Trata-se sempre, ao longo do Diário, de permitir que alguma coisa venha à luz, de acolher o que parece, de início, estranho avesso. “Às vezes posso, de improviso, de forma clara e nítida sobre determinada matéria, grandes pensamentos vagos, quase impalpáveis, que fazem com que eu de súbito me sinta muito importante. Porém, quando tento escrevê-los, acabam encolhendo e não dando em nada, e por isso também não tenho ânimo de ordená-los no papel, pois é provável que eu fique decepcionada com o ensaio insignificante que resultaria. Mas agora vou dizer uma coisa com muita ênfase: não conte com a concretização das grandes ideias vagas...
Claro, você se atém a seus pressentimentos e intuições, são fontes de onde você bebe, mas cuide para não se afogar na fonte. Organize um pouco as coisas, faça alguma higiene mental. Suas fantasias, emoções profundas etc. são o enorme oceano, dali você tem que extrair minúsculos pedaços de terra que serão outra vez inundados. Um oceano assim é por demais vasto e elementar, mas o importante são os pequenos pedaços de terra que se consegue conquistar ali.”. Isto é escrito na Holanda, em março de 1941, portanto sob a sombra perversa do nazismo.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
É com Julius Spier, psicoquirólogo judeu, paciente e discípulo de Jung, o primeiro dos encontros de Etty Hillesum e é ele quem lhe aconselha que escreva um diário. Mais tarde, irá se referirá a ele como “o obstetra de minha alma”. Suas primeiras impressões de S., é assim que ele será nomeado ao longo do Diário, são ambíguas, mas ela se diz “...muito impressionada com seu trabalho: a avaliação dos meus conflitos mais profundos através da leitura de minha segunda face: as mãos.” Ela escreve: “Lá estava eu com um bloqueio espiritual. E ele poria ordem ao caos interior, estaria à frente das forças opostas que atuam no meu conflito interno. Ele, por assim dizer, pegou-me pela mão e disse, olhe, é assim que você tem de viver. A vida inteira tive esse desejo: se pelo menos alguém me pegasse pela mão e cuidasse um pouco de mim; pareço forte e faço tudo sozinha, mas eu gostaria tanto de poder me entregar.” A atividade terapêutica é pouco ortodoxa: ginástica, lutas, exercícios de respiração, palavras, entre outras coisas. Etty vislumbra: é isso, corpo e alma são um. Uma primeira menção a Deus, um verso de um poeta holandês:
“O mundo rola melodioso na mão de Deus, essas palavras de Verwey não me saíram da cabeça o dia inteiro. Queria eu mesma rolar na melodiosa mão de Deus.
O aprendizado de si tem início, a aventura espiritual está começando. Um dia, mais adiante, S. dirá a Etty: “Tenho a impressão de ser um ‘estado preparatório’ para um grande amor teu”.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Aproveitando a publicação no Brasil do Diário de Etty Hillesum (Uma vida interrompida, ed. Âyiné, 2019), vou, nesta e nas próximas colunas, procurar transcrever e, aqui e ali, comentar trechos do Diário que possam levar os que se interessam pelo campo da mística a se debruçar sobre a sua obra, testemunha, no século XX e em meio a circunstâncias mais do que dolorosas, do vigor da experiência mística.
O diário de Etty Hillesum tem início em 9 de Março de 1941. Ela, nascida em 1914, holandesa, tem então 27 anos. "Este é um momento doloroso e quase intransponível para mim: confiar meu coração inibido a um tolo pedaço de papel pautado".Os pensamentos são claros, os sentimentos são profundos, mas é mesmo possível ordená-los por escrito? E Etty se apresenta: "É como na relação sexual, o último grito de satisfação fica sempre apertado no peito. Em termos eróticos, sou refinada e diria quase experiente o bastante para pertencer à categoria das boas amantes, e o amor então parece perfeito, mas continua a ser uma brincadeira que desvia do essencial, lá dentro algo continua preso em mim." Um pouco adiante ela continua: "... bem lá no fundo, há um novelo emaranhado, algo que me trava e de vez em quando não passo de uma pobre coitada cheia de medo, apesar da lucidez de meu pensamento".
Daí parte o que mais tarde seria percebido, em meio à barbárie nazista, como uma aventura espiritual, marcada por uma série de encontros. José Tolentino de Mendonça, que prefacia a edição portuguesa do Diário, fala desses encontros: "... o primeiro tem o nome de uma pessoa, o segundo tem o nome de um lugar; o terceiro não tem nome: é o encontro com o próprio Inominável."
Ricardo Fenati
Equipe do site
Há romances que devem ser lidos. E não porque sua leitura sirva como nossa inclusão no rol das pessoas ditas cultas. Romances, alguns grandes romances, são oportunidades raras e poderosas de autocompreensão, essa atividade para a qual contamos hoje com tão poucos recursos. Mesmo que procuremos ocultar o enigma de que somos feitos sob coisas tão banais como a expansão do consumo material ou como uma ou outra moda cultural, permaneceremos empobrecidos e isolados, reféns de uma angústia tão mais forte quanto desconhecida.
Esses grandes romances são mapas, versões poderosas da aventura humana quando ela não se recusa caminhar na direção das grandes questões que se, de um lado, nos atemorizam, de outro, são as únicas capazes de nos humanizar. Talvez seja assim mesmo, talvez a humanidade não nos seja dada de início, mas venha como um resultado sempre inacabado de nosso desejo de desvendar a que, enfim, pertencemos, de que pátria somos originários ou a que pátria somos destinados.
Esqueça o consolo fácil, e falso, da autoajuda, abra um tempo de leitura e experimente Dostoiévski. Leia, por exemplo, Crime e Castigo, a história da oscilação entre a dor e a redenção de Raskólnikov. Não se assuste, talvez seja a nossa história.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
A recomendação ao silêncio, ainda que em medida diversa, é parte constitutiva de grande parte de nossas tradições místicas, não importa se ocidentais ou orientais. E se trata de algo compreensível na medida em que a mística lida com um tipo de experiência que, não raras vezes, excede as possibilidades da linguagem e avança em direção a territórios cuja nomeação é sempre precária. E não se trata apenas do campo da mística. Mesmo no cotidiano, horas há que é o silêncio que nos dá acesso ao significado em jogo. Mas como nos assuntos humanos é sempre desejável a prudência, o recurso ao silêncio não deve nos levar à recusa da palavra.
Pode ser que nos ajude uma distinção entre silêncio e silenciamento. Silêncio é reverência diante do mistério, diante do fundo irredutível do real, silenciamento é ocultação, mascaramento, daquilo que pode e tem como ser conhecido e decifrado. Ao capitular diante do que poderia ser conhecido, do que cabe a nós compreender, estreitamos nossa existência. Recusando o exercício da linguagem, permanecemos reféns de nossas primeiras inclinações, sujeitados ao que (e a quem) nos rodeia. A linguagem é o que possibilita ir além do que é imediato e desvendar o que se oculta a um primeiro olhar, ao apetite errático dos nossos interesses.
Faltando a nós, seja como indivíduos, seja como sociedade, esse apreço pela linguagem e por sua capacidade de desvelar o que um primeiro olhar costuma ocultar, é todo um mundo de experiências que, apesar de serem contundentemente reais, permanecerá oculto e, à nossa revelia, incidirá sobre nós.
Portanto, são tempos distintos, ambos com valor, o tempo do silêncio e o tempo da palavra.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
«Interroga a graça, não a ciência; o desejo, não o intelecto; o suspiro da oração, não o anseio de ler; o esposo, não o mestre; Deus, não o homem; o nevoeiro, não a clareza. Interroga não a luz, mas o fogo que inflama todo o ser e o mergulha em Deus.»
Extraio este belíssimo final do “Itinerário da mente para Deus”, de S. Boaventura, o filósofo franciscano do século XIII, amado também por Dante, que o colocará no Paraíso.
A opção que o santo propõe é a de depor os despojos da arrogância intelectual, da soberba da alma, da busca apenas curiosa, para aportar ao abandono entre os braços da graça, à intimidade da oração e da contemplação, à chama do amor.
Um itinerário espiritual que, ainda que não rejeitando a inteligência, distende-se pela via da adesão, da intuição, da pureza de espírito. É, portanto, a proposta de um percurso mais radical e menos “calculado”, mais generoso e espontâneo que envolva toda a pessoa, e não uma só dimensão.
Há um passo que me atrai, até porque resulta algo provocatório: «Interroga o nevoeiro, não a clareza». À primeira vista, com efeito, devemos expor-nos para a luz. Boaventura, ao contrário, recorda-nos que – quando se entra no mistério de Deus –, movemo-nos às apalpadelas, no meio de uma espécie de obscuridade rasgada por lampejos.
É necessário, por isso, reconhecer o nosso limite e a cegueira que gera o infinito divino, contra toda a orgulhosa ilusão de possuir e “explicar” Deus, como pode acontecer ao fiel que modela a divindade à sua imagem e semelhança.
Acreditar é, em consequência, um ato de humildade que se manifesta precisamente na travessia através da névoa, intuindo o relampejar do rosto de Deus.
Daqui a três anos, em 2021, estaremos comemorando os 200 anos de nascimento de Dostoiévski, cuja obra não cessa de apaixonar velhos e novos leitores. Ítalo Calvino dizia que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Não é exagero considerar que alguns dos livros de Dostoiévski – indisputadamente Crime e Castigo e Os irmãos Karamázov – são, nesse sentido, clássicos. E há outros, por exemplo, Notas do Subsolo, cuja repercussão no existencialismo francês e na cultura contemporânea é mais do que evidente.
É quase um consenso entre os seus intérpretes falar de duas etapas na sua vida de escritor, divididas pela experiência da prisão e do tempo de serviço militar. O ano de 1860, data da publicação da Recordação da Casa dos Mortos, marca o início da segunda fase, na qual encontraremos os grandes romances. Como teremos quatro colunas seguidas sobre as obras do mestre russo, vamos começar pela narrativa dos anos de prisão, a Recordação da Casa dos Mortos. Recebida como um manifesto humanista, põe às claras a absurda crueldade das prisões russas, os castigos desumanos, as condições deterioradas dos presídios, os abusos no exercício do poder por parte das autoridades, enfim, um quadro cuja revelação mostrou a insustentabilidade das condições carcerárias de então. Entretanto, nós nos enganaríamos se víssemos na obra apenas um relato, ainda que importante, dessas condições.
Trata-se de um registro, é verdade, mas não só. É a partir de um ponto de vista antropológico, que não cessará de ganhar corpo nas obras seguintes, que a vida prisional é vista. Dostoiévski esteve preso e já foi dito que a temporada na prisão é uma espécie de iniciação espiritual para ele. Desprotegida dos véus com os quais o cotidiano esconde os nossos abismos, a prisão lhe aproximou da carne viva da existência humana e, isto não é um exagero, revelou Dostoiévski a Dostoiévski.
Temas que mais tarde serão aprofundados fazem aqui (quase) a sua primeira aparição: a compassividade para os humildes e humilhados, a percepção dos problemas metafísicos que rondam a existência humana, a agudeza do olhar psicológico, a oscilação entre dois destinos possíveis – a santidade e o crime –, a distinção entre a honra e a desonra. É na prisão, vivendo com os demais prisioneiros, que Dostoiévski aprende, para sempre, que a luta pelo significado e a experiência da liberdade são inseparáveis do que devemos considerar como uma vida humana.
A obra confirma o que Dostoiévski, então com 18 anos, escreve numa carta ao seu irmão Mikhail: “O homem é um enigma. Esse enigma tem de ser decifrado e se você levar a vida inteira para fazê-lo não diga que desperdiçou seu tempo. Eu me ocupo desse enigma porque quero ser um homem.”
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Na coluna anterior, nós nos perguntávamos se a tradição humanista, uma vez reconhecidos os problemas enfrentados por ela no nosso tempo, não se aproxima rapidamente do seu ocaso. E ainda mais: a possível dissolução do humanismo não repercute sobre o ideário cristão, cuja trajetória no Ocidente evidencia, até mesmo doutrinariamente, uma valorização da experiência humana? Não é uma questão de fácil resolução até porque somos mais sensíveis hoje aos problemas do que às eventuais soluções a eles apresentadas.
Os dados estão diante de nós, mas não devemos esperar dos fatos o que eles não podem dar. Estamos, isso sim, diante de uma temática claramente ética, que tem a ver com valores. Como sabemos, a existência humana não conta com a instrução de uma natureza que lhe indique caminhos a serem inevitavelmente seguidos. Por outro lado, não somos infinitamente maleáveis ou sempre dependentes da variação das circunstâncias ao nosso redor. Alguém disse um dia que tornar-se humano é um dever, o que quer dizer que o lugar real por nós habitado é esse espaço entre o que somos e o que devemos ser. Se a observação sobre nós mesmos, sobre a história da caminhada humana no tempo, indica, em parte, a materialidade de que somos constituídos, o sentimento de que nenhuma concretude exaure o enigma humano impede a nossa capitulação diante de qualquer acabamento, mesmo os mais sedutores.
Entretanto, onde está a nossa salvação, está também o risco que corremos. Se nos acostumados a habitar o espaço claro dos fatos e das certezas, o domínio do que está dado, deixaremos de ser fiéis ao que mais propriamente nos constitui, ou seja a fidelidade ao mistério a que pertencemos e ao dever de desejar daí decorrente. O que talvez abra uma outra questão: que saberes são esses, capazes de se mover nesse terreno onde o que não sabemos ainda, mas deveríamos saber, prepondera sobre o que sabemos? O que pode educar o nosso desejo?
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Humanismo é uma dessas palavras às quais, quase de imediato, damos nossa adesão. Parece consistir numa defesa do que é propriamente humano, combatendo o que ameaça destruir nossa integridade. Assim desafiar o humanismo seria opor-se ao humano, colocar-se ao lado das forças que aviltam, de algum modo, nossa existência.
Considerando historicamente, o humanismo brota no Renascimento, como se pode ver na célebre Oração sobre a Dignidade Humana, de Picco della Mirandola, prossegue no iluminismo e desemboca, mais à frente, na ênfase na história, lugar e tempo onde o humano, liberado de qualquer tutela, iria, enfim, se constituir.
Entretanto, o cenário não é mais tão simples assim.
Há os que enxergam no humanismo uma valoração indevida do humano frente ao que também constitui parte do mundo. A própria natureza teria, metaforicamente falando, seus direitos, o que é defendido pelos esforços oriundos da sensibilidade ecológica. As demais espécies, é o que se defende às vezes com um exagero que resta por ser compreendido, não devem estar à disposição dos humanos.
Há também os que, diante dos impasses a que chegou o ideário iluminista, negam qualquer possibilidade de uma compreensão mais alargada do humano e cedem o espaço a um relativismo morno, sempre cativo do tempo e do lugar..
Outros se entusiasmam pelas possibilidades decorrentes dos desenvolvimentos da biologia contemporânea e insistem em inscrever o que haveria de propriamente humano na cadeia causal que é comum a quaisquer espécies vivas.
Mas isso será tudo mesmo? A tradição humanista está com os dias contados? E a relação entre humanismo e cristianismo? Vamos prosseguir a discussão na próxima coluna.
Ricardo Fenati
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Horizonte é o que está além de nós mesmos, o que está, ainda, ao longe. E é o que, criando um intervalo, nos permite caminhar. Sem horizontes, ficamos confinados, sem espaço. Podemos estar diante de horizontes físicos como os que se apresentam à nossa vista, muitas vezes ocultados pela desorganização urbana das cidades que habitamos. Ou diante de horizontes simbólicos, esses mais sutis, cuja perda ou ocultação é mais difícil de perceber.
Horizontes simbólicos decorrem de crenças, de valores, de ideias, à luz dos quais lidamos com o ofício de existir. E que material é esse? É o que nos lembra da beleza, da bondade, do amor, da coragem, da verdade, da justiça, da alegria e do Sentido. Nada disso está à mão, nada disso nos é entregue sem trabalho, pelo contrário, tudo depende de um percurso, de uma caminhada, de um alargamento de nós mesmos, enfim, de uma aventura que é, ao mesmo tempo, pessoal e civilizatória. Estando ao longe, criam a possibilidade e a necessidade de uma caminhada, ainda que em meio à incerteza e à imprecisão.
Entretanto, como é frequente ocorrer nos assuntos humanos, há um risco. Podemos trocar a distância do horizonte pela urgência do nosso interesse, pelo que nos cerca mais imediatamente: mais dinheiro, mais poder, mais prazer, mais ideias prontas. Desaparece o intervalo que propicia o horizonte e imaginamos que, recusando as perguntas, as respostas serão entregues a nós. Não serão.
Se é verdade que esses dois caminhos sempre estiveram presentes na história, não é menos verdade que nossa época apresenta uma coloração inédita: de um lado, nunca zelamos tanto pela saciedade imediata, nunca o prazer, o poder, a acumulação material e as ideias prontas foram tão prezados e, de outro, a cultura nunca esteve tão empobrecida no que diz respeito a ideais mais distanciados da vida imediata, tornando, assim, mais estreitos os horizontes.
Somos mesmo uma época mais humanizada?
Ricardo Fenati
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Contar e ouvir histórias são costumes antigos das civilizações, atividades presentes em qualquer comunidade humana. Em torno de uma fogueira sob o céu estrelado ou no aconchego de uma sala na noite fria ou chuvosa, o que nos reúne em torno das histórias é uma mesma interrogação: quem somos nós? Se, de um lado, pertencemos, como toda a Criação, à natureza, de outro lado, somos visitados por uma inquietação persistente, que nada parece aplacar. Somos, com freqüência, incomodados por um sentimento de expatriação, como se vivêssemos ao modo de exilados de uma terra que, para nós, permanece oculta e indecifrada.
É a esse silêncio, no mais íntimo de nós, que pertencemos. É dele que brota a interrogação que nos conduz às histórias que contamos e ouvimos. Histórias são tentativas de tornar menos hostil o ambiente que nos cerca, de tornar um pouco mais amena a existência que nos abarca. Não importam os terrenos de onde brotam as histórias: mitos, religiões, filosofias, ciências. Trata-se, sempre, de criar um mundo habitável, indicando o que cumpre evitar e o que deve ser feito, marcando os caminhos a serem percorridos e os a serem abandonados, atentos ao que cabe esperar e fiéis ao depende de nós. Porque é dessa matéria que nós, os humanos, somos feitos: cabe a nós conviver com perguntas para as quais as respostas, inevitáveis, sempre parecerão acanhadas, inacabadas. Não importa, é nessa faina, é nessa oficina, que somos forjados, é esse cuidado que nos humaniza. Desistidos dele, será de nós mesmos que estaremos desistindo.
Ricardo Fenati
Equipe do site
Procure, quando puder, por Um Livro de Horas, editado em 2007. Trata-se de uma seleção dos poemas de Emily Dickinson, traduzidos e ilustrados por Ângela Lago e publicados pela editora Siciliano.
Livros de horas, uma antiga tradição, reúnem textos de natureza devocional que, socorrendo-se da espiritualidade, debruçam-se sobre as inevitáveis estações da existência. Horas há em demasia, entre tantas outras, as da alegria, as da tristeza, as do enigma e as do amor. E ao nomeá-las com delicadeza e profundidade nos textos aproximamo-nos um pouco mais de nós mesmos. Lançando mão agora da poesia, Ângela Lago enriquece a tradição. Lembra que “Desde menina costumo declamar poemas na hora de aflição. Deus, que vive em toda parte, lá no fundo de mim, escuta. E me dá de imediato o conforto da beleza”.
Nesses tempos em que a linguagem parece confinada seja pelo pragmatismo do dia a dia, seja pela violência da certeza, é da poesia que podemos lançar mão se não quisermos perder de vista a existência propriamente humana que, nas suas horas mais significativas, transcorre em alto mar. Despossuídos da poesia, perderíamos a carta de navegação.
E para a hora da verdade no Livro de Horas:
“Fale a verdade toda, mas fale de viés.
No rodeio está o sucesso.
Para nossa frágil felicidade,
A surpresa da verdade brilha em excesso.
Como o raio que por bondade,
Alguém explica a criança que se assusta,
Deve brilhar pouco a pouco a verdade,
Ou todos seremos cegos à sua custa”
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Bom humor, bom humor mesmo, pouco tem a ver com essa alegria que as pessoas julgam obrigatória nas intermináveis fotos do FB e redes semelhantes. E muito menos na ostentação de uma suposta felicidade, que hoje parece ser um dever coletivo. O bom humor, pelo menos um que seja mais duradouro, brota é de um certo olhar sobre nós mesmos, da capacidade de rir de nós mesmos, de uma espécie de desinflação psíquica. De fato, está passando da hora de reconhecermos que não somos tão bons quanto nos julgamos, nem tão inteligentes, nem tão perspicazes quanto gostamos de parecer. E nem nossos adversários são tão estúpidos, ignorantes ou passíveis de suspeição quando alardeamos. A linha que divide bons e maus existe, embora não seja tão nítida como desejamos. E mais; nenhum de nós está o tempo todo do lado bom. O mundo, o mundo real, não cabe inteiro nos nossos discursos por mais articulados que pareçam. Sobra sempre, ainda bem. O ódio que cultivamos, a indignação que esbravejamos, não poucas vezes, fala mais de nós mesmos e não tanto sobre os outros. Claro, não é o caso de defender nenhum indiferentismo e nem afirmar que todos os gatos são igualmente pardos. Não são, mas um bom humor desse tipo parece necessário se quisermos, de fato, retomar a conversação entre nós, sair de nossas ilhas, relaxar nossas defesas. Embora andemos esquecidos, fomos feitos, nós, os humanos, uns para os outros, para que nos eduquemos mutuamente. E não para essa raiva surda, cheia de certezas e, suspeito, desesperada, que tem marcado nosso cotidiano. E lembrando Fernando Pessoa andamos precisando de um Esteves. Não um Esteves sem metafísica, que a metafísica tem lá seu encanto, mas um Esteves que nos tire do nosso endurecido mal humor.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Um bocado de coisas, certamente, mas não adianta prometer sem provar. Se não der para provar, e prova é uma palavra quase inaplicável em filosofia, quem sabe será possível convencer a que todos nós prestemos mais atenção nas questões propostas pelos filósofos e nos textos que escritos por eles.
É comum, nos livros de introdução, insistir que a filosofia é um esforço para pensar um pouco mais, para refletir sobre aqueles pontos cuja verdade damos por suposta e acertada. É uma boa definição que esclarece, sem esgotar, o sentido da filosofia. Um exemplo? Pode ser a ideia de imaginação, o modo como usamos essa expressão no cotidiano. Não poucas vezes, para não dizer quase sempre, a palavra imaginação é associada por nós a uma espécie de saída ou retirada da realidade. Ou ainda como algo menos que real. Muito imaginativo é alguém cuja conversa pode ser atraente, mas permanece distanciada daquilo que conta, o tal real. Outras vezes imaginar é recordar mentalmente algo que já vivemos, por exemplo, a praia de férias inesquecíveis ou algo que desejamos mais à frente, uma viagem a Portugal.
A imaginação não teria a seriedade da razão, que está sempre disposta a apontar as coisas tais como são e não como gostáramos que fossem. Usamos a expressão assim e às vezes esse uso dá conta do que estamos vivendo. Mas nem por isso devemos tomar um uso específico pela totalidade do significado que um termo encerra. Imaginação pode ser mais do que isso, pode ser bem diferente disso. Uma obra de arte, a Noite Estrelada de Van Gogh, uma teoria científica, a mecânica newtoniana, uma obra literária, o Dom Casmurro, a hipótese freudiana do inconsciente, não são exercícios de imaginação? Você discorda? Veja o argumento. Certamente nenhum desses exemplos pode ser observado diretamente, nenhum é uma espécie de cópia ou retrato de algo que observamos. Capitu não anda por aí, a gravidade não pode ser vista, as noites que vemos não parecem em nada com a de Van Gogh e nem encontramos o inconsciente numa esquina qualquer. Portanto, cabem na ideia de imaginação como algo irreal, algo a que falta o peso do real.
Será assim? Que são atividades da imaginação, todos concordamos. Mas a discordância terá início quando percebermos que estamos diante de 4 instrumentos, cada um a seu modo, decifradores da realidade. Descortinam um excesso de realidade que uma visão estreita ocultava. Sem o exercício da imaginação, permaneceríamos atados a essa fração diminuta da experiência que confundimos tão equivocadamente com o real. Não é despropositado, e nem contrário à nossa experiência, lembrar que sem a imaginação, essa aparente louca na casa da razão, a nossa presença no mundo e o próprio mundo estariam severamente empobrecidos.
Vez por outra, não vale a pena nos voltarmos para uma discussão em filosofia?
Ricardo Fenati
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Pena que o filme – Silêncio – tenha ficado tão pouco tempo em cartaz. Não faz mal, se não possível acessar o filme, o livro está disponível e sua leitura favorece a discussão de um bocado de temas. Por exemplo, o cotejo de civilizações em tudo distintas: visão de mundo, crenças e costumes. A convivência, para não dizer o encontro, é mesmo possível? No caso trata-se da presença do cristianismo no Japão dos séculos 16 e 17, acolhida de início e, em seguida, objeto de uma perseguição tenaz. Culturas são mesmo mutuamente excludentes ou é possível que esses encontros sejam marcados por uma dosagem adequada que evite tanto a reiteração da mensagem original como a sua completa diluição? É melhor garantir formas de proteção que mantenham intactas as culturas originais ou deve ser buscado algum terreno comum que, habitado pelas culturas em questão, não seja esgotado por nenhuma delas? Costumamos aceitar a convivência entre culturas quando se trata de temas onde as diferenças não são significativas, o que costuma ocorrer, por exemplo, no campo das ciências da natureza ou nas tecnologias. Nesse caso, o esforço de aproximação é quase desnecessário, visto não haver, ou quase, qualquer singularidade. Mas não é verdade que a aproximação seria mais desejável justamente a partir dos campos onde, de início, a diversidade é mais acentuada e as diferenças mais significativas? Não é aí que é provada nossa capacidade de escuta e aprendizagem? Não me parece haver, no longo prazo, uma alternativa, mesmo porque a mera reafirmação da diversidade desemboca não poucas vezes, como sabemos, na indiferença. Mas essa é apenas uma das questões que justificam, com sobras, ver o filme e ler o livro. Das outras, de algumas delas, trataremos a seguir.
Ricardo Fenati
Equipe do site
Parafraseando o texto bíblico, talvez devamos dizer que assim como há horas de proclamar, de alardear o que pensamos, há, também, horas em que o recomendável é escutar. Se nenhuma narração disponível é capaz, minimamente, de nos reunir, e se desistir está fora de questão, quem sabe não é caso de fazer como o velho marinheiro que durante o nevoeiro toca o barco mais devagar? Talvez o nosso tempo seja mesmo, ou deva ser, um tempo de escuta mútua. E a escuta, mútua, é um passo além da diversidade. Se o começo é a afirmação da diferença, reação legítima a uma uniformidade que mais cerceava do que abrigava, o passo seguinte não pode ser a indiferença, disfarçada de respeito ao quadrado de cada um. Diferenças assinalam a infinita complexidade da existência humana, as variadas formas de interpretar o silêncio que está na nossa origem. Diferenças, entretanto, não são confinamentos, são respostas distintas a aquilo que, no nível mais fundamental, nós compartilhamos: a condição humana, suas dores, seus deleites. Se somos estranhos enquanto espécie, não somos estranhos uns aos outros, somos, isso sim, feitos de uma mesma matéria, a condição humana. Ao invés da brutalidade suicida da inclinação mais imediata – o recurso sempre fácil, e inócuo, ao medo e ao ódio -, pode ser que seja hora de ouvirmos uns dos outros as histórias a que pertencemos e o que elas nos ensinam sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, a felicidade e a infelicidade. Talvez, assim, o nevoeiro se dissipe um pouco.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Épocas existem em que parece haver uma concordância generalizada em relação a crenças, valores e costumes. Quando mais abrangentes, falamos da Idade Média como uma época dominada pela religião ou, quando mais modestos, nos referimos ao tempo de nossa infância. À distância, agora, o mundo parece ter sido assim. Terá sido mesmo? Aí, como se diz, são outros quinhentos. O que lembra um verso de Fernando Pessoa: “Fui feliz outrora? Fui-o outrora agora”. Hoje, ao contrário, não apenas assistimos a uma dispersão generalizada do que se crê, mas nos habituamos a defendê-la como um princípio. Entretanto, um olhar mais atento já percebe, aqui e ali, sinais de que esse cenário, antes entendido como absolutamente libertário, corrói a possibilidade da construção daquele mínimo de compartilhamento que torna possível a vida humana em comum.
É crescente o sentimento, mesmo que não tematizado, de que a segmentação de nossas cidades – bairros e regiões com circulação cada vez mais interna –, acompanhada da crescente indisposição de discutir com quem diverge de nós, trai o próprio significado da cidadania. Não é outra coisa o que Aristóteles quis dizer quando nos definiu, a nós, os humanos, como animais políticos, animais que vivem, e só podem viver humanamente, na proximidade uns dos outros. Diante desse panorama, já que nenhum dos dois caminhos habituais parece satisfatório - ambos nos isolam: seja o do medo, seja o do ódio – resta a alternativa com que sempre podemos contar: retomar a conversação.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Há palavras irrecuperáveis, ou quase. Passividade é uma delas, indica, logo de saída, um tom, um modo de ser que ninguém vê com bons olhos. Pelo contrário, recomenda-se que sejamos ativos e, mais, pró-ativos. Proatividade, se já não é, não demorará a ser recomendada como um programa gerador de sucesso. Contra a inércia, a indecisão, a hesitação, há sempre os que bradam em favor da proatividade. Isso, está bem, faz algum sentido. Mas não tanto como vem sendo costume pensar.
Há qualquer coisa na vida que passa ao largo da atividade. Em parte, é assim mesmo, construímos nossa biografia. Optamos ou recusamos, optamos e recusamos e, pouco a pouco, vamos dando forma a nós mesmo. Mas sob essa superfície não há um rumor de fundo, vindo de camadas muito remotas de nossa existência, que nos lembra que não comandamos a existência, que não somos senhores de nós mesmos, que somos peregrinos sempre surpreendidos entre uma origem e um fim que permanecem ocultos? Não há em cada um de nós, espaços aos quais pertencemos e que, mesmo presentes a todo o tempo, permanecem inomináveis? Apesar do esforço continuado de estabelecer margens e limites, um esforço quase sempre marcado pelo receio, não há em nós, e não haverá sempre, territórios tão íntimos quanto desconhecidos? E diante da existência disso que não podendo ser alcançado nos alcança, não nos cabe uma certa reverência, uma passividade atenta, uma escuta refinada, um padecimento consentido? Talvez passividade, que sempre entendemos como o contrário, o contrário vazio, da ação, possa, quem sabe, em muitas circunstâncias ser vista como uma forma ainda mais refinada de ação, a difícil arte de se haver com o que, sendo nós mesmos, nos excede. Se não me engano, é de George Steiner a lembrança de que nos momentos decisivos somos estrangeiros a nós mesmos. Pois é.
Para pensar um pouco mais: “Nunca um homem está mais ativo que quando nada faz, nunca está menos só do que quando a sós consigo mesmo” (Catão, segundo Cícero, citado por Hannah Arendt)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Ao invés de nos contentarmos apenas com o que vem das ciências humanas, ou de qualquer ciência, ganharíamos todos se nos ocupássemos mais da literatura. Literatura como conhecimento. Esbarro numa passagem de Dostoievski, retirada d’ Os Irmãos Karamázov, um livro, essa é a definição de um clássico, que não tem como ser esgotado. A obra é conhecida, foi publicada nas décadas finais do século XIX e apresenta, com maestria literária apaixonada, uma discussão que, vinda de mais longe, atravessa a história espiritual do Ocidente. O desejo da suficiência humana. Diz o texto: “O homem alcançará sua grandeza imbuindo-se do espírito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem-deus. Vencendo, a cada hora, com sua vontade e ciência, uma natureza já sem limites, o homem sentirá assim e a cada hora um gozo tão elevado que este lhe substituirá todas as antigas esperanças no gozo celestial.” Se o cerne da modernidade é esse desejo de um domínio absoluto, o que a Ivan Karamázov parece evidente, não é menos verdade que o nosso personagem é atormentado pela percepção de que esse projeto talvez venha a se apresentar com uma face inversa à esperada. Estamos diante de um drama histórico, com forte significado na Rússia de então, e de um problema com largo e permanente alcance metafísico.
O projeto assinalado na citação acima se torna dia a dia mais real e as esperanças depositadas nas tecnologias de alto impacto social e humano são crescentes. O sonho de um homem-deus, para usar a expressão do autor, é uma utopia bem desejada, uma esperança acalentada no silêncio dos laboratórios. Entretanto o nosso receio diante desse cenário não é menos real. Não é de modo algum evidente que os benefícios esperados do incremento de nosso poder não tragam conseqüências capazes de relativizar, e muito, a esperança depositada no desenvolvimento tecnológico. Assim, não é difícil nos reconhecermos na temática do texto e basta um pouco de atenção ao que se passa à nossa volta para aceitar que, como é costume dizer hoje, somos – ou deveríamos ser - todos Ivan Karamázov.
Tratar o problema na vivacidade e na polifonia do texto literário dá margem a uma densidade que ultrapassa de muito a limitação e a assepsia própria de textos mais próximos das normas que imperam nas ciências. Vale a pena conferir.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
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