa humanidade em quaisquer papéis, por mais reconfortantes que sejam. Adoeceríamos. Precisamos, de quando em vez, da brecha carnavalesca que insiste em nos avisar da vastidão sem nome que nos constitui. O carnaval, quem diria, pode nos salvar. O carnaval do calendário ou os pequenos carnavais que nossa sagacidade, de repente, inventa.
Para pensar na quinzena:
“ O homem ultrapassa infinitamente o homem” (Pascal)
Ricardo Fenati
01.03.2012
Por que Verso e Reverso? É simples: porque nem sempre estamos próximos do que, efetivamente, vivemos ou, para dizer com palavras mais antigas, as coisas, as externas ou as internas, nem sempre são o que parecem. Com a linguagem o que se passa é ainda desconcertante: quando trazidas para o mundo das palavras, não raro o que vivemos perde suas cores originais e, mais ainda, costuma ser, voluntária ou involuntariamente, ocultado e quando reaparece o faz sob um disfarce quase irreconhecível. Então é isso: o Verso podendo ser enganoso, por que não nos voltarmos para o Reverso? Por que não, à maneira dos garimpeiros, confiar que o ouro que não aparece à vista está lá, à espera de nossa disposição para cavar?
A inteligência, como quase tudo o que se refere a nós, os humanos, é um exercício, se atrofia com o desuso e cresce com a prática. Conformar-se com o já pensado, contentar-se com o já dito, confere segurança, o que não é mau, mas empobrece nossas vidas, o que não é bom.
A cada quinze dias, juntos, eu e você, improvável leitor(a), teremos a oportunidade, bem acompanhados de terceiros e do que eles disseram, de examinar o Reverso para ver melhor.
Para pensar:
“Quando os deuses querem nos punir, atendem nossas preces.” (Oscar Wilde)
Ricardo Fenati
06.02.2012
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