Humanismo é uma dessas palavras às quais, quase de imediato, damos nossa adesão. Parece consistir numa defesa do que é propriamente humano, combatendo o que ameaça destruir nossa integridade. Assim desafiar o humanismo seria opor-se ao humano, colocar-se ao lado das forças que aviltam, de algum modo, nossa existência.
Considerando historicamente, o humanismo brota no Renascimento, como se pode ver na célebre Oração sobre a Dignidade Humana, de Picco della Mirandola, prossegue no iluminismo e desemboca, mais à frente, na ênfase na história, lugar e tempo onde o humano, liberado de qualquer tutela, iria, enfim, se constituir.
Entretanto, o cenário não é mais tão simples assim.
Há os que enxergam no humanismo uma valoração indevida do humano frente ao que também constitui parte do mundo. A própria natureza teria, metaforicamente falando, seus direitos, o que é defendido pelos esforços oriundos da sensibilidade ecológica. As demais espécies, é o que se defende às vezes com um exagero que resta por ser compreendido, não devem estar à disposição dos humanos.
Há também os que, diante dos impasses a que chegou o ideário iluminista, negam qualquer possibilidade de uma compreensão mais alargada do humano e cedem o espaço a um relativismo morno, sempre cativo do tempo e do lugar..
Outros se entusiasmam pelas possibilidades decorrentes dos desenvolvimentos da biologia contemporânea e insistem em inscrever o que haveria de propriamente humano na cadeia causal que é comum a quaisquer espécies vivas.
Mas isso será tudo mesmo? A tradição humanista está com os dias contados? E a relação entre humanismo e cristianismo? Vamos prosseguir a discussão na próxima coluna.
Ricardo Fenati
Equipe do site
Horizonte é o que está além de nós mesmos, o que está, ainda, ao longe. E é o que, criando um intervalo, nos permite caminhar. Sem horizontes, ficamos confinados, sem espaço. Podemos estar diante de horizontes físicos como os que se apresentam à nossa vista, muitas vezes ocultados pela desorganização urbana das cidades que habitamos. Ou diante de horizontes simbólicos, esses mais sutis, cuja perda ou ocultação é mais difícil de perceber.
Horizontes simbólicos decorrem de crenças, de valores, de ideias, à luz dos quais lidamos com o ofício de existir. E que material é esse? É o que nos lembra da beleza, da bondade, do amor, da coragem, da verdade, da justiça, da alegria e do Sentido. Nada disso está à mão, nada disso nos é entregue sem trabalho, pelo contrário, tudo depende de um percurso, de uma caminhada, de um alargamento de nós mesmos, enfim, de uma aventura que é, ao mesmo tempo, pessoal e civilizatória. Estando ao longe, criam a possibilidade e a necessidade de uma caminhada, ainda que em meio à incerteza e à imprecisão.
Entretanto, como é frequente ocorrer nos assuntos humanos, há um risco. Podemos trocar a distância do horizonte pela urgência do nosso interesse, pelo que nos cerca mais imediatamente: mais dinheiro, mais poder, mais prazer, mais ideias prontas. Desaparece o intervalo que propicia o horizonte e imaginamos que, recusando as perguntas, as respostas serão entregues a nós. Não serão.
Se é verdade que esses dois caminhos sempre estiveram presentes na história, não é menos verdade que nossa época apresenta uma coloração inédita: de um lado, nunca zelamos tanto pela saciedade imediata, nunca o prazer, o poder, a acumulação material e as ideias prontas foram tão prezados e, de outro, a cultura nunca esteve tão empobrecida no que diz respeito a ideais mais distanciados da vida imediata, tornando, assim, mais estreitos os horizontes.
Somos mesmo uma época mais humanizada?
Ricardo Fenati
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Contar e ouvir histórias são costumes antigos das civilizações, atividades presentes em qualquer comunidade humana. Em torno de uma fogueira sob o céu estrelado ou no aconchego de uma sala na noite fria ou chuvosa, o que nos reúne em torno das histórias é uma mesma interrogação: quem somos nós? Se, de um lado, pertencemos, como toda a Criação, à natureza, de outro lado, somos visitados por uma inquietação persistente, que nada parece aplacar. Somos, com freqüência, incomodados por um sentimento de expatriação, como se vivêssemos ao modo de exilados de uma terra que, para nós, permanece oculta e indecifrada.
É a esse silêncio, no mais íntimo de nós, que pertencemos. É dele que brota a interrogação que nos conduz às histórias que contamos e ouvimos. Histórias são tentativas de tornar menos hostil o ambiente que nos cerca, de tornar um pouco mais amena a existência que nos abarca. Não importam os terrenos de onde brotam as histórias: mitos, religiões, filosofias, ciências. Trata-se, sempre, de criar um mundo habitável, indicando o que cumpre evitar e o que deve ser feito, marcando os caminhos a serem percorridos e os a serem abandonados, atentos ao que cabe esperar e fiéis ao depende de nós. Porque é dessa matéria que nós, os humanos, somos feitos: cabe a nós conviver com perguntas para as quais as respostas, inevitáveis, sempre parecerão acanhadas, inacabadas. Não importa, é nessa faina, é nessa oficina, que somos forjados, é esse cuidado que nos humaniza. Desistidos dele, será de nós mesmos que estaremos desistindo.
Ricardo Fenati
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Procure, quando puder, por Um Livro de Horas, editado em 2007. Trata-se de uma seleção dos poemas de Emily Dickinson, traduzidos e ilustrados por Ângela Lago e publicados pela editora Siciliano.
Livros de horas, uma antiga tradição, reúnem textos de natureza devocional que, socorrendo-se da espiritualidade, debruçam-se sobre as inevitáveis estações da existência. Horas há em demasia, entre tantas outras, as da alegria, as da tristeza, as do enigma e as do amor. E ao nomeá-las com delicadeza e profundidade nos textos aproximamo-nos um pouco mais de nós mesmos. Lançando mão agora da poesia, Ângela Lago enriquece a tradição. Lembra que “Desde menina costumo declamar poemas na hora de aflição. Deus, que vive em toda parte, lá no fundo de mim, escuta. E me dá de imediato o conforto da beleza”.
Nesses tempos em que a linguagem parece confinada seja pelo pragmatismo do dia a dia, seja pela violência da certeza, é da poesia que podemos lançar mão se não quisermos perder de vista a existência propriamente humana que, nas suas horas mais significativas, transcorre em alto mar. Despossuídos da poesia, perderíamos a carta de navegação.
E para a hora da verdade no Livro de Horas:
“Fale a verdade toda, mas fale de viés.
No rodeio está o sucesso.
Para nossa frágil felicidade,
A surpresa da verdade brilha em excesso.
Como o raio que por bondade,
Alguém explica a criança que se assusta,
Deve brilhar pouco a pouco a verdade,
Ou todos seremos cegos à sua custa”
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Bom humor, bom humor mesmo, pouco tem a ver com essa alegria que as pessoas julgam obrigatória nas intermináveis fotos do FB e redes semelhantes. E muito menos na ostentação de uma suposta felicidade, que hoje parece ser um dever coletivo. O bom humor, pelo menos um que seja mais duradouro, brota é de um certo olhar sobre nós mesmos, da capacidade de rir de nós mesmos, de uma espécie de desinflação psíquica. De fato, está passando da hora de reconhecermos que não somos tão bons quanto nos julgamos, nem tão inteligentes, nem tão perspicazes quanto gostamos de parecer. E nem nossos adversários são tão estúpidos, ignorantes ou passíveis de suspeição quando alardeamos. A linha que divide bons e maus existe, embora não seja tão nítida como desejamos. E mais; nenhum de nós está o tempo todo do lado bom. O mundo, o mundo real, não cabe inteiro nos nossos discursos por mais articulados que pareçam. Sobra sempre, ainda bem. O ódio que cultivamos, a indignação que esbravejamos, não poucas vezes, fala mais de nós mesmos e não tanto sobre os outros. Claro, não é o caso de defender nenhum indiferentismo e nem afirmar que todos os gatos são igualmente pardos. Não são, mas um bom humor desse tipo parece necessário se quisermos, de fato, retomar a conversação entre nós, sair de nossas ilhas, relaxar nossas defesas. Embora andemos esquecidos, fomos feitos, nós, os humanos, uns para os outros, para que nos eduquemos mutuamente. E não para essa raiva surda, cheia de certezas e, suspeito, desesperada, que tem marcado nosso cotidiano. E lembrando Fernando Pessoa andamos precisando de um Esteves. Não um Esteves sem metafísica, que a metafísica tem lá seu encanto, mas um Esteves que nos tire do nosso endurecido mal humor.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Um bocado de coisas, certamente, mas não adianta prometer sem provar. Se não der para provar, e prova é uma palavra quase inaplicável em filosofia, quem sabe será possível convencer a que todos nós prestemos mais atenção nas questões propostas pelos filósofos e nos textos que escritos por eles.
É comum, nos livros de introdução, insistir que a filosofia é um esforço para pensar um pouco mais, para refletir sobre aqueles pontos cuja verdade damos por suposta e acertada. É uma boa definição que esclarece, sem esgotar, o sentido da filosofia. Um exemplo? Pode ser a ideia de imaginação, o modo como usamos essa expressão no cotidiano. Não poucas vezes, para não dizer quase sempre, a palavra imaginação é associada por nós a uma espécie de saída ou retirada da realidade. Ou ainda como algo menos que real. Muito imaginativo é alguém cuja conversa pode ser atraente, mas permanece distanciada daquilo que conta, o tal real. Outras vezes imaginar é recordar mentalmente algo que já vivemos, por exemplo, a praia de férias inesquecíveis ou algo que desejamos mais à frente, uma viagem a Portugal.
A imaginação não teria a seriedade da razão, que está sempre disposta a apontar as coisas tais como são e não como gostáramos que fossem. Usamos a expressão assim e às vezes esse uso dá conta do que estamos vivendo. Mas nem por isso devemos tomar um uso específico pela totalidade do significado que um termo encerra. Imaginação pode ser mais do que isso, pode ser bem diferente disso. Uma obra de arte, a Noite Estrelada de Van Gogh, uma teoria científica, a mecânica newtoniana, uma obra literária, o Dom Casmurro, a hipótese freudiana do inconsciente, não são exercícios de imaginação? Você discorda? Veja o argumento. Certamente nenhum desses exemplos pode ser observado diretamente, nenhum é uma espécie de cópia ou retrato de algo que observamos. Capitu não anda por aí, a gravidade não pode ser vista, as noites que vemos não parecem em nada com a de Van Gogh e nem encontramos o inconsciente numa esquina qualquer. Portanto, cabem na ideia de imaginação como algo irreal, algo a que falta o peso do real.
Será assim? Que são atividades da imaginação, todos concordamos. Mas a discordância terá início quando percebermos que estamos diante de 4 instrumentos, cada um a seu modo, decifradores da realidade. Descortinam um excesso de realidade que uma visão estreita ocultava. Sem o exercício da imaginação, permaneceríamos atados a essa fração diminuta da experiência que confundimos tão equivocadamente com o real. Não é despropositado, e nem contrário à nossa experiência, lembrar que sem a imaginação, essa aparente louca na casa da razão, a nossa presença no mundo e o próprio mundo estariam severamente empobrecidos.
Vez por outra, não vale a pena nos voltarmos para uma discussão em filosofia?
Ricardo Fenati
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Pena que o filme – Silêncio – tenha ficado tão pouco tempo em cartaz. Não faz mal, se não possível acessar o filme, o livro está disponível e sua leitura favorece a discussão de um bocado de temas. Por exemplo, o cotejo de civilizações em tudo distintas: visão de mundo, crenças e costumes. A convivência, para não dizer o encontro, é mesmo possível? No caso trata-se da presença do cristianismo no Japão dos séculos 16 e 17, acolhida de início e, em seguida, objeto de uma perseguição tenaz. Culturas são mesmo mutuamente excludentes ou é possível que esses encontros sejam marcados por uma dosagem adequada que evite tanto a reiteração da mensagem original como a sua completa diluição? É melhor garantir formas de proteção que mantenham intactas as culturas originais ou deve ser buscado algum terreno comum que, habitado pelas culturas em questão, não seja esgotado por nenhuma delas? Costumamos aceitar a convivência entre culturas quando se trata de temas onde as diferenças não são significativas, o que costuma ocorrer, por exemplo, no campo das ciências da natureza ou nas tecnologias. Nesse caso, o esforço de aproximação é quase desnecessário, visto não haver, ou quase, qualquer singularidade. Mas não é verdade que a aproximação seria mais desejável justamente a partir dos campos onde, de início, a diversidade é mais acentuada e as diferenças mais significativas? Não é aí que é provada nossa capacidade de escuta e aprendizagem? Não me parece haver, no longo prazo, uma alternativa, mesmo porque a mera reafirmação da diversidade desemboca não poucas vezes, como sabemos, na indiferença. Mas essa é apenas uma das questões que justificam, com sobras, ver o filme e ler o livro. Das outras, de algumas delas, trataremos a seguir.
Ricardo Fenati
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Parafraseando o texto bíblico, talvez devamos dizer que assim como há horas de proclamar, de alardear o que pensamos, há, também, horas em que o recomendável é escutar. Se nenhuma narração disponível é capaz, minimamente, de nos reunir, e se desistir está fora de questão, quem sabe não é caso de fazer como o velho marinheiro que durante o nevoeiro toca o barco mais devagar? Talvez o nosso tempo seja mesmo, ou deva ser, um tempo de escuta mútua. E a escuta, mútua, é um passo além da diversidade. Se o começo é a afirmação da diferença, reação legítima a uma uniformidade que mais cerceava do que abrigava, o passo seguinte não pode ser a indiferença, disfarçada de respeito ao quadrado de cada um. Diferenças assinalam a infinita complexidade da existência humana, as variadas formas de interpretar o silêncio que está na nossa origem. Diferenças, entretanto, não são confinamentos, são respostas distintas a aquilo que, no nível mais fundamental, nós compartilhamos: a condição humana, suas dores, seus deleites. Se somos estranhos enquanto espécie, não somos estranhos uns aos outros, somos, isso sim, feitos de uma mesma matéria, a condição humana. Ao invés da brutalidade suicida da inclinação mais imediata – o recurso sempre fácil, e inócuo, ao medo e ao ódio -, pode ser que seja hora de ouvirmos uns dos outros as histórias a que pertencemos e o que elas nos ensinam sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, a felicidade e a infelicidade. Talvez, assim, o nevoeiro se dissipe um pouco.
Ricardo Fenati
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Épocas existem em que parece haver uma concordância generalizada em relação a crenças, valores e costumes. Quando mais abrangentes, falamos da Idade Média como uma época dominada pela religião ou, quando mais modestos, nos referimos ao tempo de nossa infância. À distância, agora, o mundo parece ter sido assim. Terá sido mesmo? Aí, como se diz, são outros quinhentos. O que lembra um verso de Fernando Pessoa: “Fui feliz outrora? Fui-o outrora agora”. Hoje, ao contrário, não apenas assistimos a uma dispersão generalizada do que se crê, mas nos habituamos a defendê-la como um princípio. Entretanto, um olhar mais atento já percebe, aqui e ali, sinais de que esse cenário, antes entendido como absolutamente libertário, corrói a possibilidade da construção daquele mínimo de compartilhamento que torna possível a vida humana em comum.
É crescente o sentimento, mesmo que não tematizado, de que a segmentação de nossas cidades – bairros e regiões com circulação cada vez mais interna –, acompanhada da crescente indisposição de discutir com quem diverge de nós, trai o próprio significado da cidadania. Não é outra coisa o que Aristóteles quis dizer quando nos definiu, a nós, os humanos, como animais políticos, animais que vivem, e só podem viver humanamente, na proximidade uns dos outros. Diante desse panorama, já que nenhum dos dois caminhos habituais parece satisfatório - ambos nos isolam: seja o do medo, seja o do ódio – resta a alternativa com que sempre podemos contar: retomar a conversação.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Há palavras irrecuperáveis, ou quase. Passividade é uma delas, indica, logo de saída, um tom, um modo de ser que ninguém vê com bons olhos. Pelo contrário, recomenda-se que sejamos ativos e, mais, pró-ativos. Proatividade, se já não é, não demorará a ser recomendada como um programa gerador de sucesso. Contra a inércia, a indecisão, a hesitação, há sempre os que bradam em favor da proatividade. Isso, está bem, faz algum sentido. Mas não tanto como vem sendo costume pensar.
Há qualquer coisa na vida que passa ao largo da atividade. Em parte, é assim mesmo, construímos nossa biografia. Optamos ou recusamos, optamos e recusamos e, pouco a pouco, vamos dando forma a nós mesmo. Mas sob essa superfície não há um rumor de fundo, vindo de camadas muito remotas de nossa existência, que nos lembra que não comandamos a existência, que não somos senhores de nós mesmos, que somos peregrinos sempre surpreendidos entre uma origem e um fim que permanecem ocultos? Não há em cada um de nós, espaços aos quais pertencemos e que, mesmo presentes a todo o tempo, permanecem inomináveis? Apesar do esforço continuado de estabelecer margens e limites, um esforço quase sempre marcado pelo receio, não há em nós, e não haverá sempre, territórios tão íntimos quanto desconhecidos? E diante da existência disso que não podendo ser alcançado nos alcança, não nos cabe uma certa reverência, uma passividade atenta, uma escuta refinada, um padecimento consentido? Talvez passividade, que sempre entendemos como o contrário, o contrário vazio, da ação, possa, quem sabe, em muitas circunstâncias ser vista como uma forma ainda mais refinada de ação, a difícil arte de se haver com o que, sendo nós mesmos, nos excede. Se não me engano, é de George Steiner a lembrança de que nos momentos decisivos somos estrangeiros a nós mesmos. Pois é.
Para pensar um pouco mais: “Nunca um homem está mais ativo que quando nada faz, nunca está menos só do que quando a sós consigo mesmo” (Catão, segundo Cícero, citado por Hannah Arendt)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Ao invés de nos contentarmos apenas com o que vem das ciências humanas, ou de qualquer ciência, ganharíamos todos se nos ocupássemos mais da literatura. Literatura como conhecimento. Esbarro numa passagem de Dostoievski, retirada d’ Os Irmãos Karamázov, um livro, essa é a definição de um clássico, que não tem como ser esgotado. A obra é conhecida, foi publicada nas décadas finais do século XIX e apresenta, com maestria literária apaixonada, uma discussão que, vinda de mais longe, atravessa a história espiritual do Ocidente. O desejo da suficiência humana. Diz o texto: “O homem alcançará sua grandeza imbuindo-se do espírito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem-deus. Vencendo, a cada hora, com sua vontade e ciência, uma natureza já sem limites, o homem sentirá assim e a cada hora um gozo tão elevado que este lhe substituirá todas as antigas esperanças no gozo celestial.” Se o cerne da modernidade é esse desejo de um domínio absoluto, o que a Ivan Karamázov parece evidente, não é menos verdade que o nosso personagem é atormentado pela percepção de que esse projeto talvez venha a se apresentar com uma face inversa à esperada. Estamos diante de um drama histórico, com forte significado na Rússia de então, e de um problema com largo e permanente alcance metafísico.
O projeto assinalado na citação acima se torna dia a dia mais real e as esperanças depositadas nas tecnologias de alto impacto social e humano são crescentes. O sonho de um homem-deus, para usar a expressão do autor, é uma utopia bem desejada, uma esperança acalentada no silêncio dos laboratórios. Entretanto o nosso receio diante desse cenário não é menos real. Não é de modo algum evidente que os benefícios esperados do incremento de nosso poder não tragam conseqüências capazes de relativizar, e muito, a esperança depositada no desenvolvimento tecnológico. Assim, não é difícil nos reconhecermos na temática do texto e basta um pouco de atenção ao que se passa à nossa volta para aceitar que, como é costume dizer hoje, somos – ou deveríamos ser - todos Ivan Karamázov.
Tratar o problema na vivacidade e na polifonia do texto literário dá margem a uma densidade que ultrapassa de muito a limitação e a assepsia própria de textos mais próximos das normas que imperam nas ciências. Vale a pena conferir.
Ricardo Fenati
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Se falamos tanto de ética é porque, na prática, ela se tornou rara. Estivesse mais presente, não falaríamos tanto. É o que corre por aí. Pode ser, o que não quer dizer que se silenciássemos a ética estaria de volta. Não, é preciso discutir, clarear, debater. Não é exagero dizer que onde houver vida humana haverá uma dimensão ética. Ética tem a ver com valores, com o que vale, com o que nos guia, já que do nosso acervo instintivo recebemos apenas uma meia instrução. A esse quase silêncio da natureza em nós, acrescentamos o que defendemos, o que acreditamos, o que consideramos que torna a vida digna, valiosa, e, na medida do que for possível, feliz. Ética brota da liberdade, esse intervalo, essa incerteza onde nos constituímos através de nossas ações. E chamamos de ação aquilo que, tendo feito, poderíamos não fazer. Ou tendo optado por não fazer, poderíamos ter feito. Supressa essa dimensão e aceita a postulação de que somos determinados inequivocamente por algum fator, já não cabe falar em vida ética.
Nesse sentido, apenas nós, os humanos, agimos, apenas de nós pode ser cobrada responsabilidade. Responsabilizar a natureza pela ocorrência de tsunamis ou culpar a vaca do vizinho pela destruição da nossa horta é mera tolice. Ao contrário, cabe a nós seja cercar melhor a horta, seja reconhecer o vínculo entre nossas ações e o que se passa na natureza. Se agimos e nossas ações estão ligadas a valores, mesmo que isso nos passe despercebido, vale a pena que nos dediquemos a explicitar valores, os que defendemos e os defendidos pelos nossos opositores. Já é um bom começo notar a existência de valores ali onde os acontecimentos pareciam decorrer de um destino. Mas valores são tudo? A adesão a valores, mesmo os valores que reconhecemos como justos ou sempre preferíveis, é tudo? Talvez não, mas isso já é assunto para a próxima coluna.
Ricardo Fenati
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Mapas, esses mapas singulares que são os existenciais, são decisivos porque o que realmente importa, à maneira dos tesouros, quase sempre está mais do que escondido. É a existência que desconhecemos, é a singular estranheza da vida que, desde sempre, tem dado origem a mapas. Se os mapas nos ajudam, são eles que, ao mesmo tempo, nos fazem reconhecer a supremacia do território sobre o qual se debruçam, permanecendo como uma indicação que conta com a porção de aventura que cabe a cada um de nós.
Mapas estão nas histórias, ou seja, nos mitos, na poesia, nos romances, nas artes, na religião e, às vezes, na filosofia. O que vem desses campos é um ensinamento que respeita a incerteza de que somos feitos, a fragilidade que compartilhamos e as esperanças presentes nos nossos corações. Daí sua perenidade, daí a sua onipresença. Mas o acolhimento da incerteza, da fragilidade e da esperança, que lembram, cada uma a seu modo, a nossa finitude, exige dos humanos e das culturas a que pertencem uma disposição para a coragem – ou para o desejo - que nem sempre está à mão. Por isso, precisamos de histórias.
É disso que as histórias falam, da inevitável e, muitas vezes, involuntária partida de um estado de conforto, da imersão num deserto que apenas muito lentamente aprendemos a ver como uma travessia e dos atos de enfrentamento que de nós são esperados. É preciso lembrar que tudo isso se passa à meia luz e na infinita diversidade que nos constitui a todos?
Histórias espelham a vida, permitem que nos reconheçamos, geram significado e beleza. Sem histórias, sem acesso ao acervo simbólico que elas guardam, ficamos privados dos instrumentos que permitem a chegada a nós mesmos.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Prometi, na coluna passada, tratar de uma pergunta que, vejo agora, excede de muito o que posso fazer. O padecimento nos humaniza? Era essa a pergunta, a dúvida sobre o que nos humaniza. E o que está em jogo não é simples.
Há os que acham que nos humanizamos por nós mesmos, autoartífices completos que podemos ser. A recusa, aqui presente, de uma transcendência que venha, de alguma forma, a se sobrepor à cena humana é uma temática antiga, celebrada nos mitos muito antes de ser objeto da reflexão na modernidade. Voltados sobre nós mesmos e cortados os laços com qualquer alteridade, seríamos capazes, enfim, de estabelecer o melhor mundo possível, ou, para alguns, o melhor dos mundos. Obtida a transparência plena, não caberia falar de padecimento, de uma zona que permanecesse velada. Mesmo que difuso ou inconfessado, esse mote está presente na contemporaneidade.
Há os que acham, e esse é outro lado, que somos, pensando nas questões mais radicais, os que escutam, não os que fabricam. A existência não chega até nós como uma tela branca, à espera da nossa digitação. Chega ao modo de um rumor de fundo, propondo perguntas que, como marcos, delimitam, de forma obscura ou sombreada, o terreno a que pertencemos, a morada que recebemos, o padecimento a que estamos circunscritos. E, nesse caso, cabe a nós o ofício da atenção, a convivência com a interrogação e com o esforço continuado da resposta. O rio corre, é certo, mas a fonte permanece oculta. Disso brotam os mitos, as artes, a religião e a filosofia, saberes inseparáveis da incerteza e da ambigüidade.
Se aceitarmos a pergunta lá de cima, resta saber a qual dos dois caminhos, que não precisam ser pensados a todo tempo como mutuamente excludentes, cabe a prioridade
Ricardo Fenati
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O prometido era continuar a conversa sobre padecimento, mas como esbarrei numa oração da Etty Hillesum, que não do nosso tema, é ela que transcrevo. Data da manhã de um domingo, 12 de Julho de 1942 e está publicada no seu Diário, que cobre o período de 1941 a 1943, ano de sua morte no campo de concentração.
“São tempos temerosos, meu Deus. Esta noite, pela primeira vez, passei-a deitada no escuro de olhos abertos e a arder, e muitas imagens do sofrimento humano desfilavam perante mim. Vou prometer-te uma coisa, Deus, só uma ninharia: não irei sobrecarregar o dia de hoje com igual número de preocupações com relação ao futuro, mas isso custa um certo exercício. Cada dia já tem sua conta. Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência. Mas torna-se cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, que nós é que temos de te ajudar, e ajudando-te, ajudamo-nos a nós próprios. E esta é a única coisa que podemos preservar nestes tempos, e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus. E talvez possamos ajudar a pôr-te a descoberto nos corações atormentados dos outros. Sim, meu Deus, quanto às circunstâncias pareces não ter lá grande influência sobre elas, é “evidente que fazem parte indissolúvel desta vida”. Também não te chamo à responsabilidade por isso; tu é que podes mais tarde chamar-nos à responsabilidade. E quase a cada batida do coração, torna-se-me isto mais nítido: que tu não nos pode ajudar, que nós devemos ajudar-te e que a morada em nós onde tu resides tem de ser defendida até às últimas.”
Ps. O texto está na tradução portuguesa do Diário (Assírio & Alvim, Lisboa, 2009)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Não haverá qualquer coisa a ser recuperada sob essa palavra que já não usamos ou, quando o fazemos, nós a igualamos a sofrimento, que, imaginamos, é sempre algo a ser evitado? Padecer tem a ver com o que sentimos, com a presença em nós de alguma coisa sobre a qual não temos autoria ou mando, alguma coisa a que, talvez, pertençamos. Padecimento é a experiência existencial do que nos excede nesse mundo onde o eu, ou os eus, se esforçam por parecerem, sempre, senhores. Se algo se contrapõe ao padecimento, é, de um lado, a resistência a sentir, insensibilidade, e de outro a sofreguidão para agir. Nesses nossos dias tão avessos à dor, tão sequiosos de divertimento, tão afeitos à distração, tão seduzidos pelas certezas, cabe defender a existência de alguma positividade na experiência do padecimento, que é, entre outras coisas, uma experiência de insuficiência? Não falo do padecimento de ordem social, decorrente da injustiça ou da desigualdade. Esse permanece injustificado e inadmissível. Também não me refiro ao padecimento procurado ou cultivado, com o qual, ilusoriamente, nos protegemos dos combates que a vida solicita.
Falo do padecimento como uma virtude, capaz de resistir a essa vontade de não sofrer, esse sabor de estar sempre no comando da vida, essa recomendação para sorrir sempre. Não é difícil ver que há algo de patético na negação continuada do lugar da dor na vida humana. Negações desse tipo, mesmo que ruidosas, não são lá muito convincentes, o que nos obriga a prestar um pouco mais de atenção no lugar do padecimento na existência humana. Há padecimentos que nos humanizam? Voltaremos a isso na próxima coluna.
Para conversar na quinzena:
“Quando Deus soprou sobre meu barro para dar-lhe alma, deve ter soprado forte demais. Nunca pude refazer-me desse sopro divino, e continuei sempre oscilante como uma vela a vacilar entre dois mundos”. (Marie Noel)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Filosofia, como sabemos todos, é a junção numa palavra de duas fontes, amor e sabedoria, amor à sabedoria. Paixão pelo conhecimento, gosto pelo saber, confiança na nossa capacidade de decifrar, lançando mão da razão, do que se passa à nossa volta, o que se passa em nós mesmos. Distancia-nos do que é mais imediato, do que é costumeiro, da tradição e escolhe o caminho mais longo da dúvida, da análise, da compreensão. E, nesse sentido, mais do que uma disciplina, é uma atitude, um modo de estar no mundo. E com isso somos nós os que ganhamos, já que o mundo, quase nunca, se oferece a um primeiro olhar ou pode ser capturado na rotina que o reveste.
Entretanto, como tudo que leva a marca humana, nem mesmo um bem, ainda que inequívoco, se subtrai à possibilidade do descontrole, da desmedida. Despregadas das urgências do dia a dia, as ideias correm soltas e não poucas vezes, esquecidas do calor da vida, perdem-se narcisicamente em si mesmas ou num confronto meramente barulhento. Sem o sustento das travas de onde brotam e para onde devem retornar, a vida na sua infinita riqueza, flutuam num vácuo onde tudo é igualmente plausível. A distância, de início tão necessária, torna-se extravio estéril.
Diluído o nosso pertencimento às pessoas e ao mundo, esquecida nossa filiação originária, pouco ou nada pode contar o conhecimento. É de nossa mundaneidade, é dos laços que unem amorosamente à existência que brota e permanece o melhor de nós mesmos. É dessa terra fértil que também nasce o conhecimento no que ele encerra de mais legítimo e de mais libertário. Então, quem sabe não é hora de reequilibrar nossas duas fontes, philia e sofia?
Para discutir na quinzena:
“Longe de ter que salvar sua alma, o homem deve ganhá-la na paciência”.
(France Farago, a propósito de Kierkegaard)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola-BH
O que mesmo que nos impede de tomar a sério nossas reclamações sobre o atual formato do Natal? A julgar pelo que ouvimos, não estamos, não digo entediados, mas entristecidos, com a perspectiva do Natal que se aproxima? Não é preciso abrir mão dos presentes, mas não caberia, também, na noite de Natal, que é mais alongada, que nos aventurássemos a ensaiar uma comunidade, ainda que momentânea? E o que faz de um ajuntamento de pessoas uma comunidade? A palavra trocada, as histórias compartilhadas, o interesse pelo outro, a delicadeza da escuta, a alegria da solidariedade.
A noite de Natal com as pessoas em volta de uma mesa é uma reiteração, nos nossos tempos, de um costume imemorial, perdido na noite dos tempos, a refeição em torno de uma fogueira capaz de aquecer os corpos e de histórias, contadas e ouvidas, capazes de aquecer a alma.
Afastados os papéis que a vida cotidiana nos leva a desempenhar, não poderíamos, dessa vez, partilhar nosso destino comum, o de homens e mulheres comovidos e perplexos diante da imensidão da vida?
Para a noite de Natal:
“ É verdade que à mesa não nos alimentamos apenas ao mesmo tempo e dos mesmos alimentos. Alimentamo-nos uns dos outros. Somos uns para os outros, na escuta e na palavra, no silêncio e no riso, no dom e no afeto, um alimento necessário, pois é de vida ( e de vida partilhada) que as nossas vidas se alimentam”. (José Tolentino de Mendonça)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola de BH
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